Contra alta de até 3.000% no ISS, sociedades uniprofissionais devem ir à Justiça

Constitucionalidade de nova lei que trata do imposto no município de São Paulo vem sendo questionada

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A nova lei do município de São Paulo que trata do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS) reduziu o tributo para alguns setores. Mas, para as sociedades uniprofissionais, compostas por empregados ou sócios de uma mesma categoria profissional (como advogados e economistas), o que ocorreu foi o oposto. A alteração na forma de cobrança do ISS gerou uma elevação significativa para essas sociedades, que, em alguns casos, pode chegar a 3.000%. Em face da alta e de pontos considerados inconstitucionais na nova lei, a questão pode ser judicializada. 

“Sugere-se às sociedades uniprofissionais que ingressem em juízo pleiteando o reconhecimento da inconstitucionalidade das modificações pretendidas pela Lei 17.719/21, afirma Paulo Coimbra, sócio do Coimbra & Chaves Advogados. “Os contribuintes afetados podem provocar o Judiciário para questionar a incompatibilidade da lei com a Constituição Federal, tendo como base tanto razões formais como a exigência de que as bases de cálculo sejam necessariamente previstas em leis complementares , quanto razões materiais como as possíveis violações aos princípios da vedação ao confisco e da capacidade contributiva”, explica Sávio Hubaide, advogado associado do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.

Antes de a Lei 17.719/21 ser promulgada, o ISS das sociedades uniprofissionais era cobrado sobre bases fixas, de acordo com o número de profissionais. Com a nova lei, ele passará a incidir sobre a receita bruta mensal presumida da sociedade, multiplicada pelo número de profissionais. A mudança é um dos pontos questionados. Embora a Lei Complementar 116/03, que trata do ISS, estabeleça a premissa de que a base de cálculo do imposto é o preço do serviço (portanto, um valor variável), o Decreto-lei 406/68, que também regulamenta o ISS, abre uma exceção para as sociedades uniprofissionais, permitindo que apurem o imposto com base em valor fixo. “Ao adotar como base de cálculo o preço do serviço presumido, a lei de São Paulo desrespeita a determinação do decreto”, ressalta Coimbra.

O advogado também considera que outro ponto passível de questionamento é o fato de a nova lei tributar uma riqueza presumida e fictícia ao relacionar o faturamento das sociedades com o número de profissionais, violando os princípios da capacidade contributiva e da isonomia.

Igualmente preocupante é o efeito confiscatório que a mudança pode ter. “Em alguns casos, como nas sociedades que detêm mais de cem advogados, o aumento pode representar algo próximo de 3.000% se comparado com o regime anterior, o que pode configurar, em tese, tributação confiscatória”, observa Hubaide.

As alterações estabelecidas pela Lei 17.719/21 entram em vigor no fim de fevereiro (90 dias contados a partir de 26 de novembro de 2021). A seguir, Coimbra e Hubaide abordam os principais problemas relacionados à nova lei. 


Com relação às sociedades uniprofissionais, quais foram as alterações estabelecidas pela Lei 17.719 do município de São Paulo? 

Paulo Coimbra: A Lei 17.719/21, do município de São Paulo, em seu artigo 13, alterou o artigo 15 da Lei 13.701, de 2003 (Lei do ISS), que passou a vigorar com adoção de regime especial de recolhimento do imposto quando os serviços forem prestados por sociedade uniprofissional. 

O parágrafo 1º do artigo 15 também teve sua redação dada pela Lei 17.719/21, estabelecendo a definição das sociedades uniprofissionais como aquelas cujos profissionais (sócios, empregados ou não) são habilitados ao exercício da mesma atividade e prestam serviços de forma pessoal, em nome da sociedade, assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da legislação específica.

Já o parágrafo 4º, também acrescido pela nova lei, determina que, para as sociedades uniprofissionais, o imposto deverá ser calculado mediante a aplicação da alíquota determinada no artigo 16 da lei sobre as importâncias estabelecidas no parágrafo 12.

No parágrafo 12 do artigo 15 são dispostas as faixas de receita bruta mensal para aplicação do regime especial de recolhimento do imposto, de acordo com o número de profissionais habilitados na sociedade.

O parágrafo 13, também acrescido pela Lei 17.719/21, dispõe que a apuração do imposto devido decorrerá do somatório progressivo dos produtos entre as faixas de receita bruta obtidas e a alíquota incidente sobre o serviço prestado.

Nesse sentido, a incidência do ISS passa a vigorar de acordo com faixas de receita bruta mensal, e não mais em bases fixas para as sociedades uniprofissionais. Os valores passam a ser progressivos, vinculados à receita bruta mensal presumida da sociedade, multiplicado pelo número de profissionais habilitados.

Assim, a sistemática nova imposta pela recente lei se transforma em um critério usual de apuração com base no artigo 7º da Lei Complementar 116/03, cuja premissa é de que a base de cálculo do imposto é o preço do serviço. Dessa forma, é aplicada regra geral sobre o preço do serviço, que sempre terá na base de cálculo uma alíquota presumida com base nos valores do parágrafo 12 da Lei 17.719/21.

Essa regra geral aplicada, proposta pelo parágrafo 12, despreza a exceção existente no artigo 9º §3º do Decreto-lei 406/68, que determina às sociedades profissionais a apuração do imposto com base no valor fixo em função do número de profissionais.

Assim, ao adotar como base de cálculo o preço do serviço presumido, e não o valor fixo em razão do número de profissionais, a lei de São Paulo desrespeita a determinação do decreto.

Ademais, apesar de controvérsias doutrinárias, é cediço que o artigo 9º §3º do Decreto-lei 406/68 não foi revogado pela Lei Complementar 116/03, tendo em vista que: a) não há incompatibilidade entre nenhuma norma da Lei Complementar 116/03 por revogação tácita; b) não houve revogação global, que se exige regulamentar na íntegra a matéria, fato que não existiu; c) na base de cálculo ocorreu a reprodução textual do artigo 9º, do Decreto-lei 406/68, pelo artigo 7º, da Lei Complementar 116/03. 

Nesse sentido, nos parece que a Lei 17.719/21 padece de inconstitucionalidade ao desrespeitar a norma geral estabelecida no Decreto-lei 406/68. 

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema nº 918 de Repercussão Geral, fixou a tese: 

 É inconstitucional lei municipal que estabelece impeditivos à submissão de sociedades profissionais de advogados ao regime de tributação fixa em bases anuais na forma estabelecida por lei nacional. (Recurso Extraordinário 940.769/RS, Pleno, Relator Min. Edson Fachin, DJe. 12/09/2019)

Conclui-se, assim, que as mudanças promovidas pela Lei 17.719/21, ao desprezarem a necessidade de imposição de valor fixo em razão do número de profissionais, e adotarem como base de cálculo o preço do serviço, desrespeitam o artigo 146, “III” “a” da Constituição Federal. 

Sávio Hubaide: A Lei 17.719/21 alterou o artigo 15 da Lei 13.701/03, que trata do regime especial de recolhimento de ISSQN (ISS) sobre determinados serviços, especialmente aqueles prestados por sociedades uniprofissionais, isto é, sociedades cujos profissionais prestam serviços de forma pessoal e são habilitados na mesma atividade da sociedade.

De acordo com as alterações, o imposto que antes era calculado por meio de um valor fixo, multiplicado pelo total de profissionais, passa a ser calculado com base em presunções de receita bruta mensal em faixas progressivas, que variam a depender do número de profissionais.

Por exemplo: a primeira faixa presume a receita de 1.995,12 reais para sociedades com até cinco profissionais; a segunda, de cinco mil reais para sociedades com seis a dez profissionais, e assim sucessivamente, até a última faixa de 60 mil reais para sociedades que contenham mais de cem profissionais, aplicando-se a alíquota devida sobre a base apurada ao final, sendo que os valores presumidos por faixa precisam ser multiplicados pelo número de profissionais habilitados.

As alterações entrarão em vigor em 90 dias, contados da publicação da lei em 26 de novembro de 2021.


Em que ocasiões a tributação pode ser considerada confiscatória? As mudanças previstas pela Lei 17.719/21, no que dizem respeito às sociedades uniprofissionais, podem ser entendidas dessa forma? 

Paulo Coimbra: A Lei 17.719/21 estabelece tributação de uma riqueza presumida, fictícia, ao pretender estabelecer uma presunção de faturamento com base no número de profissionais.

Assim, ainda que a lei municipal pudesse disciplinar a base de cálculo de forma distinta daquela determinada em lei complementar — no caso, o Decreto-lei 406/68 — a lei municipal pretende estabelecer pautas fiscais de presunção de valores de serviços com base no número de profissionais, o que viola o princípio da capacidade contributiva e da isonomia.

Por força do princípio da praticidade, é possível usar abstrações generalizantes para tornar exequível a aplicação da lei tributária, que é uma lei aplicada em massa. Entretanto, essas presunções não podem ser adotadas de forma absoluta, como é feito pela Lei 17.719/21, em seu artigo 13, §12.

Tal óbice à presunção de valores de serviços dos profissionais decorre do princípio da capacidade contributiva, por meio do qual a tributação só pode atingir a riqueza existente, e não pode o direito tributário, sobretudo no que concerne à definição de base de cálculo, se desprender da realidade.

Assim, ainda que pudesse a lei paulistana definir base de cálculo de forma contrária à lei complementar, ela não poderia adotar definição de valores do serviço de forma presumida em mediante presunção absoluta, tendo em vista que se passaria a tributar riqueza fictícia.

Tal tributação de riqueza presumida viola o princípio da capacidade contributiva, bem como o princípio da isonomia, uma vez que existem diferenças econômicas relevantes entre os contribuintes, que não podem ser desprezadas no momento da exigência do tributo.

No que diz respeito ao princípio que veda o efeito de confisco, esse vem estabelecendo um limite máximo para a tributação. Eventualmente, tal situação poderia ocorrer se o valor presumido do serviço for muito superior ao valor real. É o caso, por exemplo, de um mês em que, por estarem os profissionais da sociedade, de férias, em viagem, período sabático ou qualquer outro motivo, não haja efetiva prestação de serviços. Não havendo fato gerador (prestação de serviços), a exigência de quaisquer valores a título de ISS viola, não apenas a capacidade contributiva, mas também a vedação do efeito de confisco.

Sávio Hubaide: Apesar de a Constituição ter incluído a vedação à utilização do tributo com efeito de confisco como uma das limitações ao poder de tributar, trata-se de um conceito indeterminado sem definição objetiva em lei do que se entende por tributo confiscatório.

Usualmente, a vedação ao confisco é balizada pela capacidade contributiva. Assim, poderá ser confiscatório o tributo que ultrapasse a manifestação de riqueza do contribuinte, tornando inviável o seu recolhimento e/ou ofendendo o direito de propriedade, o que é vedado pelo Código Tributário Nacional (CTN). Sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) costuma estar diretamente atrelada às noções de proporcionalidade e de razoabilidade.

No caso da Lei 17.719/21, houve uma considerável majoração do ISS devido pelos

prestadores de serviços. Em alguns casos, como nas sociedades que detêm mais de cem advogados, o aumento pode representar algo próximo de 3.000% se comparado com o regime anterior, o que pode configurar, em tese, tributação confiscatória.

Contudo, e justamente pela aplicação conjunta com a capacidade contributiva, é necessária a análise de cada caso individualmente, não sendo possível afirmar, de forma geral, ser confiscatória a nova sistemática de exigência em face de todos os contribuintes paulistanos.


O ISS pode ser cobrado de forma progressiva? Esse seria o caso das mudanças na forma de cobrança do ISS das sociedades uniprofissionais, já que elas preveem o escalonamento do imposto?

Paulo Coimbra: O princípio da progressividade deflui do próprio princípio da capacidade contributiva, usualmente concretizado mediante a progressão de alíquotas. Quanto maior a riqueza manifesta, maior a base de cálculo, e, por consequência, maior a alíquota. 

Dessa forma, ao avaliar-se a questão da tributação do ISS no município de São Paulo, não há, a priori, uma inconstitucionalidade em se aplicar a progressividade ao ISS. 

Por outro lado, há óbice à aplicação da progressividade mediante presunção da base de cálculo, ao se utilizar de bases de cálculos (riquezas) presumidas (com pretensão de serem definitivas), seja em função do número de profissionais ou não. 

Ao pretender-se aplicar tal estimativa mediante presunção absoluta juris et de jure – de base de cálculo, pratica-se progressividade confiscatória, visto que não está sendo operacionalizada pela variação de alíquotas. O próprio município de São Paulo não utilizou variação de alíquota, posto que a máxima de ISS prevista no artigo 8º, II, da Lei Complementar 116/03 é de 5%.

Considerando também que a Emenda Constitucional 37 inclui o artigo 88 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabelecendo limite mínimo de 2% para o ISS, os municípios podem alterar a progressividade mediante variação de alíquota de 2 a 5%.

A aplicação da progressividade do ISS, portanto, deve respeitar os limites impostos pelo ordenamento jurídico, jamais sendo feita mediante presunção de valor de serviço – seja em função do número de profissionais ou em função de qualquer outro critério que o legislador queira adotar.

Sávio Hubaide: Não há vedação à instituição do ISS de forma progressiva no texto constitucional. Todavia, tal modalidade não foi adotada pelo legislador complementar nacional na Lei Complementar 116/03, tampouco no antigo Decreto-lei 406/68, que são os dispositivos legais que trazem as normas gerais do ISS, inclusive em relação à base de cálculo (artigo 146, III, ‘a’, da Constituição Federal – CF/88). O decreto dispõe sobre o regime alternativo devido pelas sociedades uniprofissionais, o qual foi devidamente recepcionado pela CF/88 (súmula 663/STF).

Mesmo assim, o Município de São Paulo instituiu a cobrança do ISS de forma progressiva, tendo em vista que as bases de cálculo presumidas aumentam de acordo com a quantidade de profissionais habilitados na sociedade uniprofissional.


O que se recomenda às sociedades uniprofissionais, em face da alteração estabelecida pela lei?

Paulo Coimbra: Sugere-se às sociedades uniprofissionais que ingressem em juízo pleiteando o reconhecimento da inconstitucionalidade das modificações pretendidas pela Lei 17.719/21, com base nos argumentos já mencionados anteriormente.

Sávio Hubaide: Os contribuintes afetados pela alteração legislativa podem provocar o Judiciário para questionar a (in)compatibilidade da Lei 17.719/21 com a Constituição Federal, fundados tanto em razões formais como a exigência de que as bases de cálculo sejam necessariamente previstas em leis complementares , quanto em razões materiais como as possíveis violações aos princípios da vedação ao confisco e da capacidade contributiva.

O que milita em prol dos contribuintes é que o STF, no RE 940.769, julgado em Repercussão Geral, entendeu pela inconstitucionalidade de lei municipal que dispuser de modo divergente ao Decreto-lei 406/68 sobre a base de cálculo do ISS.

O acórdão prevê expressamente a necessidade de lei complementar de caráter nacional para revogar ou alterar o regime de tributação dos serviços das sociedades uniprofissionais, em caso cujo objeto era a prestação de serviços advocatícios.

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