Cresce interesse por eólicas offshore

Após publicação do Decreto 10.946/22, o número de processos de licenciamento ambiental de usinas praticamente dobrou

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Embora a regulamentação sobre as usinas eólicas offshore, instaladas em alto mar, ainda precise ser complementada, a animação no setor é grande. O potencial do Brasil para gerar energia nessas usinas é elevado e várias empresas, como a Petrobras, estão avaliando a entrada no segmento. O entusiasmo aumentou após a publicação do Decreto 10.946/22, em janeiro deste ano. Desde então, o número de processos de licenciamento ambiental abertos no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para essas usinas praticamente dobrou. 

Segundo Virginia Mesquita e Thiago Luiz da Silva, sócia e associado do Vieira Rezende Advogados, o perfil dos projetos mudou após a edição do decreto. “De forma geral e em termos de potência total, os projetos registrados parecem ser mais ambiciosos. Além disso, foi apenas após o decreto que grandes empresas globais de energia como Shell, Equinor e TotalEnergies registraram seus projetos”, observam os advogados. 

A estruturação de projetos para geração de energia em alto mar é complexa, tanto por causa de questões técnicas como legais. Mesquita e Silva explicam que a cessão das usinas eólicas offshore compreende não só a cessão de uso dos prismas marítimos onde serão implementadas as usinas, mas também um conjunto adicional de autorizações governamentais. Além disso, eles destacam que ainda há questões que precisam ser equacionadas para a viabilização dos projetos. Um deles diz respeito a como será o modelo de contrato para cessão de uso e quais serão as “credenciais técnicas, operacionais, econômico-financeiras e jurídicas” exigidas para se participar dos procedimentos licitatórios.

Na entrevista abaixo, Mesquita e Silva explicam como se dá a cessão das eólicas offshore e abordam o que ainda falta ser regulamentado. 


Em linhas gerais, quais são os principais pontos do Decreto 10.946/22? Como se dará a cessão das usinas eólicas offshore?

Virginia Mesquita e Thiago Luiz da Silva: Respondendo primeiro à pergunta “como se dará a cessão das usinas eólicas offshore”, note-se que o Decreto 10.946/22 (que será referido aqui apenas por Decreto) estabelece o procedimento para outorga do contrato de cessão de uso da área offshore. O direito de uso sobre a área é um dentre os vários “requisitos” necessários para explorar economicamente usinas eólicas offshore. Os contratos de cessão de uso não dão a seu titular o direito de gerar energia elétrica por si só. Esta autorização será outorgada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) nos termos da legislação aplicável. A comercialização da energia elétrica gerada também precisará observar outras normas e, caso seja realizada no ambiente regulado, precisará de um contrato para comercialização de energia no ambiente regulado. Por sua vez, para permitir que seja realizada a venda de energia no ambiente regulado, será necessária a integração dos empreendimentos offshore ao Sistema Interligado Nacional (SIN), cujas regras não foram tratadas pelo Decreto e precisarão de regulação pelo Ministério de Minas e Energia (MME).

Assim, pode-se entender que o termo “cessão das usinas eólicas offshore” compreende não só a cessão de uso dos prismas marítimos onde serão implementadas as usinas, mas todo um conjunto adicional de autorizações governamentais.

Os principais pontos do Decreto são:

  1. Criar o contrato de cessão de uso – Contrato de cessão de uso é o nome dado pelo Decreto ao contrato administrativo cujo escopo é conceder, por prazo determinado, o uso de área offshore para as seguintes finalidades:
  • atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico voltadas aos serviços públicos de energia elétrica; ou
  • exploração de geração de energia elétrica.

Os contratos serão firmados por prazo determinado entre a União Federal e as entidades interessadas. O contrato para exploração de geração de energia elétrica será oneroso, enquanto o para atividades de pesquisas será gratuito.

O Decreto estabelece diversas características obrigatórias do contrato de cessão de uso. Além das questões formais como prazo, condições e remuneração, a serem definidas futuramente nos respectivos editais, os contratos deverão prever:

  • obrigação de realização de estudos para identificar o potencial energético offshore do prisma;
  • garantias financeiras para comissionamento e descomissionamento das instalações;
  • direito do cessionário de assentar ou alicerçar estruturas de geração e transmissão de energia elétrica ao leito marinho.
  1. Estabelecer a competência para outorgar a cessão de uso – o Decreto estabelece o MME como o órgão competente para a outorga da cessão de uso, que dependerá de entrega prévia da respectiva área pela Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia.
  2. Definir o procedimento para outorga do contrato de cessão de uso – são dois os procedimentos para outorga do contrato de cessão de uso: cessão planejada e cessão independente.
  • Cessão planejada: são licitações periódicas para oferta de prismas delimitados pelo MME, ouvindo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a Aneel e, possivelmente, realizando consulta pública para manifestação de interesse sobre prismas.
  • Cessão independente: cessão de uso de prismas que não estavam incluídos nas licitações da cessão planejada, que não estão sob contrato de cessão de uso e cujo interesse de explorar foi manifestado por iniciativa das próprias entidades interessadas. Embora o Decreto seja relativamente lacônico sobre o tema, a cessão independente também ocorrerá por processo licitatório, conforme já esclarecido pelo MME. Espera-se que seja algo similar ao que ocorre na inclusão de áreas por manifestação de interesse privado nas licitações da Oferta Permanente de Contratos de Exploração e Produção de Hidrocarbonetos, conduzidas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Etapa crítica das duas modalidades é a obtenção da Declaração de Interferência Prévia (DIPs), que são as declarações das autoridades brasileiras sobre inexistência de interferência nas atividades de competência de tais autoridades. 

Na cessão planejada, o MME deverá indicar uma instituição para ficar responsável pela obtenção das DIPs, o que significa que o governo assumirá o risco de obter as DIPs nas licitações da cessão planejada. Na cessão independente, a responsabilidade de obter as DIPs é dos próprios interessados. 

São nove órgãos e entidades a serem consultados: Comando da Marinha, Comando da Aeronáutica, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Instituto Chico Mendes), Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Ministério da Infraestrutura (MInfra), Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Ministério do Turismo (MTur) e Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Demais detalhes do procedimento de licitação constarão nos editais dos respectivos processos, tais como:

  • quais serão as credenciais técnicas, operacionais, econômico-financeiras e jurídicas a serem apresentadas pelas entidades participantes?
  • quais garantias financeiras serão aceitas?
  • como será julgado o maior retorno econômico pela cessão do prisma (que deverá ser o critério de julgamento)?
  • Existirão obrigações de conteúdo local?
  • Qual remuneração será devida à União Federal pela ocupação e retenção de área?

O Decreto 10.946/22, que regula as eólicas offshore, foi bem recebido pelo mercado?

Virginia Mesquita e Thiago Luiz da Silva: Acreditamos que a recepção pelo mercado foi positiva, embora existam bastantes incertezas e questões sujeitas à regulamentação posterior.

Evidência da boa recepção pelo mercado é o aumento na quantidade de processos de licenciamento ambiental abertos no Ibama. De 2016 até a publicação do Decreto, e com base na regulamentação precária anterior, existiam aproximadamente 20 projetos registrados no Ibama. Após a publicação do Decreto até 20 de abril de 2022, esse número praticamente dobrou, com mais de 20 novos projetos registrados. De forma geral e em termos de potência total, os projetos registrados após o Decreto parecem mais ambiciosos do que aqueles registrados antes. Notavelmente, apenas depois do Decreto é que grandes empresas globais de energia como Shell, Equinor e TotalEnergies registraram seus projetos.

Porém, remanesce a percepção, por alguns agentes, de que a regulamentação da matéria por lei aprovada pelo Congresso Nacional diminuiria os riscos institucionais para investidores e o risco de possíveis judicializações contra a validade do Decreto e da subsequente regulação infralegal. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 576/2021, do senador Jean Paul Prates (PT-RN), relatado pelo senador Carlos Portinho (PL-RJ). Os agentes engajados com esse projeto de lei notadamente se opõem à regulamentação estabelecida pelo Decreto.


Do ponto de vista regulatório, ainda há pontos a serem equacionados para viabilizar os projetos de eólicas offshore? 

Virginia Mesquita e Thiago Luiz da Silva: Sim, diversos pontos. 

O próprio Decreto estabelece regras sujeitas a regulamentação posterior, com destaque para os seguintes pontos: 

  • Qual instituição o MME tornará responsável por obter os DIPs na cessão planejada? 
  • Como será o procedimento para obtenção de DIPs pelas entidades privadas, na cessão independente? Será criado um processo de oitiva simplificada, em balcão único, dos diferentes órgãos que devem se manifestar sobre eventuais interferências? 
  • Como será o modelo de contrato para cessão de uso e quais serão as “credenciais técnicas, operacionais, econômico-financeiras e jurídicas” exigidas para se participar dos procedimentos licitatórios?

Além das questões acima, outras demandas:

  • para comercialização da energia no ambiente regulado, a energia precisa ser entregue ao SIN, que prescinde de existência de infraestrutura de transmissão. Pelas regras de desverticalização, geradores não podem ser responsáveis pela transmissão. É possível que isso gere um dilema de “ovo-galinha”, pois o empreendedor das eólicas offshore provavelmente não correrá o risco de investir sem contratos de longa duração e preço fixo, como os do ambiente regulado. Por sua vez, os empreendedores interessados na transmissão também precisam da certeza de energia a ser transmitida para remuneração do investimento. Como o impasse será solucionado na prática?
  • Será criado um programa de incentivo pelo governo para compensar os altos custos de instalação e manutenção desses empreendimentos, tanto de geração quanto de transmissão? Em caso positivo, sob qual forma serão cobrados esses encargos?

Qual é o interesse dos investidores estratégicos nessa fonte de energia e qual é o seu potencial? 

Virginia Mesquita e Thiago Luiz da Silva: O Brasil ultrapassou 180 gigawatts de potência instalada para geração de energia elétrica, ao fim de outubro de 2021. Também em 2021, o Banco Mundial estimou o potencial eólico offshore brasileiro em 1.228 gigawatts. Embora a viabilidade econômica desses 1.228 gigawatts seja questionável, de qualquer forma é um número impressionante. Tal potencial elevado se deve ao fato de os ventos offshore serem mais estáveis, fortes e com menos obstáculos. Isso permite que a geração de energia elétrica pelas usinas eólicas offshore atinja potências maiores, com menor intermitência. No entanto, existem os desafios nada triviais da viabilidade econômica desses projetos e da transmissão da energia gerada, para que ela possa ser comercializada no ambiente regulado. 

Sem pensar no longo prazo e previsibilidade do ambiente regulado, o que se pode planejar hoje são projetos offgrid. A título de exemplo e pensando no offshore, imediatamente a eletrificação de projetos de E&P (pesquisa, exploração e produção) se mostra interessante. Combustíveis fósseis são a principal fonte de energia utilizada nos projetos offshore de E&P. A substituição desses combustíveis por energia elétrica significaria não só uma redução nas emissões desses projetos, como também uma possível monetização dos combustíveis (incluindo o gás natural associado) sob outras formas. 

Existem discussões sobre o uso da energia eólica para produção offshore de hidrogênio verde ou seus subprodutos, notadamente amônia verde, pela facilidade de transporte e armazenamento. Sem desprezar o enorme desafio tecnológico que seria necessário superar em tais projetos, a viabilidade econômica também se torna discutível, pois a produção de hidrogênio verde por eletrólise aproveita em torno de 35-40% da energia elétrica utilizada, soando pouco eficiente diante dos investimentos necessários para os projetos de eólica offshore. No entanto, a inventividade do ser humano tem surpreendido bastante. Vamos torcer para que nossos reguladores sejam ágeis e criativos e que o potencial eólico brasileiro possa ser aproveitado da melhor forma, servindo de catalisador da transição energética.

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