Os riscos e os benefícios do Projeto de Lei que abre o mercado de energia

Migração dos consumidores do ambiente cativo para o livre é um dos efeitos esperados da aprovação do PL 414/21

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O mercado livre de energia vem sendo o principal propulsor de novos projetos. E deve ganhar ainda mais impulso se for aprovado o Projeto de Lei 414/21, que propõe alterar nove leis e é considerado por muitos o novo marco regulatório do setor. O PL deve estabelecer as condições para a abertura do mercado. Todos os consumidores, e não apenas os grandes, poderiam migrar do mercado cativo (no qual estão ligados a determinadas distribuidoras de energia) para o Ambiente de Contratação Livre (o chamado mercado livre). 

“Se aprovado, o PL 414/21 terá um forte impacto sobre a atuação de consumidores e empresas no setor elétrico”, avalia a advogada Marcela Assis, associada do Freitas Ferraz Advogados. Os consumidores cativos que optarem por migrar para o ACL poderão escolher seus fornecedores, em um modelo similar ao mercado de telefonia. “Na prática, isso representa uma significativa mudança na postura do consumidor (até então, passiva). Por outro lado, o aumento de diferentes players atuando de forma ativa no setor provocará o surgimento de novos nichos de mercado.”

Apesar dos benefícios esperados, como o aumento da concorrência e a redução das tarifas de energia, há riscos na mudança. “Naturalmente, embora desejável, a abertura traz riscos para o setor de energia”, diz a advogada. Isso porque ela poderá reduzir a base de consumidores cativos e aumentar a de consumidores livres/especiais. Com isso, os subsídios cruzados relativos à tarifa de uso do sistema de distribuição (Tusd) e a tarifa de uso do sistema de transmissão de energia elétrica (Tust), por exemplo, iriam aumentar, pois haveria um número menor de consumidores cativos para financiar um número maior de consumidores livres/especiais. Outro risco, considera Assis, é o da diminuição do controle sobre a oferta de energia, o que, no limite, poderá ensejar eventual subcontratação ou sobrecontratação de oferta de energia.

“Caso esses efeitos não sejam devidamente endereçados, os preços praticados no mercado cativo poderão aumentar exponencialmente, de modo a tornarem-se muito superiores aos preços praticados no mercado livre”, avalia a advogada.

O projeto se originou do PLS 232/2016 e ainda não há data para votação. 

Na entrevista abaixo, Assis aborda as principais mudanças propostas pelo PL 414/21 e os possíveis aprimoramentos da lei. 


Em linhas gerais, quais são os principais pontos do PL 414 e qual deve ser o seu impacto sobre os consumidores e empresas do setor elétrico?

Marcela Assis: Em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 414 (PL 414/21) é considerado por muitos como o novo marco regulatório do setor elétrico. Além de alterar nove leis federais que regulamentam o setor – incluindo a Lei 9.074/95 (que regulamenta as outorgas no setor elétrico); a Lei 10.848/04 (que estabelece o novo modelo do setor e dispõe sobre a comercialização de energia); e a Lei 9.427/96 (que cria a Agência Nacional de Energia Elétrica, Aneel), o PL 414/21 cria mecanismos para abertura do mercado livre e propõe mudanças estruturais no sentido de modernizar o modelo atual do setor elétrico e compatibilizá-lo com a abertura do mercado. Dentre as mudanças propostas, incluem-se mudanças relativas à autoprodução de energia, sobrecontratação das concessionárias de distribuição de energia; agentes varejistas e regime de cotas. 

Se aprovado, o PL 414/21 terá um forte impacto sobre a atuação de consumidores e empresas no setor elétrico. Por exemplo, os consumidores cativos que optarem por migrar para o Ambiente de Contratação Livre (ACL) poderão escolher seus fornecedores, em um modelo similar ao mercado de telefonia no Brasil. Na prática, isso representa uma significativa mudança na postura do consumidor (até então, passiva). Por outro lado, o aumento de diferentes players atuando de forma ativa no setor provocará o surgimento de novos nichos de mercado. Nesse cenário, certamente as empresas repensarão os seus modelos de negócios (avaliando, por exemplo, diferentes estratégias de marketing para captação desses novos clientes) e os seus produtos (avaliando, por exemplo, a criação de novos produtos, como os de prateleira, para atender aos novos consumidores).


O processo de migração dos consumidores do mercado cativo para o mercado livre de energia deve ocorrer de forma escalonada? Há riscos?  

Marcela Assis: Antes de tudo, é importante esclarecer que o PL 414/21 não inovou ao prever a abertura do mercado livre, mas ao criar as bases jurídicas para que ela ocorra de forma controlada e planejada. 

A abertura do mercado livre já foi objeto da Portaria MME 465/19 que, em seu artigo 1º, §6º, obrigou a Aneel e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) a apresentar, até 31 de janeiro de 2022, um estudo sobre as medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para os consumidores com carga inferior a 500 kW, incluindo proposta de cronograma de abertura iniciando em 1º de janeiro de 2024. Alguns estudos foram apresentados e as discussões acerca da abertura foram iniciadas no âmbito da Consulta Pública MME 131/22. 

Por sua vez, o PL 414/21 dispõe que o MME deverá, em até 42 meses contados da data de publicação da nova lei, apresentar um plano para abertura do mercado. Apesar de a redação do PL 414/21 não impor todo o conteúdo do plano, sabe-se que o objetivo do Poder Executivo é que a abertura ocorra de forma escalonada, incluindo: ações de comunicação para conscientização dos consumidores; regulação e ações para aprimoramento da infraestrutura de medição, faturamento e modernização das redes de distribuição de energia elétrica; e separação das atividades de comercialização regulada de energia e de prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica (custos com fio e energia).

Naturalmente, embora desejável, a abertura traz riscos para o setor de energia. Primeiro porque tal abertura permitirá a diminuição da base de consumidores cativos e o aumento de consumidores livres/especiais. Com isso, os subsídios cruzados relativos a tarifa de uso do sistema de distribuição (Tusd) e a tarifa de uso do sistema de transmissão de energia elétrica (Tust), por exemplo, iriam aumentar, pois haveria um número menor de consumidores cativos para financiar um número maior de consumidores livres/especiais – lembrando que a Lei Federal 14.120/21 prevê regras de transição para o fim da percepção dos descontos na Tusd e na Tust, de modo que o subsídio ainda perdurará por alguns anos. Segundo, porque promove a diminuição do controle sobre a oferta de energia, o que, no limite, poderá ensejar eventual subcontratação ou sobrecontratação de oferta de energia.


Com o estabelecimento do mercado livre de energia, que deve acontecer com o mercado cativo? Para quais consumidores ele seria interessante?

Marcela Assis: Conforme adiantado na questão anterior, a abertura total do mercado livre permitirá a diminuição da base de consumidores cativos e o aumento de consumidores livres/especiais, o que poderá trazer efeitos indesejáveis para o setor de energia elétrica (incluindo a subcontratação ou sobrecontratação de energia e aumento de subsídios cruzados). Caso esses efeitos não sejam devidamente endereçados, os preços praticados no mercado cativo poderão aumentar exponencialmente, de modo a tornarem-se muito superiores aos preços praticados no mercado livre. Isso é um verdadeiro contrassenso, pois, a partir da aprovação do PL 414/21, o Ambiente de Contratação Regulada (ACR) provavelmente interessará às camadas da sociedade que – por algum motivo – tenham dificuldade de migrar para o mercado livre, seja por desinformação quanto as vantagens do mercado livre, seja pela própria complexidade inerente ao ACL.


Como está o processo de tramitação do PL 414/21 no Congresso? Há pontos que precisam ser aprimorados?

Marcela Assis: O PL 414/21 corresponde ao substitutivo do Projeto de Lei do Senado 232/16 (PLS 232/16) remetido à Câmara dos Deputados. Ainda no Senado Federal, o PLS 232/16 foi analisado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), pela Comissão de Cidadania e Justiça (CCJ) e pela Comissão de Serviços de Infraestrutura (CI), tendo sido aprovado em 10 de fevereiro de 2021. Atualmente na Câmara dos Deputados, o PL 414/21 aguarda apreciação pela Comissão Especial, a qual foi criada pelo fato de a minuta ter sido originalmente encaminhada a mais de três comissões (quais sejam, Comissões de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços; Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Defesa do Consumidor; Minas e Energia; Finanças e Tributação e Constituição e Justiça e de Cidadania).

Como toda norma, o PL 414/21 tem pontos a serem aprimorados. Por exemplo, o PL 414/21 propõe a separação entre lastro e energia. A ideia é que geradores passem negociar, no mínimo, dois produtos, sendo um reflexo da produção efetiva de energia e o outro reflexo da capacidade de contribuição para a segurança do sistema. O problema é que hoje já existem mecanismos de capacidade (como os leilões de energia de reserva e a própria obrigação legal de contratação de energia mediante lastro) que garantem a segurança no fornecimento do sistema. A pergunta que se faz é: por que esses mecanismos não seriam suficientes? Ou, no limite, a separação entre lastro e energia não seria um mecanismo de promoção de segurança, mas de correção de falha de mercado (missing money)? Outro ponto bastante discutível diz respeito às novas regras para o segmento autoprodução, incluindo o novo conceito de autoprodução equiparada proposto, os encargos que passarão a ser devidos pelos agentes e, no limite, aspectos relacionados à segurança jurídica.

1 comentário
  1. RALPH PETTINI Diz

    Bom dia. Observo que a Aneel tem liberado reajustes de tarifa, sendo aumento na TUSD e redução na TE, a diferença de 2021 pra 2022 aqui no ES, foi assustador. Então, não vejo risco algum pras distribuidora com a implantação da PL 414. Se continuar com esse tipo de reajuste da TUSD, não será vantajoso pro consumidor. Até porquê, somente a compra da energia TE não trará vantagem.

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