A constituição da SAF e desdobramentos tributários

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Figura presente no meio jurídico há quase um ano e meio, a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) ganhou notoriedade ao longo de 2022, especialmente após o início da sua utilização por alguns grandes clubes brasileiros. A Lei n° 14.193/2021, que veio para regular a SAF, representa um marco na evolução do mercado de futebol, pois permitiu uma maior profissionalização e, principalmente, uma “sobrevida” financeira aos clubes de futebol.

O objetivo deste artigo é apresentar, no formato Perguntas e Respostas, alguns aspectos societários e tributários relativos à Sociedade Anônima de Futebol.

Como se constitui uma SAF?

O artigo 2° da Lei n° 14.193/2021 prevê as seguintes hipóteses:

Constituição originária Ocorre por meio da constituição (criação) originária da chamada “sociedade anônima do futebol”, cujo objeto social será de atividades conexas ao futebol. De forma originária – sem que exista previamente um clube de futebol, a SAF pode ser constituída por iniciativa de pessoa física, pessoa jurídica e/ou fundo de investimento.
Transformação do clube ou pessoa jurídica original É possível a criação de uma SAF por meio da transformação de um clube ou pessoa jurídica original (sociedade empresarial dedicada ao fomento e à prática do futebol) em uma SAF. Nessa modalidade (de transformação), os antigos associados (da associação) ou sócios (da sociedade empresarial) passam a ser titulares de ações da SAF.
Cisão do clube ou pessoa jurídica original Nessa modalidade, há transferência de acervo cindido (ativos e passivos do clube) para a SAF. A cisão possibilita que os clubes multiesportivos, por exemplo, segreguem suas atividades e transfiram apenas as atividades futebolísticas para a SAF. De forma semelhante à transformação, os antigos associados e sócios passam a ser titulares de ações da SAF.

Há alguma outra forma de transferir o patrimônio do clube para a SAF?

Além das hipóteses descritas acima (constituição originária, transformação e cisão), a Lei n° 14.193/2021 prevê a possibilidade de o clube ou a pessoa jurídica original subscreverem ações de emissão SAF. Nessa modalidade, comumente chamada de “dropdown”, o clube (i) adquire ações de emissão da SAF e (ii), em contrapartida, integraliza essas ações (transfere à SAF) ativos de sua titularidade, que são vinculados às atividades de futebol. Os ativos que podem ser transferidos para o recebimento das ações de emissão da SAF podem incluir, sem limitação, nome, marca, ativos imobilizados, registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas, entre outros.

É importante destacar que, apesar de a operação de dropdown também consistir na transferência de ativos do clube para a SAF – assim como na cisão –, os efeitos das operações são completamente diferentes. Na cisão, uma parte do patrimônio do clube é transferida para a SAF e, como consequência, os associados ou sócios do clube se tornam acionistas da SAF. No dropdown, o clube subscreve (adquire) ações da SAF e realiza a integralização (pagamento) dessas ações mediante a transferência de ativos de sua titularidade, de modo que o próprio clube se torna acionista da SAF.

Essa diferença é bastante relevante, na medida em que a manutenção do clube ou da pessoa jurídica original como acionista da SAF (e não seus associados ou sócios) tende a tornar a gestão mais centralizada, facilitando a gestão e a busca de investidores pela SAF.

O modelo de dropdown tem sido adotado pelos clubes pioneiros na transição para a figura da SAF, como foram os casos do Cruzeiro Esporte Clube[1] e do Clube de Regatas Vasco da Gama[2], nos quais as ações da SAF foram subscritas pelos próprios clubes, mediante a transferência de ativos, direitos e obrigações para a SAF. Em fase de negociações, a transferência dos ativos do Santa Cruz Esporte Clube para a SAF, conforme Edital de Convocação para a 1ª Reunião Extraordinária de Sócios indica que o clube pretende realizar a operação de dropdown para transferir os ativos que suportam a atividade futebolística para a futura SAF do clube.

Há tributação nas operações de transferência dos ativos para a constituição da SAF? 

O efeito tributário na transferência dos ativos vai depender do formato do investimento escolhido pela gestão e acionistas da SAF. Nas modalidades em que há a transferência de ativos do clube, associação ou pessoa jurídica original para a SAF (cisão ou dropdown), as operações podem resultar em ganho tributável. Isso acontecerá nas situações em que os ativos conferidos à SAF forem transferidos por valor superior ao que estão contabilizados na associação ou na pessoa jurídica original.

As associações, em regra, detêm isenção de Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (IRPJ e CSLL) em operações vinculadas ao objetivo para o qual foram criadas, conforme o artigo 15 da Lei nº 9.532/1997. No caso das associações de clubes de futebol, a princípio, entende-se que a cisão ou o dropdown de ativos para a criação da SAF estariam diretamente vinculados ao objetivo das associações, por envolver apenas uma especialização e profissionalização das atividades do clube. Porém, para afastar definitivamente a tributação, é necessário analisar o caso concreto para verificar se a isenção é aplicável.

Já sobre a aplicação da isenção de IRPJ e CSLL na venda das ações da SAF pela associação (clube de futebol), o efeito tributário pode ser visto sob outra ótica. Em regra, aplica-se a isenção desses tributos pela natureza da associação; contudo, com a venda das ações da SAF e a consequente desvinculação do clube das atividades de futebol, pode ser conflituoso sustentar a manutenção da isenção, uma vez que as atividades esportivas estarão vinculadas à SAF (da qual a associação não participa mais), enquanto a associação terá mais um caráter de “holding de participação societária”. Nesse cenário, a princípio, entendemos que o IRPJ e CSLL serão devidos em razão do ganho de capital da associação pela venda das ações da SAF.

Isso porque a isenção é restrita às operações da associação. Ou seja, caso (i) o ex-associado do clube ou o sócio da pessoa jurídica original se torne acionista da SAF (o que ocorre na hipótese de cisão) e (ii) realize a venda de suas ações, (iii) a pessoa física deverá apurar ganho de capital, com a aplicação das alíquotas progressivas do Imposto de Renda de 15% a 22,5% (quanto maior o ganho, maior a alíquota).

Como funciona o pagamento de tributos pela SAF?

Diferentemente das associações, a SAF recolhe tributos por meio do Regime Tributário Específico do Futebol (RTEF). Através de uma metodologia inspirada no Simples Nacional, o RTEF unifica o pagamento do Pis, Cofins, IRPJ, CSLL e contribuição previdenciária, por meio de uma alíquota única de 5% sobre a receita mensal recebida pela SAF (regime de caixa). Em adição, a SAF deverá recolher (“por fora”) o ISS e as contribuições sobre a folha de salários.

A lei estabelece que receita mensal deve ser entendida como “a totalidade das receitas recebidas pela SAF, inclusive aquelas referentes a prêmios e programas de sócio-torcedor”, como aquelas decorrentes de merchandising (venda de produtos licenciados), transmissão dos jogos e venda de ingressos. As receitas relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas não serão tributadas pelo RTEF nos cinco primeiros anos – e passarão a ser adicionados à base de cálculo após o sexto ano de constituição da SAF – quando a alíquota será reduzida para 4% da receita mensal (a partir daí sobre uma base maior). Ou seja, há um claro incentivo tributário nos primeiros anos de existência da SAF, uma vez que a receita mais representativa é justamente aquela decorrente da transferência de atletas.

O que podemos esperar da SAF? 

Sob a perspectiva tributária, há alguns pontos que ainda demandam regulamentação, como a operacionalização (no recolhimento dos tributos) e o preenchimento de obrigações acessórias no âmbito do RTEF. Há, talvez, uma corrida contra o tempo pela própria Receita Federal para adaptar seus sistemas ao novo modelo de arrecadação.

Em âmbito nacional, com a evolução do tema no Brasil, podemos esperar operações de investimento mais complexas e com maior número de investidores envolvidos, trazendo novas discussões e desafios para o setor. Contudo, o que o atual cenário do futebol brasileiro nos demonstra que a SAF veio para ficar e cabe ao mercado se adaptar a esse novo modelo de negócio.

 

[1] Ata de Assembleia Geral de Constituição de “Cruzeiro Esporte Clube – Sociedade Anônima do Futebol S.A”. Disponível em <https://cruzeiro.com.br/media/Ata-de-Constituicao-da-SAF-Cruzeiro-Execution.pdf>. Acesso em 28 de fevereiro de 2023.
[2] Ata de Assembleia Geral de Constituição da Vasco da Gama Sociedade Anônima do Futebol. Disponível em <https://vasco.com.br/wp-content/uploads/2023/01/1.-VGSAF-AGE-08.08.2022-Ata-Constituicao-SAF-Site.pdf>. Acesso em 28 de fevereiro de 2023.
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