STF nega recurso de contribuintes e prolonga incerteza

Dúvidas sobre ICMS na transferência interestadual de mercadorias permanecem

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As dúvidas dos contribuintes sobre a cobrança do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) quando uma empresa transfere uma mercadoria para sua filial em outro Estado não foram completamente sanadas em recente julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema. Em meio ao cenário de incerteza, a expectativa de advogados tributaristas é que os embates entre contribuintes e o Fisco sobre o tema continuem a ocorrer.

O julgamento em questão ocorreu em fevereiro, quando a corte negou recurso (Embargo de Declaração) do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes (Sindicom), por considerar que este, que também era parte interessada na ação (amicus curiae), não tinha legitimidade para entrar com o recurso.

A questão se refere à cobrança do ICMS quando uma empresa transfere mercadorias entre suas filiais localizadas em diferentes Estados. Em 2021, o STF decidiu que o imposto não é devido nessa situação – e não poderia ser mais cobrado a partir de 2024. Outro ponto importante do julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade 49 (ADC 49) diz respeito à utilização dos créditos de ICMS. No julgamento, a corte reconheceu o direito dos contribuintes à transferência dos créditos de ICMS a partir da data do julgamento (04/05/2021), cabendo aos Estados disciplinar o uso dos créditos acumulados.

Júlia Swerts e Bernardo Fenelon, associados do Freitas Ferraz Advogados, dizem que, apesar de os contribuintes terem saídos vitoriosos, foram apresentados Embargos de Declaração para esclarecer o que aconteceria com as empresas não recolheram o ICMS na transferência da mercadoria entre os seus estabelecimentos e não judicializaram a demanda. Isso porque a decisão valia a partir de 2024, mas não ficou claro, para as empresas que não recorreram à Justiça, se os Estados poderiam cobrar retroativamente o ICMS nas transferências de mercadorias. Por conta disso, alguns Estados fizeram a cobrança retroativa do ICMS desses contribuintes.

“A Lei Complementar 204/2023, que trata da não incidência do ICMS na transferência interestadual entre estabelecimentos do mesmo titular, tem efeitos apenas a partir de 2024. Sendo assim, para o período anterior a 2024, há incerteza quanto à possibilidade de se formalizar autuações contra os contribuintes que deixaram de recolher o ICMS, confiando na, até então, majoritária jurisprudência dos tribunais pátrios. Nesse sentido, é latente a necessidade de regulamentação capaz disciplinar tal ponto, para que não se deixe a critério do Fisco a decisão por autuar ou não”, avaliam Paloma Rosa e Priscila Alves, associadas do Vieira Rezende Advogados.

Dúvidas sobre o aproveitamento dos créditos de ICMS 

Outro ponto que levou aos Embargos de Declaração é que houve muitos questionamentos e dúvidas por parte dos contribuintes sobre os critérios de aproveitamento dos créditos de ICMS. Algumas dúvidas são se seria possível aproveitar  créditos na etapa seguinte, tendo em vista que não houve recolhimento na etapa anterior, e se o crédito seria realizado no Estado de origem ou de destino, explicam Rosa e Alves.

Com a permanência das dúvidas e incertezas, a expectativa é de continuidade da judicialização: “Dada a complexidade e relevância econômica do tema, é provável que a controvérsia ainda continue a gerar diversos embates entre particulares e o Fisco”, consideram Swerts e Fenelon.

Na entrevista abaixo, os advogados do Freitas Ferraz e do Vieira Rezende explicam a questão.


– Considerando que os contribuintes saíram vitoriosos no julgamento que acabou com a cobrança de ICMS nas transferências interestaduais de mercadorias entre filiais localizadas em diferentes Estados, por que contribuintes recorreram da decisão? E qual foi a decisão da Corte?

Júlia Swerts e Bernardo Fenelon: Em abril de 2021, o STF finalizou o julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) 49, no qual firmou o entendimento de que “o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual”.

No entanto, o STF definiu que a decisão passou a produzir efeitos a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de julgamento da decisão de mérito, e reconheceu o direito dos contribuintes à transferência dos créditos de ICMS a partir dessa data (04/05/2021).

Assim, apesar de os contribuintes terem saídos vitoriosos, foram apresentados Embargos de Declaração para esclarecimento da situação daquelas empresas que deixaram de recolher o ICMS na transferência da mercadoria entre os seus estabelecimentos e não judicializaram a demanda. Isso, tendo em vista que alguns Estados buscam a cobrança retroativa do ICMS desses contribuintes.

O recurso não foi conhecido pelo STF por entender ausente a legitimidade do Sindicom para interpor recurso no caso, o que ensejou a oposição de novos Embargos de Declaração pelo sindicato. E, para além de demonstrar a sua legitimidade, nesse novo recurso, o sindicato buscou novamente o esclarecimento pretendido nos seus primeiros embargos.

Contudo, em fevereiro de 2024, o STF rejeitou esses novos Embargos de Declaração, nos termos do voto relator e em acórdão ainda a ser publicado, mantendo o reconhecimento da ilegitimidade do Sindicom.

Paloma Rosa e Priscila Alves: O Supremo tribunal Federal, por ocasião do julgamento da Ação declaratória de Constitucionalidade (ADC) 49, declarou a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei Kandir (Lei Complementar 87/96) que possibilitava a cobrança do ICMS na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica. Nesse sentido, restou definido que não há incidência de ICMS nas operações interestaduais entre estabelecimentos do mesmo titular, visto que inexiste fato gerador nesta movimentação.

Posteriormente, por meio de Embargos de Declaração, os ministros decidiram pela possibilidade de transferência dos créditos gerados nessas situações, aprovando, ainda, a modulação dos efeitos “pra frente”, para que a decisão passasse a produzir efeitos apenas a partir de 1º de janeiro de 2024, tendo em vista o prejuízo arrecadatório dos fiscos estaduais e da potencial quebra da cadeia de créditos (não-cumulatividade) para os contribuintes. Na mesma ocasião, restou determinado que os Estados disciplinassem a transferência de créditos entre estabelecimentos do mesmo titular.

Ocorre que restaram inúmeros questionamentos e inseguranças por parte dos contribuintes quanto aos critérios de aproveitamento dos créditos de ICMS (se seria realizado no estado de origem ou no estado de destino), e se seria possível o aproveitamento de créditos na etapa seguinte, tendo em vista que não houve recolhimento na etapa anterior (transferência de mercadorias entre filiais – crédito da entrada). Além disso, foi constatada certa insegurança sobre se os fiscos estaduais poderiam realizar a cobrança retroativa dos valores do ICMS nas transferências, na medida em que os efeitos da decisão foram prospectivos. Todos esses questionamentos e inseguranças levaram os contribuintes a apresentarem Embargos de Declaração.


– Empresas têm sido autuadas para pagar o ICMS quando transferiram mercadorias entre suas filiais localizadas em diferentes Estados, mesmo após decisão do STF que instituiu a cobrança a partir de 2024. O que se recomenda aos contribuintes que receberam cobranças retroativas?

Júlia Swerts e Bernardo Fenelon: Às empresas que não judicializaram a demanda e que têm sido autuadas para pagar o ICMS retroativo dessas operações, recomendamos que busquem uma assessoria jurídica para avaliação do caso concreto.   A depender de cada situação, os contribuintes poderão discutir a autuação administrativamente ou mesmo judicialmente.

Paloma Rosa e Priscila Alves: De acordo com o entendimento consolidado pelo STF, a decisão que reconheceu a inconstitucionalidade da norma passou a produzir efeitos a partir de janeiro de 2024. Portanto, como o Supremo não tratou sobre a possível cobrança retroativa por parte dos fiscos estaduais, instaurou-se um cenário de insegurança jurídica para aqueles contribuintes que não estiverem abarcados pela modulação de efeitos.

Em que pese a questão tenha sido suscitada por ocasião do julgamento dos Embargos de Declaração, não restou consignado no acórdão a impossibilidade de autuação retroativa dos contribuintes para a cobrança do ICMS na transferência, exceto nos casos de contribuintes que já possuíam ação judicial previamente ajuizada à publicação da ata de julgamento. A ADC 49 ainda não transitou em julgado, motivo pelo qual ainda se espera que o Supremo se manifeste sobre a questão.

De toda forma, para aqueles contribuintes que estejam sendo alvo de autuações fiscais retroativas de ICMS, o primeiro caminho seria o contencioso administrativo, na medida em que as defesas apresentadas suspendem a exigibilidade dos créditos perseguidos pelos fiscos estaduais. Ademais, encerrado o contencioso administrativo, é possível que os contribuintes levem a discussão para a esfera judicial, na medida em que a inconstitucionalidade da cobrança foi reconhecida pelo STF o que, em tese, contaminaria a aplicação do texto legal desde a sua criação.

Em outra perspectiva, os contribuintes também devem ficar atentos sobre a existência de eventual distinguishing que destaque o caso concreto vivenciado do caso paradigma analisado pelo STF. De qualquer forma, destacamos que o prognóstico de êxito da presente discussão vem se mostrando desfavorável em razão da jurisprudência que se apoia estritamente na modulação de efeitos aplicada pelo STF.


– Com relação aos créditos de ICMS acumulados pelos contribuintes, onde eles podem ser aproveitados: no Estado de origem ou de destino das mercadorias?

Júlia Swerts e Bernardo Fenelon: A decisão do STF reconheceu o direto do contribuinte transferir o crédito de ICMS ao estabelecimento do Estado de destino da mercadoria aproveitar o crédito de ICMS.

Para regulamentar e positivar essa transferência, foi publicada a Lei Complementar nº 204/23 que alterou a Lei Kandir (LC 87/96) e incluiu, nessa legislação, a vedação à cobrança do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte e regulamentou a manutenção e transferência do crédito do tributo.

Desse modo, nos termos do artigo 1º da referida Lei Complementar, o crédito poderá ser aproveitado no Estado de destino da mercadoria, observado o limite correspondente à alíquota interestadual (artigo 155, § 2º, IV, CF/88) aplicado sobre o valor atribuído à operação de transferência realizada (inciso I) ou no Estado de origem, na hipótese de excesso de créditos, em razão da limitação prevista no inciso I (inciso II). 

Paloma Rosa e Priscila Alves: A leitura combinada na Lei Complementar 204/2023 e do Convênio ICMS 178/2023 do CONFAZ permite concluir que seria obrigatória a transferência do crédito de ICMS para o estabelecimento de destino, com o consequente destaque do imposto na nota fiscal de remessa, limitados aos percentuais de alíquota interestadual, e, de forma subsidiária, no estabelecimento de origem, em caso de diferença positiva entre os créditos relativos às operações anteriores e os transferidos e utilizados pela unidade de destino.

Tal tratamento revela uma restrição a decisão do STF, na medida em que interfere no direito de o contribuinte gerir seus créditos e equilibrar seu fluxo de caixa.

Importante mencionar, neste ponto, que diante da publicação dos respectivos atos normativos, os Estados ainda precisam regulamentar a sistemática de utilização interna de tal transferência e abatimento de créditos, o que ainda gera incerteza sobre a aplicação da referida sistemática.

Acrescente-se que há incerteza quanto ao valor do crédito a ser transferido. Isso porque, de acordo com o STF, tal quantia equivaleria ao valor dos créditos relativos à entrada da própria mercadoria ou dos valores relativos aos insumos que posteriormente resultariam na transformação de uma mercadoria, conforme o caso. No entanto, a legislação publicada prevê um valor proporcional à multiplicação de uma base de cálculo (valor do produto) por uma alíquota, de modo que a sistemática legal não guarda uma relação de estrita proximidade com o que restou decidido pelo STF.


– Quais aspectos com relação à cobrança de ICMS nas transferências interestaduais de mercadorias entre filiais ainda precisam ser mais bem esclarecidos? Essa questão deve continuar causando embates entre contribuintes e o Fisco?

Júlia Swerts e Bernardo Fenelon: Além das controvérsias atinentes à situação das empresas que não recolheram o ICMS e tampouco discutiram judicialmente o tema, existem outros pontos a serem esclarecidos, como a forma de operacionalização dessa transferência, obrigações acessórias que serão exigidas e se haverá obrigatoriedade nessa transferência.

Foram publicados os Convênios ICMS 178/23 e 228/23 tratando sobre essa operacionalização e autorizando os Estados a permitir a aplicação das regras de emissão de documento fiscal vigentes em cada unidade federal em 31 de dezembro de 2023, até que realizada a regulamentação interna dos novos procedimentos, respectivamente.

Dada a complexidade e relevância econômica do tema, é provável que a controvérsia ainda continue a gerar diversos embates entre particulares e o Fisco.

Paloma Rosa e Priscila Alves: A Lei Complementar 204/2023, que trata da não incidência do ICMS na transferência interestadual entre estabelecimentos do mesmo titular, tem efeitos apenas a partir de 2024. Sendo assim, para o período anterior a 2024, há incerteza quanto à possibilidade de se formalizar autuações contra os contribuintes que deixaram de recolher o ICMS, confiando na, até então, majoritária jurisprudência dos tribunais pátrios. Nesse sentido, é latente a necessidade de regulamentação capaz disciplinar tal ponto, para que não se deixe a critério do Fisco a decisão por autuar ou não.

Outro ponto ainda a ser esclarecido é a situação dos contribuintes que não tinham ações judiciais ajuizadas até a data da publicação da ata de julgamento, conforme recorte dado pela modulação de efeitos. Nesses casos, é possível que ainda haja cobrança do ICMS por parte dos Estados, restando aos contribuintes litigarem administrativa e judicialmente para defenderem os seus respectivos direitos.

A questão da substituição tributária também não foi tratada na ADC 49, de modo que existe uma lacuna quanto ao tratamento do ICMS-ST nas transferências interestaduais entre estabelecimentos do mesmo titular, sujeitos a essa sistemática de apuração. Como seria calculado o ICMS-ST nesses casos, já que não existe mais fato gerador na operação antecedente?

No que tange à reforma tributária, também precisará ser regulamentada a eventual garantia de utilização dos créditos acumulados, inclusive os oriundos da transferência entre estabelecimentos da mesma empresa, quando da ocasião da extinção total do ICMS e sua integral substituição pelo IBS.

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