Até onde vai o recém-criado mercado de carbono?

Entenda os principais aspectos do Decreto 11.075/22

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Aguardada há bastante tempo, a regulação do mercado brasileiro de carbono veio a público em maio deste ano com várias lacunas e inovações. Para muitos, o mérito do Decreto 11.075/22 foi ter criado as bases para um futuro mercado regulado no País, mostrando que o governo enxerga a precificação do carbono como algo importante para a redução dos gases de efeito estufa (GEE).

O problema, na visão de alguns especialistas, foi a forma escolhida para se regular esse mercado: via decreto, em vez de por meio de projeto de lei, o que lhe confere menos segurança jurídica, pois pode ser alterado por qualquer governo. Essa é a opinião do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), por exemplo.

Gyedre Carneiro de Oliveira e Viviane Castilho, sócia e parceira do Carneiro de Oliveira Advogados, consideram que a normativa inaugura oficialmente as discussões sobre o mercado de GEE no Brasil. E que, ainda que de forma tímida, o decreto disciplina os procedimentos iniciais para elaboração dos planos setoriais de mudanças climáticas e se alinha com a obrigação de longo prazo de neutralidade climática assumida pelo Brasil em compromissos internacionais.

Elas explicam que o decreto se destina a normatizar tanto o mercado regulado como o voluntário de carbono. Nos mercados regulados existentes no mundo, os governos estabelecem limites máximos para emissões de GEE, chamados de cap, e permitem a transação dos créditos de empresas que não atingiram esses limites (o trade). Já nos mercados voluntários, as companhias compensam as suas emissões sem terem essa obrigatoriedade. 

Associada do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, Marcela Assis pondera que, embora o Decreto 11.075/22 tenha definido as bases jurídicas para a consolidação de um futuro mercado regulado de carbono no Brasil, isso ainda está longe de acontecer. E por dois motivos: o decreto não fixa prazos para o governo elaborar os planos setoriais de mitigação de mudanças climáticas e nem para o início do Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Sinare). 

A seguir, Oliveira, Castilho e Assis explicam aspectos importantes do Decreto 11.075/22.


Quais setores estão incluídos no Decreto 11.075/22 e como será a elaboração de suas políticas de redução de gases do efeito estufa (GEE)?

Gyedre Carneiro de Oliveira e Viviane Castilho: Em linha com o que foi determinado pelo parágrafo único do artigo 11 da Lei 12.187/09, que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), o Decreto 11.075/22 elege como aptos para apresentarem planos que visem estabelecer curvas de redução de emissões de GEE os seguintes setores: 

  • geração e distribuição de energia elétrica; 
  • transporte público urbano e sistemas modais de transporte interestadual de cargas e passageiros; 
  • indústrias de transformação e de bens de consumo duráveis; 
  • indústrias químicas fina e de base; 
  • indústrias de papel e celulose; 
  • mineração; 
  • indústrias da construção civil; 
  • serviços de saúde;
  • agropecuária.

Aos mencionados setores, por meio de seus competentes ministérios setoriais, foi facultado, no prazo de 180 dias prorrogável por igual período, a apresentação de Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas que serão submetidos e aprovados pelo Comitê Interministerial sobre a Mudança do Clima e o Crescimento Verde (CIMV) previsto no Decreto 10.845/21.

Os planos setoriais estabelecerão metas de redução e de emissão de GEE de forma mensurável e verificável por meio de apresentação de inventários periódicos na forma e prazos a serem definidos nos planos e respeitando as especificidades de cada agente setorial.

O Decreto 10.845/21, que dispõe sobre o CIMV, também prevê que este último promoverá o diálogo com a sociedade e com os setores empresarial e científico-acadêmico para discutir temas de sua competência, estabelecendo que poderão participar de suas reuniões, ainda que sem direito a voto, personalidades de notório conhecimento do tema e instituições não-governamentais, como associações, institutos, federações e confederações.

Marcela Assis: ao regulamentar os procedimentos para a elaboração dos Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas e instituir o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Sinare), pode-se dizer que o Decreto 11.075/22 impacta todos os setores da economia, em menor ou maior escala. 

Porém, considerando a menção que a norma faz ao artigo 11, parágrafo único da Política Nacional Sobre Mudanças Climáticas (PNMC), serão diretamente impactados pela nova regulamentação os seguintes setores: 

  • geração e distribuição de energia elétrica; 
  • transporte público urbano e sistemas modais de transporte interestadual de cargas e passageiros; 
  • indústria de transformação; 
  • indústria de bens de consumo duráveis; 
  • indústrias químicas fina e de base; 
  • indústria de papel e celulose; 
  • mineração; 
  • indústria da construção civil; 
  • serviços de saúde; 
  • agropecuária. 

A participação das empresas é voluntária ou obrigatória? Com o Decreto 11.075/22, foi criado um mercado regulado de carbono, nos moldes de limites máximos para emissão (cap) e comercialização (trade) ou o texto visa a regulamentação do mercado voluntário?

Gyedre Carneiro de Oliveira e Viviane Castilho: Tanto a Lei 12.187/09 quanto o Decreto 11.075/22 não obrigam os setores ali mencionados ou mesmo as empresas integrantes do setor a apresentar Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas. Trata-se de uma faculdade conferida com prazo determinado de cumprimento e, por certo, sem penalidade.

De outro lado, o governo não está obrigado a realizar consulta formal aos setores para a elaboração dos planos setoriais. Assim, eventuais políticas de redução de emissão ou remoção de GEE poderão ser implementadas de forma coercitiva a determinados setores e respectivas empresas.

Atualmente, o que se verifica vigente são as obrigações assumidas pelo governo brasileiro em tratados internacionais sobre o clima, decorrendo daí o dever de ofertar políticas públicas e planos aos quais as empresas possam aderir para que sejam cumpridas as metas setoriais, e consequentemente, as nacionais.

Analisando-se planos setoriais de mitigação das mudanças climáticas vigentes, percebe-se que as metas objetivam ser atingidas por meio de políticas públicas que atraiam as empresas integrantes dos setores a implementarem mudanças que resultem no cumprimento do previsto. Entre as políticas observadas nos planos existentes, temos instrumentos de financiamento público e/ou privado, transferência de tecnologia e formação dos agentes setoriais. 

O Decreto 11.075/22, ao criar o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Sinare), objetiva regular ambos os mercados, tanto que, na definição de crédito de carbono, não diferencia o crédito decorrente do mercado regulado do crédito decorrente do mercado voluntário.

Desde que o crédito seja certificado pelo Sinare, seja qual for sua origem — crédito regulado, oriundo da reserva de emissões não realizada por um agente setorial, ou voluntário, de um projeto, iniciativa ou programa que atenda ao padrão de certificação — este poderá ser utilizado para cumprimento de limites de emissões de GEEs.

Assim, do texto do decreto é possível extrair conceitos, definições e regras para criação e implementação de políticas públicas de adesão voluntária, mas ainda não se vê regras cogentes. No entanto, é possível afirmar que o Decreto 11.075/22 objetiva a criação de um mercado regulado de carbono, dada a possibilidade de se estabelecer metas setoriais cogentes, o que pode levar a um mercado cap and trade, isto é, empresas que não atingiram o limite de emissões autorizadas vendendo seu excedente para empresas que ultrapassaram seus limites de emissões autorizadas.

Marcela Assis: o Decreto 11.075/22 não cria o mercado regulado de carbono — objeto do PL 528/21. Na realidade, ele cria as bases jurídicas para a consolidação de um futuro mercado regulado de carbono no Brasil, o qual espera-se adotar o modelo de cap and trade.

Isso porque as ferramentas de instrumentalização do mercado regulado de carbono (Sinare e planos setoriais) ainda não foram completamente desenhadas. O registro, o padrão de certificação, a implementação, a operacionalização e a gestão do Sinare dependem de ato conjunto dos ministros do Meio Ambiente (MMA) e da Economia (ME).

Na prática, isso significa que as empresas atuantes nos setores tratados no artigo 11, parágrafo único da PNMC, não conseguem operar no mercado regulado de carbono. Por decorrência lógica, elas ainda não são obrigadas a participar. O prazo para adesão será definido a partir da elaboração dos planos setoriais pelo MMA, ME e respectivos ministérios setoriais relacionados.


Como será a governança do mercado de carbono? O decreto prevê algum tipo de meta ou controle?

Gyedre Carneiro de Oliveira e Viviane Castilho: O Decreto 11.075/22 institui o Sinare, cuja finalidade é servir de central única de registro de emissões, remoções, reduções e compensações de GEEs e de atos de comércio, de transferências, de transações e de aposentadoria de créditos certificados de redução de emissões, ou seja, caberá ao Sinare a governança no mercado de carbono, exercendo a função de criar e implementar os processos e procedimentos a serem observados nesse mercado. 

O decreto prevê alguns mecanismos iniciais de controle, como: o registro do inventário de emissões e remoções de GEE; o monitoramento, a reportagem e a verificação das emissões ou reduções de GEE aceitas para registro no Sinare; e o estabelecimento de regras, por meio de ato conjunto dos ministros do Meio Ambiente e da Economia, sobre o registro, bem como sobre o credenciamento de certificadoras e centrais de custódia.

O Sinare será responsável por estabelecer os critérios para compatibilização, quando viável técnica e economicamente, de outros ativos representativos de redução ou remoção de GEEs com os créditos de carbono por ele reconhecidos. Também será o órgão responsável pelo registro de pegadas de carbono de produtos, processos e atividades; carbono de vegetação nativa; carbono no solo; carbono azul; e unidade de estoque de carbono. 

Além disso, se o objetivo for a obtenção de um crédito certificado de redução de emissões, este deverá atender o padrão de certificação do Sinare, bem como o projeto, as iniciativas ou o programa que o gerou deverá ser registrado publicamente no Sinare.

Além disso, o decreto estabelece unicamente que os Planos Setoriais de Mitigação de Mudanças Climáticas deverão ter como metas a gradativa redução de emissões antrópicas e de remoções de GEEs.

Marcela Assis: O Decreto 11.075/22 não detalha os mecanismos de controle e de monitoramento dos planos setoriais e do Sinare, de modo que eles precisarão ser mais bem estruturados quando essas duas ferramentas forem regulamentadas.

Sobre os planos setoriais, o novo regulamento apenas afirma que eles deverão ser aprovados pelo Comitê Interministerial sobre a Mudança do Clima e o Crescimento Verde, criado pelo Decreto 10.845/21. Por sua vez, sobre o Sinare, o Decreto 11.075/22 se limita a dizer que a sua operacionalização será de competência do MMA.


Quais são os pontos fracos e fortes do Decreto 11.075/22? Ele de fato pode contribuir para a redução das emissões de GEE e para a descarbonização da economia brasileira?

Gyedre Carneiro de Oliveira e Viviane Castilho: O Decreto 11.075/22, ainda que de forma tímida, disciplina os procedimentos iniciais para elaboração dos planos setoriais e se alinha com a obrigação de longo prazo de neutralidade climática assumida nos compromissos internacionais que o Brasil aderiu, especialmente, com a previsão de colaboração dos agentes setoriais na elaboração destes planos. 

Também define conceitos importantes, como o que são os créditos de carbono e os créditos certificados de redução de emissões.

A criação do Sinare também tende a ser importante no mercado de carbono, dada a função de centralização de informações a subsidiar as políticas ambientais relacionadas ao clima e aos ativos ambientais disciplinados no decreto. Além da criação dos créditos certificados de redução, que serão ferramentas úteis à concretização das metas setoriais, permitindo a comercialização destes e impulsionando esse mercado no Brasil.

Em suma, a normativa inaugura oficialmente as discussões sobre o mercado de gases de efeito estufa no Brasil.

Por outro lado, a publicação do decreto pode impactar e causar incertezas no mercado já em andamento, em especial, às práticas de comércio de emissões, visto que a norma hibridiza o mercado voluntário e o regulado.

A corroborar as incertezas trazidas com o decreto e ao dificultar a internacionalização do sistema, tem-se o estabelecimento de conceitos que não são comuns nos demais mercados, como unidade de estoque de carbono e créditos de metano, em vez das amplamente utilizadas unidades de carbono equivalente.

Por fim, nos parece que o Sinare poderia ficar sob a tutela do Ministério de Ciência e Tecnologia, que atualmente é o responsável pelos registros de emissões nacionais, uma vez que ele tem mais know-how para gerir o sistema do que o Ministério do Meio Ambiente.

Marcela Assis: Como toda norma, o Decreto 11.075/22 apresenta pontos positivos e negativos. A principal contribuição do decreto foi — sem dúvidas — criar as bases jurídicas para a consolidação de um futuro mercado regulado de carbono no Brasil. Porém, parece-nos que tal consolidação ainda está um pouco longe de acontecer.

Primeiro, porque o Decreto 11.075/22 não fixou um prazo para o governo federal elaborar os planos setoriais e dar início ao Sinare. A única pista que o decreto dá é que, no prazo de até 180 dias após a sua publicação (prorrogáveis por igual período), os setores tratados no artigo 11 da PNMC poderão apresentar suas propostas de redução de gases de efeito estufa (GEEs). Assim, no pior cenário, os setores poderão apresentar suas propostas até maio de 2023. Depois disso, e antes do início da operação do mercado, os ministérios deverão publicar seus planos setoriais e as empresas afetadas deverão monitorar suas emissões e registrar seus respectivos inventários no Sinare.

Além disso, também não se sabe qual será o custo inicial do carbono. De acordo com as análises e resultados do Projeto PMR Brasil de dezembro de 2020, o preço do carbono nos cenários de precificação ficou em torno de 26,5 reais/tCO2e — sendo tal valor apenas um parâmetro, não oficial.

Diante de tudo isso, o Decreto 11.075/22 pode contribuir para a redução das emissões de GEEs e para a descarbonização da economia brasileira, desde que as lacunas deixadas por ele sejam preenchidas, e o mercado regulado de carbono se operacionalize de forma prática e eficiente.

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