Reforma do RenovaBio proposta pelo governo gera polêmica

Modificações no programa, que vem funcionando bem, podem desvirtuá-lo de seus objetivos

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Após pressão das distribuidoras de combustíveis, o governo anunciou que iria fazer alterações no RenovaBio, programa que vinha alcançando resultados positivos na promoção da descarbonização do setor de combustíveis. Mas as produtoras de biocombustíveis também reclamaram das mudanças pretendidas, e agora a questão será discutida por meio de um grupo de trabalho formado no âmbito do Ministério das Minas e Energia (MME), sem data para conclusão. 

O RenovaBio estipula metas de comercialização de combustíveis fósseis e biocombustíveis para as distribuidoras. Elas são obrigadas a adquirir créditos de descarbonização (CBios) anualmente, mas têm se queixado da baixa oferta dos títulos e dos preços dos créditos. Estes últimos são emitidos pelos produtores de biocombustíveis. Como o preço dos combustíveis e dos CBios subiu, muitas alegam que as margens estão pressionadas. 

“Alterar um programa que tem funcionado bem e alcançado suas metas pode prejudicar os investimentos já feitos e a indústria produtora de biocombustíveis, que tomou decisões apoiada na expectativa de que o RenovaBio seria uma política de Estado duradoura”, considera Ana Carolina Barbosa, advogada do Freitas Ferraz Advogados. 

Uma das polêmicas alterações propostas pelo governo era deslocar a obrigação da compra dos CBios para as refinarias. Para Barbosa, isso desvirtuaria o programa, uma vez que as refinarias não são responsáveis por biocombustíveis, mas as distribuidoras, sim — elas têm o papel importante de intensificar a sua comercialização, levando à expansão da produção. 

Outro ponto polêmico é a ideia de incluir no cumprimento das metas de descarbonização os créditos de carbono em geral e também as cédulas de produto rural (CPRs) Verdes. “Essa ampliação pode enfraquecer o programa, que tem como foco principal a produção dos biocombustíveis. É fundamental que o governo federal incentive outros instrumentos econômicos para descarbonização da economia, implementando uma política nacional robusta, por meio do desenvolvimento e do fortalecimento de outras políticas fundamentais, como o mercado de carbono regulado, da preservação das florestas e das práticas de reflorestamento”, avalia Barbosa. 

Na entrevista abaixo, Barbosa explica o funcionamento do RenovaBio e avalia possíveis impactos das mudanças propostas pelo governo.  


O que motivou a decisão do governo de alterar o RenovaBio? O programa vinha alcançando os resultados pretendidos?  

Ana Carolina Barbosa: O preço dos combustíveis e seu impacto direto na inflação brasileira, juntamente com as queixas das distribuidoras no que diz respeito à oferta de créditos de descarbonização (CBios), tem motivado o governo federal a rever a principal política de descarbonização da economia. 

A Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio) foi instituída pela Lei 13.576/17. O programa visa a redução de gases de efeito estufa (GEE) do setor de produção de combustíveis no Brasil, por meio de incentivos à produção de biocombustíveis. O programa é parte estratégica da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), que contém metas e compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris, o qual vinha alcançando os resultados pretendidos. 

Em 2021, 21 milhões de CBios foram validados na Plataforma CBios, conforme informações da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). As partes obrigadas ao cumprimento de metas individuais no programa, que são as distribuidoras de combustíveis fósseis (gasolina e óleo diesel), cumpriram 96,8% do total das metas atribuídas para o ano, garantindo a aposentadoria de 24.405.193 de CBios.


Pela proposta, pretende-se transferir a obrigatoriedade de comprar os CBios das distribuidoras de combustíveis para as refinarias e importadoras de combustíveis fósseis. Qual seria o impacto dessa mudança?

Ana Carolina Barbosa: As distribuidoras de combustíveis, atualmente obrigadas a cumprir metas de comercialização de combustíveis fósseis e biocombustíveis, adquirem CBios anualmente, mas têm se queixado da baixa oferta dos títulos e dos preços dos créditos. Na verdade, elas alegam que as emissoras dos CBios estariam segurando a oferta para induzir um aumento do preço dos títulos. 

Essa lógica de mercado é intrínseca ao programa, ou seja, quanto mais biocombustível as distribuidoras comercializam, mais a sua cadeia é fortalecida e menor a intensidade de carbono da matriz energética. As produtoras de biocombustíveis precisam vender sua produção para emitirem os CBios, gerando um círculo virtuoso e o aumento da produção. A venda de biocombustíveis também é monitorada, pois as notas fiscais de venda são apresentadas à ANP, o que promove o combate à sonegação fiscal e preserva a transparência do programa.

As alterações sugeridas deslocariam a obrigação da aquisição dos CBios para as refinarias, o que poderia desvirtuar o programa. As refinarias não são responsáveis por biocombustíveis. Já as distribuidoras têm um papel importante na cadeia ao intensificar a sua comercialização, levando à expansão da produção. Com isso, a transparência na comercialização e o combate à sonegação também poderiam ser prejudicados.

As refinarias poderiam ser incluídas na obrigatoriedade de compra dos CBios, mas sem retirar a obrigação das distribuidoras, que são, na verdade, as grandes responsáveis pelo aumento da venda de biocombustíveis.


Outra possível mudança no programa é que os créditos de carbono em geral e CPRs Verdes também sirvam para que as refinarias e importadoras de combustíveis fósseis cumpram metas de descarbonização. Essa ampliação do escopo é positiva? 

Ana Carolina Barbosa: Essa ampliação pode enfraquecer o programa, que tem como foco principal a produção dos biocombustíveis. É fundamental que o governo federal incentive outros instrumentos econômicos para descarbonização da economia, implementando uma política nacional robusta, por meio do desenvolvimento e do fortalecimento de outras iniciativas fundamentais, como o mercado de carbono regulado, a preservação das florestas e as práticas de reflorestamento. 

Alterar um programa que tem funcionado bem e alcançado suas metas pode prejudicar os investimentos já feitos e a indústria produtora de biocombustíveis, que tomou decisões apoiada na expectativa de que o RenovaBio seria uma política de Estado duradoura. 


Em sua avaliação, as mudanças propostas podem contribuir para aprimorar o programa? Em caso afirmativo, de que forma?

Ana Carolina Barbosa: O Brasil tem uma vocação inquestionável para o desenvolvimento de políticas sustentáveis, como a de desenvolvimento dos biocombustíveis. Além da experiência que o país teve com o Proálcool, que é considerado um programa bem-sucedido da indústria nacional, o país possui diversos estudos na área de transformação de biomassa (bateria solar) usando cana de açúcar, milho e agave, para produção de três grandes categorias de biocombustíveis: metano, etanol e derivados de óleos vegetais (biodiesel). 

Existem também os programas para desenvolvimento de novas tecnologias automotivas adaptadas aos biocombustíveis, carros elétricos e produção de hidrogênio verde. Mas a inclusão de outros combustíveis no programa RenovaBio, como o HBio, que é uma mistura de diesel com apenas 5% de origem renovável (vegetal ou gordura), deveria levar em consideração também o seu potencial poluidor. Afinal, o sentido da política é exatamente o de diminuir o uso e a produção de combustíveis fósseis e incentivar a produção de biocombustíveis, que são menos poluentes.

A inclusão de outros ativos ambientais, do tipo créditos de carbono e cédulas de produto rural (CPRs) verde, como alternativas para as distribuidoras aos CBios pode parecer um incentivo ao investimento em outros ativos ambientais relevantes, mas tem o potencial de esvaziar o programa de incentivo aos biocombustíveis, pois esses ativos não têm uma relação tão direta com a produção de biocombustível. 

No desenvolvimento da regulamentação do mercado de carbono, devem ser considerados os compromissos já assumidos com o RenovaBio, equilibrando as obrigações de compensação com aquisição de créditos de carbono, para que o setor não seja extremamente onerado. De todo modo, as propostas sugeridas podem desvirtuar o programa e ainda gerar problemas de governança.

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