Até onde pode ir a política de redução do contencioso tributário?

Iniciativa do CNJ para diminuir litigiosidade é bem-recebida, mas tem limitações

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Advogados tributaristas receberam bem a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para assegurar o direito à solução de conflitos tributários de maneira efetiva e célere, por meio da criação da Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado à Alta Litigiosidade do Contencioso Tributário. Embora eles considerem que ainda há obstáculos a serem superados, e que uma ampla reforma do sistema tributário brasileiro seria bem-vinda, a criação da política tem sido vista como um passo na direção correta. Ela foi instituída por meio da Resolução CNJ 417/22 (de 31/08/22). 

Para Bruna Barbosa Luppi, sócia do Vieira Rezende Advogados, a nova política tem como potencial efeito uma importante e necessária alteração de paradigma, substituindo o atual cenário de embate entre Fisco e contribuintes por um modelo de cooperação. Ela considera que a política melhorará a relação entre Fisco e contribuintes, estimulando a prevenção de litígios e a autocomposição em matéria tributária — e, consequentemente, reduzindo o contencioso e gerenciando de forma mais efetiva a litigiosidade.

“A Resolução CNJ 471/22 evidencia que o CNJ está ciente e disposto a promover medidas capazes de reduzir a alta litigiosidade do contencioso tributário brasileiro”, considera Sávio Hubaide, associado do Freitas Ferraz Advogados. No entanto, ele lembra que a norma possui alcance limitado por fatores como o âmbito de competência das normas produzidas pelo CNJ e a reserva à lei da criação de hipóteses de extinção do crédito tributário. “De toda forma, trata-se de medida que sinaliza diretrizes a serem observadas pelo Judiciário, e que podem servir de incentivo a reformas mais amplas”, considera.

Vale lembrar que o problema que a política pretende atacar, visando assegurar o direito à solução de conflitos tributários de maneira efetiva e célere, é complexo: vai desde tribunais administrativos que não observam precedentes vinculantes dos tribunais superiores, até a ausência de uniformidade na aplicação da legislação tributária, passando por despreparo técnico dos magistrados e falta de cooperação e intercâmbio de informações entre tribunais. Com tudo isso, o contencioso tributário é tido como um dos principais responsáveis pela morosidade da Justiça no Brasil. De acordo com o relatório Justiça em Números 2021, do CNJ, havia naquele ano mais de 26 milhões de execuções fiscais em trâmite no Judiciário — e elas representavam 36% do total de casos pendentes de solução na Justiça.

Uma das iniciativas previstas para atacar o problema é a criação da Semana Nacional da Autocomposição Tributária, que prevê a realização de mutirões de conciliação tributária entre contribuintes e Fisco. Outra é a criação de uma rede para fazer com que as esferas administrativa e judicial conversem entre si e troquem informações. 

Na entrevista abaixo, Hubaide e Luppi abordam os principais pontos da política judiciária recentemente criada e falam sobre seus desafios e potenciais resultados. 


Quais são os principais objetivos da política para reduzir o contencioso tributário judicial e administrativo? De que forma ela pretende atingir esse objetivo?

Sávio Hubaide: A Resolução CNJ 471/22 possui como finalidade “assegurar a todos o direito à solução dos conflitos tributários de forma efetiva, garantindo a celeridade e o acesso à Justiça”. Para tanto, prevê a criação de ações, pesquisas e projetos que possuam como diretrizes a atuação cooperativa entre diferentes órgãos para a solução de conflitos tributários, incluindo a participação de entes privados, o treinamento de magistrados, servidores e conciliadores, o acompanhamento estatístico, a transparência ativa, a priorização de soluções consensuais, a prevenção e a desjudicialização de demandas tributárias.

Além disso, a Resolução prevê a criação do “Prêmio Eficiência Tributária”, para premiar projetos e programas inovadores e eficazes no tratamento da alta litigiosidade tributária, também buscando a autocomposição, os métodos extrajudiciais de resolução de conflitos e o intercâmbio de informações entre órgãos.

Bruna Barbosa Luppi: A política judiciária para reduzir o contencioso tributário judicial e administrativo tem como principal objetivo assegurar a todos o direito à solução dos conflitos tributários de maneira efetiva, garantindo a celeridade e o acesso à justiça. 

Para tanto, prevê o desenvolvimento e a implementação de políticas públicas objetivando não apenas o enfrentamento da alta litigiosidade tributária e a consequente redução de litígios, mas também incentivando um relacionamento cooperativo entre aqueles que participam do contencioso tributário (instituições judiciárias, administrações tributárias, procuradorias e contribuintes), por meio de condutas que envolvem:

  • cooperação no ambiente tributário administrativo e judicial para a aplicação uniforme da legislação tributária, respeito aos precedentes em matéria tributária e estímulo à solução adequada de conflitos; 
  • treinamento dos profissionais (magistrados, servidores, conciliadores e mediadores);
  • acompanhamento estatístico específico da litigiosidade tributária;
  • transparência ativa nas ações;
  • atuação em parceria com entes federativos, advocacia pública e privada e, ainda, contribuintes;
  • busca de soluções consensuais em conflitos tributários;
  • estímulo ao desenvolvimento e implementação de mecanismos para prevenção e desjudicialização de demandas tributárias; e, ainda, 
  • identificação de boas práticas relativas ao tratamento adequado de conflitos tributários.

Uma das propostas da Resolução CNJ 471/22 é a realização de mutirões e mobilizações para estimular a realização de acordos entre as partes envolvidas em demandas tributárias. Qual é o potencial desse tipo de iniciativa?

Sávio Hubaide: Um dos estudos que motivaram a edição da Resolução 471/22 traçou um diagnóstico do contencioso tributário nacional, e, fazendo referência ao relatório “Justiça em Números 2021”, do CNJ, identificou a existência de mais de 26 milhões de execuções fiscais em trâmite no Judiciário e uma taxa de congestionamento de 87,3%. Desses casos, as execuções fiscais representam 36% do total de casos pendentes de solução no Judiciário.

Desde a publicação da Lei 13.988/20, que regulamentou a transação tributária, métodos consensuais de resolução de conflitos entre Fisco e contribuinte têm sido cada vez mais incentivados. Embora seja uma medida louvável que deva ser incentivada, a diretriz de priorização das soluções consensuais e medidas como a criação da “Semana Nacional da Autocomposição Tributária” ainda são incipientes, dependendo de regulamentação para que se possa avaliar sua real eficácia.

Espera-se que medidas como os mutirões de conciliação venham a ser realizados, pois possuem considerável potencial, a exemplo de casos em que não há divergência de interpretação tributária, mas sim de valores, questões relacionadas a garantias ofertadas, execuções fiscais de valores baixos, que não só contribuem para o congestionamento, como também podem se tornar mais custosas ao Estado que o eventual valor do crédito tributário a receber.

Bruna Barbosa Luppi: A realização de mutirões e mobilizações para estimular a realização de acordos entre as partes envolvidas em demandas tributárias é, sem dúvida, uma medida louvável.

Para estimular essa ação, a Resolução CNJ 471/22 recomenda aos tribunais a criação da “Semana Nacional da Autocomposição Tributária”, a ser realizada uma vez por ano, preferencialmente no mês de outubro, que será regulamentada por meio de portaria específica.

Esse tipo de iniciativa pode ter um potencial interessante. Primeiro, porque a criação de uma semana específica para tal finalidade concentra todos os esforços justamente para estimular a busca de soluções consensuais em matéria tributária, sendo essa uma das diretrizes da política judiciária para reduzir o contencioso tributário.

Segundo, porque uma semana dedicada especificamente à implementação da autocomposição tributária terá uma relevante contribuição nas estatísticas relacionadas à redução da litigiosidade, permitindo que processos que poderiam demorar anos e anos sejam resolvidos de maneira mais célere e eficiente por meio da autocomposição, com concessões mútuas.

No entanto, não há dúvidas de que essa é uma iniciativa permeada de desafios. Isso porque a autocomposição deve atender aos interesses do Fisco e dos contribuintes, mas considerando o princípio a indisponibilidade do crédito tributário, pode haver entraves nesse acordo justamente porque dependerá muito da discricionariedade que a Fazenda Pública terá para propor em prol do contribuinte, dentro dos limites e parâmetros que venham a ser definidos para tanto, e visando a atender a economicidade, celeridade e eficiência na administração tributária.


Outra iniciativa é a criação da Rede Nacional de Tratamento Adequado à Alta Litigiosidade do Contencioso Tributário, para estimular a cooperação entre o ambiente tributário administrativo e judicial. Atualmente, essa cooperação existe? O que se espera dessa rede?

Sávio Hubaide: A criação da Rede Nacional de Tratamento Adequado à Alta Litigiosidade do Contencioso Tributário, cujas competências e composição ainda serão estabelecidas pelo CNJ, pretende propiciar a cooperação entre as esferas tributárias administrativa e judicial, com objetivos de aplicação uniforme da legislação tributária, observância aos precedentes e solução adequada de conflitos. 

Com essa medida, pretende-se incentivar a interlocução de informações, provas e diligências entre administrações tributárias, procuradorias, tribunais administrativos, OAB, defensorias públicas e Ministério Público, por meio da celebração de protocolos institucionais que vinculem os órgãos a determinados temas e entendimentos.

É mais uma proposta da resolução, com vistas a promover princípios como o da eficiência, da celeridade e da duração razoável do processo. Atualmente, essa cooperação é bastante precária. Há diversos tribunais administrativos que sequer se obrigam a observar precedentes vinculantes dos tribunais superiores, o que afronta a eficiência e incentiva a judicialização, além de potencializar a condenação das fazendas em honorários sucumbenciais. Ademais, embora muitas vezes os tribunais administrativos produzam e examinem extensas provas documentais e contábeis, nem sempre são devidamente aproveitadas pelo Judiciário, em que as discussões usualmente voltam para a “etapa zero”.

Bruna Barbosa Luppi: Atualmente essa cooperação entre o ambiente tributário administrativo e judicial é praticamente inexistente, pois o que se vê é uma total falta de comunicação entre os tribunais administrativos e judiciais em razão da ausência de uniformidade na aplicação da legislação tributária, inobservância dos precedentes tributários por não haver norma vinculando as decisões administrativas aos precedentes judiciais proferidos em recurso repetitivo e repercussão geral, decisões divergentes sobre o mesmo tema, despreparo técnico dos magistrados, falta de políticas e mecanismos de cooperação e intercâmbio de informações entre tribunais, entre outros.

Essa situação obviamente traz dificuldades e, no final das contas, acaba por gerar ainda mais conflitos e disputas entre Fisco e contribuintes e um ambiente de pouca eficiência, aumentando a litigiosidade e retardando a solução de controvérsias – indo, portanto, na contramão de uma política judiciária para reduzir o contencioso tributário judicial e administrativo.

Por meio da criação da Rede Nacional de Tratamento Adequado à Alta Litigiosidade do Contencioso Tributário, busca-se estimular, implementar e estabelecer uma efetiva rede de cooperação entre o ambiente tributário administrativo e judicial, por meio de ações para a necessária observância dos precedentes em matéria tributária, aplicação uniforme da legislação tributária, solução adequada de conflitos, que seja capaz de mitigar a evolução desenfreada e desnecessária do contencioso tributário e estimular a aplicação de procedimentos uniformes e efetivos para reduzir a alta litigiosidade atualmente experimentada, o que se dará por meio de ações, pesquisas e projetos instituídos com tal finalidade.

Além disso, a implementação da referida rede prevê a celebração de protocolos institucionais para intercâmbio de informações, diligências e provas, ações voltadas para assistência e orientação aos contribuintes, maior interlocução entre os órgãos atuantes, adequada formação e treinamento dos profissionais atuantes, aprimoramento das ferramentas e ambientes digitais, plataformas online de resoluções de disputas, entre diversos outros mecanismos compatíveis com as diretrizes para dar efetividade à política judiciária para reduzir o contencioso tributário judicial e administrativo.


Quais são os potenciais efeitos da nova política? Ela poderá reduzir o contencioso tributário administrativo e judicial de forma relevante? Ou, para isso, é necessária uma reforma mais ampla do sistema tributário?

Sávio Hubaide: A Resolução CNJ 471/22 evidencia que o CNJ está ciente e disposto a promover medidas capazes de reduzir a alta litigiosidade do contencioso tributário brasileiro. Medidas como o treinamento especializado de julgadores e servidores, a criação de cooperação entre órgãos, incluindo as esferas administrativa e judicial, a instituição de prêmios para programas que promovam a eficiência tributária e a semana nacional da autocomposição podem produzir bons impactos na melhoria do cenário atual.

Por outro lado, a resolução possui alcance limitado, tendo em vista o âmbito de competência das normas produzidas pelo CNJ, a indisponibilidade do interesse público, a atividade vinculada dos agentes administrativos, a reserva de criação de hipóteses de extinção do crédito tributário à lei e a necessidade de alteração de regimentos internos de cada tribunal administrativo. De toda forma, trata-se de medida que sinaliza diretrizes a serem observadas pelo Judiciário, e que podem servir de incentivo a reformas mais amplas.

Bruna Barbosa Luppi: A nova política judiciária para reduzir o contencioso tributário judicial e administrativo tem como potencial efeito uma importante e necessária alteração de paradigma, de modo a substituir o atual cenário de embate entre Fisco e contribuintes para um modelo de cooperação entre os diversos agentes que atuam no contencioso tributário, com a promoção de um ambiente que envolve ações, estudos e iniciativas conjuntas para uma maior efetividade, celeridade e eficiência na solução, e até prevenção, dos conflitos de natureza tributária.

Essa nova política permitirá um estreitamento da relação entre Fisco e contribuintes através de uma atuação mais efetiva e transparente, fortalecendo a confiança entre as partes que atuam no contencioso tributário, o que certamente criará um contexto de maior estímulo à prevenção de litígios e autocomposição em matéria tributária, tendo como consequência a redução do contencioso e um maior e mais efetivo gerenciamento da litigiosidade atual.

Uma reforma mais ampla e estrutural do sistema é sempre bem-vinda e, na verdade, temos visto iniciativas que contribuem para tanto, como aprimoramento da transação tributária, discussões acerca da arbitragem tributária, negócio jurídico processual, simplificação de normas, propostas para reforma e simplificação do processo tributário com ações que buscam a solução consensual de conflitos, desjudicialização, redução do contencioso, por exemplo.

Sem dúvida, é necessário um conjunto de iniciativas e medidas bem amplas, e o que se espera com tudo isso é, no final das contas, a efetiva promoção de uma verdadeira e positiva mudança cultural no tratamento do contencioso tributário.

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