Delação premiada na CVM: por que não emplacou?

Apesar de vantajoso para o mercado, Acordo de Supervisão pode deixar os delatores vulneráveis

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O presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), João Pedro Nascimento, incentivou os envolvidos com a fraude contábil da Americanas a fazerem acordos de delação premiada com a autarquia. Ainda que esteja previsto desde 2017 no âmbito da CVM, esse instrumento, chamado de Acordo de Supervisão, ainda não foi utilizado – a despeito das potenciais vantagens que poderia trazer para os acusados de ilícitos, para a autarquia e para o mercado de capitais.

“Para o mercado de capitais, o Acordo de Supervisão pode representar um mecanismo para redução de custos processuais e do prazo de duração dos processos, com a garantia de apuração mais abrangente do ilícito e punição dos envolvidos, ainda que possa haver extinção ou redução da pena administrativa aplicável ao delator”, avalia Gyedre Carneiro de Oliveira, sócia do Carneiro de Oliveira Advogados.

Ao contar com a cooperação do delator para a apuração dos fatos, a autarquia poderia identificar os demais envolvidos em práticas ilícitas e comprovar a infração. Para os infratores, seria possível extinguir ou reduzir eventual penalidade a que estariam sujeitos se o processo na CVM fosse levado a julgamento.

No entanto, o uso do mecanismo pode estar esbarrando no fato de que essa extinção ou redução de pena não se estende a outras esferas, como a penal – o acusado continuaria sujeito a atuação de outras instituições, como o Ministério Público. Oliveira explica que, ao contrário do que ocorre com os acordos de leniência no âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (regulados pela Lei 12.529/2011), o acordo com a CVM não confere imunidade ao delator em qualquer outra esfera, inclusive a penal. Por conta disso, o reconhecimento da prática do ilícito pode, em tese, não só não ajudar, como atrapalhar, ao tornar o delator mais vulnerável a eventuais condenações em outras esferas – fator que explica a inexistência Acordos de Supervisão assinados com a CVM.

Na entrevista abaixo, Oliveira aborda o funcionamento dos Acordos de Supervisão e a diferença entre esse instrumento e o termo de compromisso.


– O presidente da CVM incentivou os envolvidos com o caso Americanas a fazerem acordos de delação premiada (acordo administrativo em processo de supervisão) com a autarquia. Como funcionam esses acordos e qual é a diferença entre eles e os termos de compromisso?

Gyedre Carneiro de Oliveira: No âmbito da CVM, os acordos administrativos em processo de supervisão (Acordos de Supervisão) estão previstos na Lei 13.506/2017 e na Resolução CVM 45/2021. Em linhas gerais, a celebração dos Acordos de Supervisão pressupõe a confissão da prática da infração, com a extinção da ação punitiva ou redução de 1/3 a 2/3 da penalidade administrativa aplicável, condicionada e na medida da efetiva e permanente cooperação do infrator delator na apuração dos fatos, identificação dos demais envolvidos e obtenção de informações e documentos que comprovem a infração. Por sua importância na apuração das infrações sob investigação, há previsão legal de sigilo sobre o conteúdo e o signatário de tais acordos até o julgamento pela CVM do processo a que se referem.

Já os termos de compromisso, previstos na Lei 6.385/76 e na Resolução CVM 45/2021, não pressupõem a confissão ou o reconhecimento da infração por parte de seus signatários, mas exigem o compromisso de cessação da prática considerada ilícita e a correção das irregularidades apontadas, além do pagamento de compensação em relação aos prejuízos causados. Diferentemente dos Acordos de Supervisão, os termos de compromisso não estão sujeitos a sigilo obrigatório.

Tanto a proposta de Acordos de Supervisão quanto a proposta de termo de compromisso estão sujeitas à análise da CVM quanto a sua conveniência e oportunidade. No entanto, a proposta de Acordos de Supervisão pode ser apresentada até o início do julgamento do processo pelo Colegiado da CVM, enquanto a intenção de realizar o termo de compromisso deve ser informada à CVM dentro do prazo disponível para apresentação da defesa no processo administrativo, podendo sua proposta ser apresentada nos 30 dias subsequentes.

O maior incentivo da CVM na celebração de um Acordos de Supervisão é a cooperação do infrator na obtenção de provas e comprovação do ilícito e partes envolvidas, dando maior celeridade ao processo administrativo e aumentando suas chances de obtenção de provas suficientes do ilícito praticado, sem, no entanto, eximir necessariamente o delator da responsabilidade pelo ilícito praticado.

Já o termo de compromisso tem como objetivo encerrar o processo administrativo, reduzindo os custos processuais, mas reprimindo as condutas consideradas inadequadas e obtendo ressarcimento pelos danos causados.


– Quais fatores a CVM analisaria para decidir se fecha ou não o acordo?

Gyedre Carneiro de Oliveira: As propostas de Acordos de Supervisão serão analisadas pelo Comitê de Acordos de Supervisão (CAS), que avaliará os benefícios que a cooperação do delator traria para a apuração dos fatos, identificação dos demais envolvidos na prática da infração e obtenção de informações e de documentos que comprovem a infração, face aos riscos de seguir com o processo com as provas que a CVM já possui ou acredita poder obter sem a cooperação do delator.

Dentre os aspectos principais da proposta apresentada a serem analisados pela CVM estão: a oportunidade e a conveniência na celebração do acordo; a natureza e a gravidade das infrações informadas; a cessação do envolvimento do delator na infração noticiada ou sob apuração; a quantidade e qualidade das informações prestadas quanto à comprovação da infração e identificação dos demais envolvidos e a ausência de provas suficientes para assegurar a condenação do delator.


– O que aconteceria com os Processos Administrativos Sancionadores (PAS) já instaurados pela autarquia, se eles envolverem também pessoas que propuserem acordos? Essas pessoas estariam isentas de eventuais condenações?

Gyedre Carneiro de Oliveira: Uma vez aprovado o Acordos de Supervisão em relação a um PAS em curso, será decretada, conforme o caso, a extinção ou a redução da pena do delator no âmbito de referido processo, nos termos do acordo em questão e conforme deliberado pelo CAS ou pelo Colegiado da CVM. Vale observar que apenas os delatores que primeiro se qualificarem para assinatura de um Acordo de Supervisão podem ter o benefício da extinção de sua pena considerado pela CVM.

O acordo administrativo não afeta a atuação ou as prerrogativas legais do Ministério Público, com o qual a CVM atuará em coordenação, ou das demais instituições públicas ou entidades autorreguladoras no âmbito de suas competências, nem o dever legal da CVM comunicar indícios de crime de ação penal pública. Da mesma forma, o acordo administrativo não exime o delator da obrigação de reparar integralmente o dano porventura causado por sua conduta, nem o isenta de eventuais condenações em outras esferas, como a penal, o que acaba sendo uma de suas principais desvantagens para o delator, combinada com a confissão do ilícito.


– Quais seriam as vantagens, para a CVM e para as pessoas que participarem do acordo? Para o mercado de capitais, a existência desse tipo de acordo não poderia significar a ausência de punição dos envolvidos?

Gyedre Carneiro de Oliveira: Conforme já mencionado na resposta à primeira pergunta, as principais vantagens do acordo para a CVM seriam maior celeridade na apuração dos fatos, obtenção de provas das práticas ilícitas e identificação dos envolvidos, sem, necessariamente, eximir o infrator delator de responsabilidade por seus atos, encurtando a duração do processo e aumentando a eficiência do órgão fiscalizador na repressão da conduta ilícita, na responsabilização dos infratores e ressarcimento do mercado.

Para as pessoas que vierem a cooperar e firmar acordos administrativos com a CVM, a principal vantagem seria a possibilidade de extinção ou redução da penalidade a que estariam sujeitos ao final do julgamento do processo no âmbito da CVM. Vale destacar, no entanto que, diferentemente do disposto no artigo 87 da Lei 12.529/2011, que regula os acordos de leniência no âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, a assinatura e o cumprimento dos Acordos de Supervisão no âmbito da CVM e do Banco Central do Brasil não confere imunidade ao delator em qualquer outra esfera, inclusive na penal, de modo que o reconhecimento da prática do ilícito, objeto essencial do Acordo de Supervisão, pode, em tese, tornar o delator mais vulnerável a eventuais condenações em outras esferas, o que acaba sendo, sem dúvida, uma das principais razão para a inexistência de Acordos de Supervisão assinados no âmbito da CVM.

Para o mercado de capitais, o Acordo de Supervisão pode representar um mecanismo para redução de custos processuais e do prazo de duração dos processos, com a garantia de apuração mais abrangente do ilícito e punição dos envolvidos, ainda que possa haver extinção ou redução da pena administrativa aplicável ao delator.


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