ITBI na integralização de capital com imóveis | Parte 2 – O excesso

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No início do ano passado, tivemos a oportunidade de escrever um breve artigo para este portal a respeito da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que concluiu pela incidência do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) na integralização de imóveis ao patrimônio de pessoas jurídicas, nos casos em que o valor do imóvel exceder o (valor do) capital social integralizado.

Apenas para contextualizar a Parte 2 deste “filme”, vamos lembrar o que foi decidido em 2022:

  • Nossa Constituição prevê que a transferência de imóveis para o patrimônio de uma pessoa jurídica em realização de capital não está sujeita ao ITBI, a não ser que a atividade preponderante da pessoa jurídica (que recebeu os imóveis) seja imobiliária (compra e venda, locação ou arrendamento).
  • Ou seja, a incidência ou não incidência do ITBI estava conectada unicamente à atividade preponderante da sociedade para qual os imóveis fossem transferidos – calculada com base na receita da pessoa jurídica. Dizemos que esse posicionamento “estava” vinculado (e, consequentemente, não está mais), pois parece que este não é mais o entendimento de muitas prefeituras, conforme explicaremos em momento oportuno.
  • O STF, no julgamento do RE 796.376/SC, trouxe a seguinte interpretação sobre a imunidade: em uma operação de transferência de imóveis para uma pessoa jurídica, apenas o valor destinado ao “capital social” tem direito à imunidade – enquanto a parcela destinada à reserva de capital (da sociedade) está sujeita ao ITBI. Ou seja, apenas a parcela alocada para a conta de capital social estaria “protegida” pela imunidade. O “excedente” (ágio na emissão de quotas/ações) seria tributado pelo ITBI.
  • Por óbvio, esse entendimento só faz sentido no caso de sociedades “não imobiliárias”, uma vez que a transferência de imóveis para pessoas jurídicas com receita preponderantemente imobiliária está sujeita a ITBI, independente da conta contábil que recebe o imóvel

Apesar de discordamos do posicionamento da Suprema Corte, acreditávamos que o assunto, de certa forma, havia sido resolvido: diante de uma sociedade não imobiliária, a destinação da conta contábil passaria a influenciar o recolhimento do ITBI. 

O fim era só o começo

A verdade é que o imbróglio estava apenas começando. E como a celeridade não é o nosso forte na esfera tributária, estamos, sem dúvida, diante de um novo filme.

O que o STF julgou em 2020 

A tese fixada pelo STF trouxe a seguinte redação: “a imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do §2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.” Não há dúvidas de que a referência feita ao termo “excesso”, diz respeito à parcela que não foi destinada ao capital social da pessoa jurídica. Afinal, esse era o centro da discussão: a imunidade estaria restrita ao capital social (parcela que garante os débitos da sociedade e protege os credores), e não em relação ao valor destinado à reserva de capital (em decorrência do ágio na subscrição de quotas), que pode ter outras destinações, como distribuição de dividendos de ações preferenciais.

Com esse cenário da “destinação” em voga, não se discutia a diferença entre o valor venal do imóvel (base de cálculo do ITBI) e o valor de integralização (valor pelo qual o imóvel é transferido à sociedade). Ou seja, ao transferir o imóvel para a pessoa jurídica, não se discutia se os imóveis estavam “subavaliados” em comparação ao valor de mercado (venal).

Valor de mercado x valor de integralização 

O valor venal e o valor de integralização tendem a ser consideravelmente distintos. Isso porque, na prática, o que ocorre é o seguinte: para evitar o ganho de capital, os bens são transferidos (em integralização) para as pessoas jurídicas pelo valor constante da declaração de imposto de renda (faculdade prevista no artigo 23 da Lei n° 9.249/95) ou valor contábil (no caso de pessoas jurídicas).

Para fins de registro na Declaração de Ajuste Anual da Pessoa Física, há uma “troca”. O imóvel deixa de constar na ficha Bens e Direitos, passando a constar cotas/ações da sociedade pelo mesmo valor do imóvel. Não há ganho para a pessoa física, que apenas altera o tipo de bem que detinha/passou a deter. O mesmo ocorre com pessoas jurídicas: há uma troca de um ativo imobilizado por uma participação societária (investimento), sem qualquer movimentação nas contas de resultado (em que se registra eventual ganho/perda). Na prática, convenciona-se dizer que a operação (seja por pessoa física ou jurídica) foi realizada a “valor histórico”.

Na grande maioria dos casos, o valor de mercado dos imóveis é superior ao valor de integralização (o valor histórico). Mas essa diferença em nada tem a ver com o termo “excesso” mencionado na tese do STF (Tema 796), que se refere unicamente ao excedente do capital social e não do resultado (i) do valor de mercado menos (ii) o valor de integralização – como se houvesse um “ganho” presumido que fosse base para ITBI.

Mas esse não parece ser o entendimento das prefeituras.

Efeitos práticos 

Constatando-se que o valor venal dos imóveis excede o aumento do capital, os municípios têm exigido a tributação sobre a diferença. Absurdamente, se a avaliação do Fisco municipal superar o valor utilizado para integralizar e o capital da sociedade, este “excesso” está sujeito ao ITBI.

Agora, imaginemos na prática.

Uma pessoa física adquiriu alguns imóveis há 20 anos, pagando por estes imóveis a quantia total de 500 mil reais. No contexto de uma reorganização familiar que ocorre atualmente, a pessoa física decide transferir os imóveis para uma sociedade patrimonial. Para evitar o pagamento de imposto de renda sobre o ganho de capital, a transferência dos imóveis é feita pelo valor histórico (500 mil reais). Ocorre que esses imóveis têm hoje o valor de 10 milhões de reais. No entendimento das prefeituras, essa operação está sujeita ao ITBI, cuja base de cálculo será (o “excesso”) de 9 milhões e 500 mil reais.

Não há como concordar com essa interpretação. Primeiro porque a situação fática analisada pelo STF (no Tema 796) era diferente – em que pese o possível questionamento sobre a redação da tese, decidiu-se que não há imunidade tributária na parcela que é transferida para a sociedade, mas não é destinada ao capital social. Em segundo lugar, porque o racional da regra (de imunidade) é justamente o contrário da interpretação que as prefeituras vêm tentando criar – exigir tributo em praticamente todas as situações, uma vez que há uma grande probabilidade de divergência entre o valor de integralização e o valor venal.

Fica a triste sensação (ou indignação) de que os municípios vêm tentando se “aproveitar” de uma frase ou trecho que não esteja tão claro na decisão do STF, mesmo que esta interpretação não tenha relação com a pauta do julgamento. Ora, se essa fosse a interpretação das prefeituras, essa tese (valor venal menos valor histórico) já estaria na mesa, sendo discutida há tempos. E sabemos muito bem que é justamente o contrário – a nova interpretação do termo “excesso” nasceu com a fixação da tese pelo STF.

Muitas (e muitas) vezes os contribuintes são autuados pelo fato de a fiscalização entender que houve um abuso de direito em determinado planejamento tributário – como se (o contribuinte) tivesse aproveitado de determinado conceito para se beneficiar em um determinado negócio jurídico. A impressão que fica é que estamos diante do mesmo racional, porém em sentido contrário – o Fisco, em seu desespero arrecadatório para cobrir gastos públicos, parece querer forçar um conceito que ele mesmo jamais trouxe à tona.

Contencioso iniciado 

Como não podia ser diferente, o assunto foi parar no Judiciário.

Já é possível, inclusive, encontrar decisões no próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. No julgamento da Apelação n° 1004097-58.2021.8.26.0400, ficou definido (de forma favorável ao contribuinte) não ser possível utilizar o Tema 796 (integralização de capital) para discutir o valor dos imóveis transmitidos para fins de ITBI, uma vez que as teses não se confundem.

Do outro lado, no julgamento da Apelação n° 5000452-12.2020.8.13.0704, o Tribunal entendeu ser correto o entendimento da fiscalização e ainda que o caso não se amolde exatamente ao contexto fático do precedente (Tema 796), a tese firmada é plenamente aplicável. Ou seja, constatando-se que o valor venal dos imóveis excede o aumento do capital, deve ser realizada a tributação sobre a diferença.

Ou seja, inacreditavelmente, há contribuintes perdendo a discussão.

E no mundo “real”?

A verdade é que o contribuinte fica literalmente de mãos atadas. É como se as únicas alternativas fossem pagar e discutir em juízo; ou ajuizar medida judicial preventivamente antes da integralização dos imóveis. O problema é que a vida, a oportunidade comercial ou o empreendimento não podem esperar. Ou seja, se o contribuinte estiver diante de uma situação em que o município exige o ITBI sobre o tal “excesso” (aqui entendido como a diferença entre o valor venal do imóvel e o valor de integralização), a única alternativa parece ser pagar e ajuizar (mesmo sabendo que esse dinheiro não será ressarcido tão cedo). Caso contrário, oportunidades de negócios podem ser perdidas ou reorganizações patrimoniais não serão implementadas à espera de uma decisão judicial.

E o que esperar a seguir?

O mais impressionante é que esse filme já tem Parte 3. Vale lembrar, o voto do ministro Alexandre de Moraes gerou um alvoroço no mercado imobiliário. A tese defendida pelos contribuintes da área é que seria possível sustentar que a imunidade no caso de incorporação de bens ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital independe da atividade preponderante desempenhada pela pessoa jurídica. Logo, a discussão sobre a preponderância da receita só existiria para as operações de fusão, incorporação, cisão ou extinção da pessoa jurídica. Em termos práticos, é como se toda e qualquer integralização de capital com imóvel fosse imune ao ITBI. Vários contribuintes ajuizaram ações com base nesse entendimento – cabe aguardar o resultado.

Curiosamente, esse artigo termina de forma parecida com o primeiro. As prefeituras limitam a imunidade com suposto respaldo no julgamento do STF no Tema 796. Contudo, em nenhum momento se discutiu “excesso de valor do bem” objeto da integralização de capital. O que se discute é se o valor de integralização dos imóveis foi todo destinado para o capital social. Caso tenha sido (transferido para o capital social), não há que se falar em diferença de valor histórico versus valor venal. Se esse entendimento prevalecer, a regra de imunidade, em nosso entendimento, perde o sentido. Essa interpretação é prejudicial ao contribuinte e, sem sombra de dúvidas, aumentará o contencioso. A municipalidade parece se esquecer que grandes empreendimentos (a construção de uma fábrica, por exemplo) poderão deixar de ser realizados, pois o CAPEX inicial deverá ser acrescido do ITBI quando da transferência do imóvel.

Vale repetir, de acordo com o STF, o “excesso” diz respeito ao ágio na subscrição de quotas/ações realizada pelo contribuinte – cujo montante foi destinado para a conta de reserva de capital. Não obstante, como criticamos na primeira oportunidade, ambos (o capital e a reserva de capital) representam um investimento direto na sociedade, devendo, portanto, receber o mesmo tratamento jurídico. Tal conduta ensejaria o reconhecimento da imunidade para o valor total transferido para a pessoa jurídica. A alocação entre capital social e reserva de capital não modifica o ato jurídico de capitalizar (transferir recursos para) uma sociedade.

Caro leitor, independente de concordar conosco (ou não), creio que estamos alinhados em um assunto: a “chama” da reforma tributária voltou a acender. Não sabemos, mas parece que “agora vai”. É muito importante que tenhamos um mínimo de segurança jurídica em discussões que se arrastaram durante anos. Fazer nascer um novo entendimento, descontextualizando o sentido de um termo (“excesso”) para buscar arrecadação, não pode prevalecer.


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