Municípios terão que substituir estatais de saneamento

Relicitação é necessária, uma vez que muitas empresas não conseguiriam cumprir exigências do marco legal do setor

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Muitas estatais de saneamento não conseguiram se adequar às exigências do marco legal criado para o setor e deverão ser substituídas. Como consequência, os municípios terão uma tarefa nada fácil pela frente: precisarão estruturar licitações para a contratação de novas empresas. O marco prevê a universalização do acesso à água tratada e ampliação da coleta e do tratamento do esgoto para 90% das áreas sob concessão até 2033.

De acordo com levantamento da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto (Abcon) publicado pelo Valor Econômico, as estatais não conseguiram comprovar capacidade econômico-financeira para realizar os investimentos necessários para cumprir as metas do marco em 1.117 municípios. Sete capitais e 16 cidades com mais de 200 mil habitantes estão nessa situação. 

“A meu ver, não se pode dizer que o resultado do levantamento é propriamente uma surpresa”, avalia Claudio Pieruccetti, sócio do Vieira Rezende Advogados. Isso porque as metas de universalização são ousadas, requerem investimentos elevados e muitos Estados passam por crises fiscais. 

Os municípios em inadequação representam 20% do total, ainda de acordo com o levantamento. Agora, eles terão que relicitar os serviços (individualmente), assumir a prestação direta ou aderir a blocos regionais para a gestão do saneamento básico — estes últimos devem ser criados pelos Estados. Os desafios para atrair investimentos devem ser maiores para as pequenas localidades. “Penso que será muito difícil que o setor privado tenha interesse pelos municípios menores, já que os investimentos podem não ser remunerados pela receita proveniente da prestação do serviço”, considera Pieruccetti. 

A seguir, o advogado comenta o resultado da pesquisa e os desafios para a formação de blocos regionais. 


Levantamento da Abcon mostra que cerca de 20% dos municípios brasileiros não se adequaram às exigências do marco legal do saneamento e terão que licitar o serviço. Como você avalia esse resultado e quais são os desafios pela frente?

Claudio Pieruccetti: A meu ver, não se pode dizer que o resultado do levantamento é propriamente uma surpresa. Desde a edição do novo marco legal do saneamento, era de conhecimento de todos que as metas de universalização eram ousadas e que os investimentos necessários ao seu cumprimento seriam de grande monta, dado o déficit na prestação dos serviços de fornecimento de água e coleta e tratamento de esgoto.

Diante disso, e considerando que não é de hoje a crise fiscal pela qual passam os entes públicos, era esperado que parcela deles não reunisse condições de cumprir as metas estipuladas na legislação.

A simples constatação da inviabilidade de se alcançar as metas não é por si só uma solução para o problema, na medida em que os entes que precisarem transferir a prestação do serviço para o setor privado terão que estruturar uma licitação, o que não é tarefa fácil.

E essa dificuldade provém não apenas dos conhecidos entraves que comumente se vivenciam no âmbito da administração pública, mas também da complexidade que os projetos de saneamento representam — principalmente a nível financeiro, dada a necessidade de um volume significativo de recursos para as obras de infraestrutura, e a nível político, se o caso for de prestação regionalizada do serviço.


De que forma essa licitação deverá ser feita? Há particularidades das licitações no setor de saneamento?

Claudio Pieruccetti: O novo marco legal do saneamento permite que a transferência da prestação do serviço de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto deve ser feito por meio de concessão ou parceria público-privada.

Isso atrai a incidência não apenas da Lei Geral de Licitações (Lei 8.666/93, enquanto ainda possível, ou a Lei 14.133/21), bem como da Lei Geral de Concessões e da Lei de Parcerias Público-Privadas, isto é, nada diferente do que já se conhece desde há algum tempo.

Nesse tipo de contrato administrativo, a licitação deve ser feita sob a modalidade de concorrência, cujos termos são conhecidos do mercado, sendo certo que nas licitações de saneamento, segundo o marco regulatório do setor, os contratos deverão prever, além dos requisitos constantes do artigo 23 da Lei 8.987/95, os seguintes aspectos: 

  1. metas de expansão dos serviços, de redução de perdas na distribuição de água tratada, de qualidade na prestação dos serviços, de eficiência e de uso racional da água, da energia e de outros recursos naturais, do reuso de efluentes sanitários e do aproveitamento de águas de chuva, em conformidade com os serviços a serem prestados;
  2. possíveis fontes de receitas alternativas, complementares ou acessórias, bem como as provenientes de projetos associados;
  3. metodologia de cálculo de eventual indenização relativa aos bens reversíveis não amortizados; 
  4. repartição de riscos entre as partes, incluindo os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária (vide artigo 11).

O setor privado deve se interessar pelos municípios menores? A criação de blocos regionais de concessão é uma forma de aumentar a atratividade desses municípios?

Claudio Pieruccetti: Penso que será muito difícil que o setor privado tenha interesse pelos municípios menores, já que os investimentos podem não ser remunerados pela receita proveniente da prestação do serviço. E, como dito, a prestação desses serviços invariavelmente demanda investimento relevante.

Nesse sentido, certamente a criação de blocos regionais é um meio de se conferir atratividade para os municípios de menor porte, pois aumentará o número de usuários e, em consequência, a expectativa de receita da concessionária. Isso melhora sensivelmente a perspectiva dos projetos, ao facilitar a estruturação das operações de financiamento.

Muito embora a criação de blocos regionais possa gerar um incremento nas dificuldades políticas, certo é que traz uma outra facilidade para a sua estruturação, pois na eventualidade de o estudo econômico-financeiro demonstrar a inviabilidade de cumprimento das metas de universalização, há a possibilidade de dilação desse prazo para 2040, o que pode ser determinante para o equilíbrio da concessão.


Quais são os desafios para criar blocos regionais de concessão e qual deve ser o papel dos governos estaduais para tanto?

Claudio Pieruccetti: Na minha opinião, o grande desafio para criação dos blocos regionais é de ordem política, pois inicia com a necessidade de aprovação de uma lei complementar de criação de uma determina microrregião, caso em que a “adesão” é obrigatória.

O desafio não é diferente na hipótese de desejo de associação, uma vez que isso demanda um grau elevado de articulação política dos entes, o que nem sempre é fácil. Em determinadas regiões nas quais uma determinada cidade — normalmente uma capital — possua um peso muito grande na arrecadação, isso pode ser ainda mais difícil, pois não é improvável que ela pretenda desenvolver sozinha o seu projeto para não ficar à mercê da vontade de outros municípios.

Diz o artigo 25, §3º, da Constituição Federal que são os Estados-membros quem criam as regiões metropolitanas ou as microrregiões “para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum”. Considerando essa missão constitucionalmente atribuída, o papel do Estado deve ser o de fomentador desse movimento de regionalização sempre que isso servir como catalisador de uma melhor prestação do serviço.

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