Locadores e locatários buscam reequilíbrio de contratos

Troca do IGP-M por IPCA encontra boa adesão

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A alta de 16,74% do Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M) neste ano, até outubro, e de 21,73% nos últimos 12 meses, está levando muitos locatários a buscar a substituição do indicador nos contratos de locação pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que, até setembro, avançava 6,9% no ano e 10,25% nos doze meses anteriores. 

Frequentemente, essa troca tem ocorrido de comum acordo entre locatários e locadores. “O próprio mercado percebeu que essa seria a solução mais acertada. Assim, tem sido comum as partes contratantes alterarem o fator de correção a partir de um entendimento entre elas”, observam os advogados Lúcia Aragão e Ewerton Oliveira, respectivamente sócia e associado do Vieira Rezende Advogados. Mas, nas situações em que o acordo não é possível, a solução pode estar na Justiça. “Apesar de não haver uma jurisprudência pacificada sobre o tema, o Judiciário vem acolhendo alguns pedidos de mudança de indicadores dos contratos de aluguel”, afirma a advogada Paula Chaves, sócia do Coimbra & Chaves Advogados. As decisões vêm sendo baseadas nas teorias da imprevisão e onerosidade excessiva, previstas nos artigos 317 e 478 do Código Civil. Nesses casos, o locatário precisa demonstrar que houve um desequilíbrio econômico imprevisível do contrato. 

A alta acentuada do IGP-M também levou à apresentação, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 1.0216/21, que propõe que a correção dos contratos de locação comercial e residencial não possa ser superior ao IPCA. O projeto é de autoria do deputado Vinicius Carvalho (Republicanos-SP). 

Chaves considera a iniciativa perigosa e ineficiente: além de se tratar de uma intervenção indiscriminada nas relações particulares, os proprietários podem usar outros meios para conseguir os valores que julgam adequados para os aluguéis. Já Aragão e Oliveira veem a medida como excessiva, uma vez a pandemia é um episódio excepcional e o ordenamento jurídico brasileiro tem dispositivos para reestabelecer o equilíbrio das relações contratuais quando ocorrem eventos imprevisíveis. 

Na entrevista abaixo, Chaves, Aragão e Oliveira abordam a substituição de indicadores nos contratos de aluguel. 


Nos contratos imobiliários (de aluguel ou financiamentos), em quais situações é possível trocar os indicadores de reajuste pactuados? Quando é necessário acionar a Justiça?

Paula Chaves: Toda relação contratual comporta renegociações entre as partes, de forma a realinhar os seus interesses e adequar a relação jurídica a eventuais distorções extraordinárias e imprevisíveis provocadas ao longo da vigência do contrato. Assim, nos contratos imobiliários, o locatário pode, caso entenda que houve um desequilíbrio superveniente e inesperado em razão da alta abrupta do IGP-M, provocar o proprietário para que as partes discutam novos termos para o valor do aluguel e do seu índice de correção monetária. Argumentos fundamentados na teoria da onerosidade excessiva e na teoria da imprevisão vêm sendo utilizados para essas discussões do desequilíbrio superveniente provocado pela utilização do IGP-M como índice de correção monetária do valor do aluguel.

Entretanto, para que negociação ocorra na esfera extrajudicial, é necessário que haja o interesse comum das partes em rever determinadas condições contratuais. Assim, caso o proprietário se mostre irredutível em negociar novos termos e condições com o locatário, é possível acionar o Poder Judiciário para a troca do índice de correção, devendo o locatário demonstrar que houve um desequilíbrio econômico imprevisível do contrato. Ou seja, apesar de haver precedentes em que os tribunais admitem a troca do IGP-M pelo IPCA, a análise do direito do locatário deve ser feita caso a caso, analisando-se, dentre outros fatores, o contexto em que foi celebrado o contrato de locação e se o aumento do IGP-M já não era um fato conhecido pelas partes à época.

Lúcia Aragão e Ewerton Oliveira: Primeiramente, é importante ter em mente que para a necessária preservação do princípio da segurança jurídica é de fundamental importância que as regras fixadas nos contratos sejam mantidas. Assim, se um contrato foi celebrado prevendo a aplicação de determinado índice como o seu fator de correção monetária, as partes devem buscar ao máximo sua preservação. Não obstante, há que se observar que no curso das relações contratuais, especialmente naquelas que perduram por tempos mais longos, poderão ocorrer situações extraordinárias e imprevisíveis que resultam em desequilíbrio da relação contratual e por isso serão merecedoras de tratamento especial. É exatamente o que se percebeu em função da pandemia, quando contratos reajustados com base no IGP-M passaram a ser substancialmente impactados em função da abrupta e inesperada subida da cotação do dólar, que compõe a base de cálculo do IGP-M. Nesse sentido, a solução dada foi justamente a troca do indicador de reajuste monetário a ser aplicado, partindo-se para a aplicação do IPCA em detrimento do IGP-M, sob o entendimento de se tratar de fator de correção que reflete de maneira mais justa os efeitos inflacionários observados no Brasil durante o período. Interessante notar que houve a percepção do próprio mercado de que essa seria a solução mais acertada, sendo comum que as partes contratantes resolvessem alterar o fator de correção a partir de entendimentos entre elas. Contudo, por vezes, haverá quem resista à aplicação das necessárias alterações, buscando se beneficiar da letra fria do contrato em detrimento da existência de uma relação contratual justa e saudável. É nessas situações que a interferência do Poder Judiciário se revela necessária, de modo a reequilibrar as relações. 


Como a Justiça vem acolhendo os recentes pedidos de mudança de indicadores nos contratos de aluguel?

Paula Chaves: Apesar de não haver uma jurisprudência pacificada sobre o tema, o Judiciário vem acolhendo alguns dos pedidos de mudança de indicadores dos contratos de aluguel. Essas decisões que acolheram a substituição dos indicadores reconheceram o desequilíbrio causado pela utilização do IGP-M como índice de correção monetária, entendendo que a utilização do IPCA possui uma melhor aderência à realidade inflacionária nacional. Isso porque o IGP-M corresponde a uma média ponderada entre os índices IPA (produtor), IPC (consumidor) e INCC (construção civil), que estão ligados aos preços das produções de matérias-primas, agronegócio, materiais de construção e commodities do setor industrial, ou seja, indicadores que possuem maior volatilidade quando comparados, por exemplo, ao IPCA, uma vez que sofrem forte influência do dólar.

Esse reconhecimento do desequilíbrio causado pela utilização do IGP-M como balizador na troca do índice é sustentado, em grande maioria dos julgados, pelas teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, previstas respectivamente nos artigos 317 e 478 do Código Civil.

Lúcia Aragão e Ewerton Oliveira: O Poder Judiciário tem demonstrado grande sensibilidade em relação ao tema e acolhido os pedidos de alteração dos indicadores de correção monetária aplicados nos contratos de aluguel. Isso ocorre justamente sob o entendimento de que o IGP-M passou a refletir uma série de elementos extraordinários que tornaram desequilibradas as relações contratuais, sendo de fundamental importância reequilibrá-las por meio da substituição pelo IPCA. Cabe pontuar, contudo, que as decisões proferidas a respeito da matéria ainda precisam ser definitivamente confirmadas com a consequente consolidação de uma orientação jurisprudencial sobre o assunto. 


Por que o IGP-M é comumente utilizado para a correção de contratos imobiliários, dado que ele é um indicador que reflete fortemente a variação cambial?

Paula Chaves: Existem diversas razões que podem justificar o porquê usa-se, historicamente, o IGP-M como índice de correção nos contratos de locação. Uma delas está em sua composição: dentre os seus componentes, o IGP-M considera a variação do INCC, que apura a variação de preços da construção civil. Além disso, o IGP-M é um índice que, ao contrário do IPCA, considera as variações de preço de toda a cadeia produtiva, desde os preços do atacado, até o consumidor e o setor produtivo (já o IPCA apresenta uma aderência maior à variação de preços da economia doméstica). Assim, ainda que a sua composição o deixe sujeito a uma forte exposição frente à variação cambial, o IGP-M é historicamente visto no mercado como um índice não só capaz de acompanhar as variações de preço do setor da construção civil, mas também de acompanhar mudanças de preços que afetem as cadeias de consumo e produção nacional. Outro ponto de destaque é que, por ser apurado por uma instituição privada e confiável do mercado nacional (a Fundação Getúlio Vargas), ele é considerado como um “termômetro da economia brasileira”.

Como a lei de locações (Lei 8.245/91) e o Código Civil garantem a liberdade das partes em negociar os índices de correção monetária do contrato, a prática levou à adoção do IGP-M como o índice mais comum para correção monetária dos contratos imobiliários.

Lúcia Aragão e Ewerton Oliveira: A aplicação do IGP-M se deve basicamente a um fator histórico. Necessitava-se de um índice que, para além de refletir de maneira correta a variação inflacionária, tivesse a data de fechamento do seu cálculo ocorrendo no final de cada mês, facilitando a gestão da sua aplicação aos contratantes. Isso é o que explica a adoção do IGP-M.


O projeto de lei 1026/21 busca limitar o reajuste de contratos de locação comercial e residencial ao IPCA. Qual é a sua opinião a respeito?

Paula Chaves: Precisamos separar as discussões sobre o tema. Por um lado, é função do Estado brasileiro garantir às partes de um contrato particular os instrumentos legais que as permitam rediscutir, seja em esfera extrajudicial ou judicial, disposições contratuais que entendam como excessivamente onerosas ou que já não reflitam a real intenção das partes ao momento da celebração do contrato. Claro, o direito de discussão e negociação nem sempre gera o resultado almejado pela parte que o iniciou.

Todavia, quando o poder público interfere tão diretamente na relação entre particulares para ditar qual deve ser a regra aplicável ao reajuste dos aluguéis, pode haver uma afronta ao princípio da autonomia da vontade das partes, com a violação ao direito delas de estipular as condições contratuais.

É inegável que estamos vivenciando um período de alta acelerada do IGP-M, o que pode sim caracterizar uma onerosidade excessiva para o locatário do contrato de locação, mas a “solução legislativa” para o problema é um remédio perigoso e potencialmente ineficiente. Perigoso, pois afronta a liberdade das partes, sendo uma forma de intervenção indiscriminada nas relações particulares, sem a análise das particularidades que levaram a cada relação jurídica formada no contrato de aluguel. Ineficiente, pois nada impede que proprietários utilizem de outras técnicas e instrumentos para terem garantido o montante que entendem adequado, como o simples aumento do valor do aluguel ao momento de celebração do contrato (incluindo no cômputo do preço a projeção do IGP-M), ou mesmo a adoção de contratos de locação com vigência de 12 meses, após a qual seria necessária a negociação de um novo contrato, no qual o proprietário negociará o “reajuste” que entenda ser devido.

Lúcia Aragão e Ewerton Oliveira: o mercado deve ter a liberdade de contratação e de aplicação dos fatores de correção monetária que considerar mais adequados a cada caso. Note-se que historicamente nunca houve a necessidade da intervenção estatal para o correto funcionamento do assunto. Parece um tanto excessivo o estabelecimento de uma lei em decorrência de uma questão excepcional (a pandemia), sobretudo quando se constata que o próprio ordenamento jurídico vigente tem os remédios necessários para o reequilíbrio das relações contratuais diante da ocorrência de eventos imprevisíveis.

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