Entenda o que muda nos preços de transferência

Multis americanas, setores de tecnologia e recursos naturais devem sair ganhando com nova sistemática brasileira

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Empresas brasileiras de todos os setores que fazem transações entre partes relacionadas com o exterior devem ser afetadas pelas novas normas de preços de transferência. O impacto maior (e positivo) é esperado para aquelas que efetuam o pagamento de royalties, como as do setor de tecnologia ou que extraem recursos naturais, ou para companhias norte-americanas com atuação no Brasil. Para elas, pode ser interessante antecipar a aplicação da nova sistemática de 2024 para este ano – o que foi possibilitado pela publicação da Instrução Normativa 2.132/23, em fevereiro. A mudança traz mais flexibilidade, já que as empresas vão passar a poder escolher entre diversos critérios para aplicar as regras de preço de transferência, mas também mais complexidade.

Preços de transferência são aqueles aplicáveis a exportação e importação e outras transações entre partes relacionadas, como transferência de bens, serviços e propriedade intangível. É o caso de transações entre multinacionais com sede no exterior e suas controladas no Brasil, ou vice-versa. As regras que se aplicam aos preços de transferência visam evitar a transferência indireta de lucros – que poderia ocorrer, por exemplo, quando uma empresa no Brasil aumenta seus custos e despesas, gerando lucros não aqui, mas em países com impostos mais baixos. O Brasil, que usava a sistemática de margens fixas (estabelecendo percentuais de margem de lucro nesse tipo de operação), passará a utilizar, após conversão da MP 1.125/22 em lei, a usar a sistemática dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é o princípio arm’s lenght.

A adaptação das empresas ao novo modelo está prevista para começar no início de 2024. No entanto, existe uma possibilidade de antecipação da utilização do novo sistema, aberta pela publicação da Instrução Normativa 2.132/23, da Receita Federal, de 24 de fevereiro – o contribuinte pode aplicar as regras da MP ainda neste ano para as operações feitas entre controladas em 2023.

“A opção pode ser interessante para multinacionais norte-americanas com atuação no Brasil, para que possam voltar a creditar, nos Estados Unidos, o imposto pago no país, diante das regulamentações recentes do governo americano, e para empresas com partes relacionadas situadas em países que já seguem os padrões da OCDE para preços de transferência”, afirmam Romero Marinho e Anna Laura Lacerda, associados do Freitas Ferraz Advogados. Isso porque os Estados Unidos alteraram, em 2021, as regras de compensação do Imposto de Renda pago no exterior, deixando de permitir o uso de créditos tributários pelas empresas americanas, caso o tributo tiver sido recolhido por país que não siga o princípio arm’s length (caso do Brasil, que adotava as margens fixas). Portanto, ao adotarem a nova sistemática prevista pela MP 1.152/22, essas empresas poderiam aproveitar esses créditos.

Mas essas não são as únicas empresas que podem ser beneficiadas pela nova sistemática, e às quais pode ser interessante antecipar a sua adoção: “Acredita-se que os setores mais afetados serão aqueles que realizam operações com intangíveis ou realizam pagamento de royalties, em função de marca, patente, direitos autorais e licença de software, por exemplo. E isso porque, dentre outras razões, tais empresas precisam lidar com muitas regras de limitação de dedução na base de cálculo do IRPJ, o que seria ampliado significativamente com a nova MP”, consideram as advogada Paloma Amorim e Priscila Alves, associadas do Vieira Rezende Advogados. A MP reforçou as possibilidades de dedução da base de cálculo do IRPJ e CSLL das operações entre partes relacionadas – e, agora, os royalties passam a poder ser deduzidos integralmente (respeitadas algumas condições impostas pela medida).

Na entrevista abaixo, Marinho, Lacerda, Amorim e Alves abordam a mudança da sistemática adotada pelo Brasil e os seus impactos sobre as empresas.


– O que são os preços de transferência e qual é a sistemática atualmente adotada pelo Brasil com relação ao assunto?

Romero Marinho e Anna Laura Lacerda: Preço de transferência é o preço praticado na compra e venda de bens, serviços e direitos entre partes relacionadas. Dentro do sistema de transfer pricing, os preços estipulados nas operações entre pessoas jurídicas vinculadas são comparados com os praticados em livre mercado em condições de pagamento e objetos similares, a fim de determinar a vantagem pretendida na operação controlada.

O principal objetivo das regras de preços de transferência é evitar que os contribuintes pratiquem preços artificiais com relação ao mercado de livre concorrência, criando despesas superiores ou receitas inferiores à realidade, a fim de reduzir a base tributária, impedindo a dedutibilidade da parcela das despesas sobre as aquisições que superem o limite determinado pela regra de preço de transferência.

Atualmente, a legislação brasileira adota a sistemática de margens fixas, ou seja, define margens de lucro que poderão ser praticadas entre empresas vinculadas. Apesar de tentar preservar a simplicidade, praticidade e previsibilidade, a atual sistemática ainda traz incerteza tributária para o contribuinte no contexto internacional, possibilita a dupla tributação, e pode atribuir ao contribuinte margens excessivamente altas, que não refletem sua capacidade econômica, ou ainda, margens excessivamente baixas.

A sistemática permite, de forma simplificada, o cálculo do preço de transferência pelos métodos de custo de produção mais lucro (CPL), no qual o custo de produção médio do bem importado ou produzido do país de origem é somado aos tributos e margem de lucro de 20%. Outro método possível é o de preço de revenda menos lucro (PRL), onde o cálculo se inicia no preço de venda do bem, deduzido de descontos e impostos e aplicada a margem de lucro específica do setor.

Paloma Amorim e Priscila Alves: Preços de transferência são regras aplicadas em operações de venda ou transferência de bens, serviços ou propriedade intangível, realizadas entre empresas relacionadas que operem em países diferentes, e tem por objetivo evitar distorções nos preços praticados, estabelecendo parâmetros para equalizar essas operações, de modo que tais valores se assemelhem àqueles que seriam esperados em transações comparáveis nas mesmas circunstâncias, entre partes independentes e não relacionadas.

A ideia central é evitar a transferência indireta de lucros, em função de uma possível utilização da política de preços entre as empresas relacionadas como mecanismo de planejamento fiscal abusivo, com o objetivo de aumentar custos e despesas além do necessário para a atividade, transferir “lucros” para países de tributação menor ou mais favorecida, deixando de alocar ao país origem e destino, conforme o caso, o resultado ali produzido, o que distorceria os resultados globais do grupo.

O principal norteador da sistemática de preços de transferência é o princípio do arm’s length, previsto no parágrafo 1, do Artigo 9º, da Convenção Tributária da OCDE, o qual busca colocar empresas relacionadas e independentes em condições de igualdade fiscal e de competitividade, de modo a promover o comércio internacional e evitar a evasão fiscal.

No Brasil, as regras de preços de transferência estão previstas nos artigos 18 a 24-B, da Lei nº 9.430/96, que estabelece os critérios para o cálculo do preço parâmetro a ser aplicado para as operações entre partes relacionadas, com base na aplicação de métodos ali previstos, tanto para a importação quanto para a exportação. Não obstante, considerando que tais regras foram alvo de pouquíssimas alterações ao longo do tempo, temos que a sistemática aplicada hoje pelo Brasil já se mostra demasiadamente defasada e ultrapassada para atender a forma e a natureza das operações que são desempenhadas atualmente, principalmente se comparada com outros países integrantes da OCDE.

Tal defasagem se justifica, dentre outras razões, pelo fato de que, com o avanço da globalização e da tecnologia aplicada às operações, as transações internacionais assumiram uma complexidade e amplitude anteriormente inexistente no âmbito do comércio exterior. Portanto, tem-se que o sistema brasileiro baseado em margens fixas – sem a possibilidade de realização de indispensáveis reajustes –, com a aplicação de percentuais de margem de lucro sobre as atividades previamente estipuladas, se mostra atualmente insuficiente para atender à finalidade precípua da sistemática ora instituída no passado.


– Essa sistemática muda se a Medida Provisória 1.152/22 for convertida em lei?

Romero Marinho e Anna Laura Lacerda: Sim, a sistemática mudará com a conversão da MP em lei. A Medida Provisória nº 1.152 de 2022 foi uma medida tomada com duas razões claras: aproximar as regras de preços de transferências brasileiras aos padrões internacionais previstos pela OCDE e amenizar os efeitos de regulamentação pelo governo norte-americano, que passou a não permitir o uso de créditos tributários pelas empresas americanas, caso o tributo tiver sido recolhido por país que não adote o princípio arm’s length. Diante destes objetivos, o Poder Executivo previu na MP o princípio e previsões para sua aplicação nas operações alcançadas pelas regras de preços de transferência.

Quanto aos métodos de cálculo do preço parâmetro, a MP inovou ao intitular a Subseção IV “Da seleção do método mais apropriado”. O uso da palavra “apropriado” já demonstra uma maior sensibilidade dos métodos a tanto a capacidade econômica quanto ao mercado de atuação do contribuinte, preocupação esta que foi enfatizada pela OCDE nos blueprints do Projeto BEPS. Ainda, passa a permitir que outro método seja utilizado, desde que produza resultado consistente com aquele que seria alcançado em operações em livre mercado.

Além disso, foram inseridos os dois novos métodos propostos pela OCDE, o Margem Líquida da Transação, que consiste na comparação da margem da transação controlada com margens de operações entre partes não relacionadas, e Divisão do Lucro, que trata da divisão dos lucros ou perdas da transação controlada de acordo com o que seria estabelecido entre partes não relacionadas, levando em consideração as funções desempenhadas, ativos utilizados e riscos assumidos.

Paloma Amorim e Priscila Alves: A metodologia até então prevista pela Lei nº 9.430/96, certamente, será alterada com o início da produção de efeitos da Medida Provisória nº 1.152/2022, com o fim das margens predeterminadas, por exemplo.

O texto se aproxima dos padrões da OCDE, trazendo importantes avanços no que se refere ao delineamento das definições dos termos ora previstos, tais como, transações controladas, partes relacionadas e transações comparáveis, bem como à flexibilização dos critérios de cálculo às operações a serem desempenhadas na prática, ou seja, considerando as suas especificidades e complexidades próprias , por meio de, dentre outras ferramentas, da possibilidade de realização de ajustes destinados a adaptar a regra legal à operação em concreto.

Foram propostos cinco métodos para obtenção de preços – além da possibilidade da adoção de outros métodos alternativos que, porventura, se mostrem adequados à permitir a comparabilidade necessária –, os quais terão como base de escolha o grau de comparabilidade entre a transação controlada e as partes não relacionadas.

A norma trata, também, sobre regras de dedução dos valores pagos, creditados, entregues ou remetidos a título de royalties e assistência técnica, científica, administrativa, da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.

No que tange às commodities, ao contrário do que dispõe a Lei 9.430/96, a medida provisória não estipulou métodos específicos de valoração, de modo que se aplicam os métodos previstos da norma para o controle de preços desses produtos.

Outro marco importante trazido pela MP 1.152/2022 foi a previsão do contrato de compartilhamento de custos (Cost Sharing Agreement), que até o momento não possui previsão em qualquer dispositivo legal na legislação brasileira e é tratado como um contrato de natureza atípica, à luz do Código Civil.

Dessa forma, trata-se de importante repercussão para as empresas multinacionais que já possuem esse tipo de contrato, no sentido de promover segurança jurídica e garantias em suas transações intragrupo.


– O que a Instrução Normativa 2.132/23 da Receita Federal trouxe de novo?

Romero Marinho e Anna Laura Lacerda: A Instrução Normativa nº 2.132 de 2023 disciplina a opção do contribuinte pela aplicação das regras trazidas pela MP. Primeiramente, a IN permite que o contribuinte opte pela aplicação antecipada das regras, isto é, em transações controladas que ocorram ainda no ano-calendário de 2023, sendo que, se convertida em lei a MP somente terá vigência a partir de 1º de janeiro de 2024.

A opção pode ser interessante para multinacionais norte-americanas com atuação no Brasil, para que possam voltar a creditar, nos Estados Unidos, o imposto pago no país, diante das regulamentações recentes do governo americano, e para empresas com partes relacionadas situadas em países que já seguem os padrões da OCDE para preços de transferência.

Pode interessar, também, empresas com altas despesas com royalties, visto que a IN reforçou a previsão da MP de dedutibilidade da base de cálculo do IRPJ e CSLL, desde que os valores não sejam pagos para entidades residentes em países com tributação favorecida ou para partes relacionada, quando a dedução resultar em dupla não-tributação. Mesmo que o contribuinte não seja obrigado a aplicar as regras de TP, poderá usar a dedutibilidade prevista na IN ao fazer a opção pelas regras previstas na MP.

Ressalta-se, por outro lado, que a opção pela adoção da sistemática ainda em 2023 é irretratável, o que pode afastar aqueles contribuintes que ainda não possuem familiaridade com os padrões da OCDE ou que tenham receio da majoração da carga tributária pela aplicação dos novos métodos.

Paloma Amorim e Priscila Alves: A Instrução Normativa RFB nº 2.132/2023 possibilitou a aplicação antecipada das regras de preços de transferência previstas pela Medida Provisória nº 1.152/2022 às transações controladas realizadas no ano-calendário de 2023, mediante opção irretratável do contribuinte.

A opção pode ser formalizada no período de 1ª a 30 de setembro de 2023, mediante abertura de processo digital no Portal do Centro de Atendimento (Portal e-CAC), com anexação do termo de opção.

Dessa forma, considerando o caráter voluntário e facultativo da referida opção, entendemos que a Instrução Normativa RFB nº 2.132/2023 foi bem recepcionada pelos agentes que operam no comércio exterior, por meio da utilização do mecanismo de preço de transferência, os quais agora poderão avaliar a existência de eventuais benefícios na utilização antecipada da nova sistemática.


– Para as empresas brasileiras, qual será o impacto da adoção do novo sistema? Há setores ou companhias que serão mais afetadas?

Romero Marinho e Anna Laura Lacerda: Se adotado, o novo sistema de preços de transferência impactará as empresas brasileiras de diversas maneiras. Primeiramente, haverá uma fiscalização ativa da autoridade fiscal dos ajustes efetuados na base de cálculo do IRPJ e da CSLL a fim de adicionar os resultados que seriam obtidos se a transação ocorresse em livre mercado. Neste sentido, poderá a autoridade efetuar o denominado “ajuste primário” e ajustar a base de cálculo do contribuinte, aplicando a vedação dos ajustes que objetivem reduzir a base de cálculo ou aumentar o prejuízo fiscal.

Considerando a possibilidade de se deduzir integralmente as despesas com royalties, respeitados os limites impostos pela MP, empresas brasileiras que pagam altos valores a este título, como aquelas que atuam no setor de tecnologia ou extração de recursos naturais, perceberão uma redução significativa da base de cálculo do IRPJ/CSLL.

Ainda, há de se levar em consideração o aumento na complexidade das regras de preços de transferência. Apesar de serem mais complexas, as regras propostas trarão maior flexibilidade para o contribuinte e o direito de escolha quanto ao método de cálculo do preço parâmetro, além de maior segurança jurídica das transações internacionais.

Paloma Amorim e Priscila Alves: As mudanças trazidas pela Medida Provisória 1.152/2022, cujos efeitos poderão ser antecipados pela IN RFB nº 2132/2013, decerto, impactarão praticamente todas – em maior ou menor grau – as empresas brasileiras que realizam operações com partes relacionadas no exterior, seja de forma positiva – em relação à atualização e maior adequação da nova sistemática – ou de forma negativa – considerando que a execução e a aplicação das novas regras se mostram ainda complexas principalmente sob determinadas operações, demandando, certamente, um período de adaptação para a correta absorção do novo formato.

Acredita-se que os setores mais afetados serão aqueles que realizam operações com intangíveis ou realizam pagamento de royalties, em função de marca, patente, direitos autorais e licença de software, por exemplo. E isso porque, dentre outras razões, tais empresas precisam lidar com muitas regras de limitação de dedução na base de cálculo do IRPJ, o que seria ampliado significativamente com a nova MP.

Ademais, multinacionais que possuem sede no Brasil também devem sentir o impacto das alterações trazidas pela Medida Provisória. É muito comum que as empresas relacionadas, com sede no exterior, utilizem o princípio do arm’s lenght para fazerem os cálculos dos seus tributos. Ocorre que, antes do envio de tais valores ao Brasil, precisam fazer ajustes, o que se torna uma tarefa complicada, em função dos critérios adotados em solo brasileiro. Dessa forma, é possível que tais empresas optem pela antecipação dos efeitos da MP.

Além disso, empresas com sede nos Estados Unidos devem sentir os reflexos da medida. Isso porque, em 2021, os Estados Unidos alteraram as regras de compensação do Imposto de Renda pago no exterior, passando a prever um novo requisito para o reconhecimento do crédito estrangeiro.

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