Ano começa turbulento com disputa envolvendo o ICMS

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Recém-publicada, a regulamentação do Diferencial de Alíquota (Difal) do ICMS está causando polêmica. Não há consenso entre estados e contribuintes sobre quando deve ocorrer o início da cobrança: se ainda neste ano ou se em 2023. Por isso, a questão já bate às portas do Judiciário. “Está delineado um cenário de disputas judiciais ao longo deste ano para a discussão da matéria”, ressalta a advogada Bianca Mareque, associada do Vieira Rezende Advogados. 

O Difal se relaciona a operações de compra e venda de mercadorias quando o fornecedor e o consumidor estão em diferentes estados. Ele é o diferencial entre a alíquota interna do estado de destino da mercadoria e a alíquota interestadual aplicada. A Lei Complementar 109/22 (LC 109/22), publicada em 5 de janeiro de deste ano, foi responsável pela sua regulamentação. Em seguida, vários estados editaram legislações com previsão de cobrança imediata do Difal do ICMS, sob o entendimento de que ele não consistiria em aumento ou instituição de novo tributo. Essa posição, no entanto, é questionada por advogados tributaristas.  

Para Paulo Coimbra, sócio do Coimbra & Chaves Advogados, a LC 109/22 instituiu nova obrigação tributária e não tratou somente de uma mera repartição de receitas entre unidades federativas envolvidas. “Diante desse cenário controverso, é recomendável que os contribuintes (remetentes ou destinatários em operações interestaduais) ingressem em juízo visando a garantia de seus direitos, evitando a cobrança precipitada do Difal, protegendo-se, inclusive, de uma possível (se não provável) nova modulação de efeitos pelo STF”, afirma.

Na entrevista abaixo, Mareque e Coimbra contam como a questão surgiu e falam sobre os principais questionamentos sobre o início da cobrança do Difal. 


O que é o diferencial de alíquota (Difal) do ICMS e quando ele é cobrado? 

Bianca Mareque: O Diferencial de Alíquota do ICMS (Difal) é o valor devido em operações de compra e venda de mercadorias (ou na prestação de serviços, quando sujeita ao ICMS), a consumidor situado em outro estado, sendo calculado e cobrado conforme a diferença entre a alíquota interna do estado de destino e a alíquota interestadual aplicada. 

Além disso, a legislação diferencia as operações praticadas com adquirentes contribuintes do ICMS e não contribuintes do imposto.

A atual polêmica se refere à cobrança do Difal no caso de consumidor não contribuinte. As relevantes mudanças que tratam do tema foram instituídas por meio da Emenda Constitucional 87/2015, sem que tenha sido editada Lei Complementar para tratar da matéria, conforme determina o artigo 146, III, alínea “a”, da Constituição. O objetivo da referida emenda constitucional foi equilibrar o recolhimento do tributo, na medida em que os estados de destino restavam prejudicados pela regra então vigente. Isso porque, à época, era o estado de origem que, majoritariamente, recebia os valores devidos a título de ICMS nessas operações. 

Paulo Coimbra: O Diferencial de Alíquota do ICMS consiste em uma nova obrigação tributária, devida à unidade federativa do destinatário, que resulta da diferença entre a alíquota interestadual e a interna de ICMS do estado de destino da mercadoria ou do serviço. É uma forma que possibilita a divisão do ICMS entre os entes federativos de origem e de destinto, em operações de circulação de mercadorias e serviços, almejando um maior equilíbrio no rateio do tributo. 

Antes da instituição do Difal, por conta da variação entre as alíquotas estaduais do ICMS, havia um desequilíbrio da concentração do imposto, tendo em vista que o valor do tributo era destinado apenas ao estado de origem do item adquirido.

Em 2015, com a aprovação da Emenda Constitucional 87/2015, que alterou o §2º do artigo 155 da Constituição Federal, o Difal passa a ser cobrado. Assim, fica regulamentada a divisão do ICMS entre o estado de origem e o de destino.

Assim, quando uma empresa compra uma mercadoria de outra, localizada em uma unidade federativa diferente da sua, ou quando o cliente final da outra região é uma pessoa física ou jurídica não contribuinte do ICMS, o Difal será devido.

O Convênio Confaz 93/2015 definiu a matéria, dispondo sobre os procedimentos a serem observados nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte do ICMS, localizado em outra unidade federada. Assim, os entes federados iniciaram a cobrança do Difal em operações interestaduais em 2015, não com base em Lei Complementar, mas sim, no convênio supracitado. Contudo, para a exigência do Difal a partir de 1º/01/22, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou ser necessária lei complementar. É nesse contexto que foi editada a LC 190. 


Quais são os principais aspectos da Lei Complementar 109/22? Ela trouxe avanços com relação ao entendimento sobre o Difal?

Bianca Mareque: A Lei Complementar 190/22 (LC 109/22) foi editada com a finalidade de sanar a inconstitucionalidade formal na cobrança do Difal (reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, STF, com modulação de efeitos – determinando que a eficácia do reconhecimento da inconstitucionalidade se iniciasse apenas a partir de 2022), decorrente da sua regulamentação por meio do Convênio ICMS 93, de 17 de setembro de 2015, em vez de por meio de Lei Complementar. Com isso, alterou a Lei Complementar 87/96, para dispor sobre as regras a serem observadas pelos contribuintes para os fins do recolhimento do Difal do ICMS nas operações praticadas com consumidores não contribuintes do imposto.  

Da análise do texto da LC 190/22, verifica-se que, em sua maior parte, ele replica a forma de cobrança antes observada pelos estados, cujas determinações se encontravam dispostas na Constituição Federal e no Convênio ICMS 93/2015. Não obstante, no que se refere às disposições que deixavam dúvidas em razão de conflitarem com as determinações constitucionais, a LC 190/22 pacificou as referidas questões. Um exemplo é a responsabilidade pelo recolhimento do Difal – remetente ou destinatário da mercadoria – e isso porque, por mais que o artigo 155, inciso VIII, da Carta Magna seja claro quanto ao tema, o Convênio ICMS 93 era contrário às disposições constitucionais. 

Paulo Coimbra: Os contribuintes, desde 2015, enfrentavam a controvérsia jurídica de que não havia lei complementar que regulasse a cobrança. 

Dessa forma, buscaram o STF, o qual, no RE 1.287.019, leading case do Tema 1093 RG, confirmou a necessidade de edição de lei complementar, visando a cobrança da Difal nas operações interestaduais envolvendo consumidores finais não contribuintes do imposto, nos termos da Emenda Constitucional nº 87/15. Nesse rumo, foi declarada a inconstitucionalidade do Convênio Confaz 93/15, sendo seus efeitos tolerados, por força de modulação, até o final de 2021. 

Assim, nos termos do entendimento do STF, para regular a cobrança do Difal do ICMS a partir de 1º de janeiro de 2022 foi editado o Projeto de Lei Complementar 32/2021, que culminou com a aprovação da LC 190. O PL altera a Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir) para regulamentar a cobrança do ICMS, pelo estado de destino, nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte do imposto. 

Dessa forma, observa-se que a LC 190, ao regulamentar o Difal, veio dirimir eventuais conflitos de competência entre os estados de origem e de destino, resultando na instituição nova obrigação tributária, e não somente uma mera repartição de receitas entre unidades federativas envolvidas. Importantíssimo esse fato: o Difal consiste em uma nova obrigação tributária, tendo fato gerador, sujeito ativo (estado de destino) e sujeitos passivos (contribuintes) distintos (remetente ou destinatário, a depender do caso). Não se trata, pois, de mero rateio de receitas mediante mero diferencial de alíquota. Assim, a instituição do Difal decorre do poder de tributar, mediante exercício uma nova competência outorgada aos estados de destino.


Quando começa a cobrança do Difal do ICMS, de acordo com a Lei Complementar 109/22 (LC 109/22)? Por que há divergência de entendimento com relação ao prazo inicial do imposto?

Bianca Mareque: A LC 190/22 prevê, de forma expressa em seu artigo 3º que, quanto à sua produção de efeitos, deve ser observado o que dispõe o artigo 150, inciso III, alínea “c”, da Constituição Federal, isto é, deve ser respeitada a noventena para os fins de cobrança do Difal do ICMS pelos estados. Sobre a referida disposição, que trata da proibição aos fiscos de cobrarem tributos criados ou majorados de forma imediata, foi editada justamente com o fim de proteger os contribuintes de serem surpreendidos com o aumento de sua carga tributária. 

No entanto, apesar de a LC 190/2022 tratar da necessidade obrigatória de observância da noventena, há que se observar que, antes mesmo disso, deve ser aplicado o texto do artigo 150, inciso III, alínea “b”, da Constituição, no que se refere à cobrança do Difal do ICMS nas operações com consumidores não contribuintes do imposto. Isso porque, sendo a cobrança do Difal a instituição de nova incidência tributária para as operações destinadas a não contribuintes (ou, ao menos, uma majoração do imposto, como parte da doutrina concebe essa cobrança), é certo que ele só poderia ser cobrado a partir de janeiro do ano de 2023, uma vez que, nesse caso, deve ser observada a anterioridade anual – veja-se: o texto constitucional é expresso ao vedar a cobrança de tributos no mesmo ano em que tenha sido majorado ou instituído.

Apesar do acima exposto, há estados que editaram suas legislações com previsão de cobrança imediata do Difal do ICMS, sob o entendimento de que ele não consistiria em majoração ou instituição de tributo. Com isso, está delineado um cenário de disputas judiciais ao longo deste ano para a discussão da matéria.

Paulo Coimbra:artigo 3º da LC 190/22 especifica que os seus efeitos devem se sujeitar ao que determina alínea “c” do inciso III do caput do artigo 150 da Constituição de 1988. Esse dispositivo trata da espera nonagesimal, impondo um prazo de 90 dias entre a data de publicação da lei que institui ou majora tributo e o início de sua eficácia. Esse mesmo dispositivo constitucional faz referência à anterioridade anual, que veda a cobrança de tributo no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que o instituiu ou aumentou. Assim, como a LC 190 foi publicada já em 2022, por força da anterioridade anual, a rigor, o Difal deveria ser cobrado somente a partir de janeiro de 2023.

Entretanto, os estados e o Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz) têm sustentado que a lei passará a valer a partir de 90 dias após a sua publicação, o que corresponderia a 06/04/2022. Entendem, assim, os estados que a cobrança do Difal com base na nova lei deveria respeitar apenas a noventena. Em tal descaminho, o Confaz, por sua vez, publicou o Convênio ICMS 236/21 no dia 06/02/2022, autorizando os Estados a cobrarem imediatamente o Difal.

Observa-se, assim, a divergência de entendimento com relação ao prazo inicial do imposto por parte das administrações tributárias e dos contribuintes.


Quais argumentos podem embasar a tese de que não é necessário recolher o Difal em 2022? Nesse cenário indefinido, o que se sugere aos contribuintes?

Bianca Mareque: O principal ponto a ser observado quanto à tese de que o Difal não pode ser cobrado de forma imediata pelos estados é o de que o Difal devido nas operações com não contribuintes do ICMS consiste na cobrança de novo tributo ou, ao menos, em aumento do imposto. Isso porque, apesar de o texto constitucional ter sido alterado por meio da Emenda Constitucional 87/2015 para prever a possibilidade de cobrança do diferencial, não havia, até então, Lei Complementar que a regulamentasse.

Dessa forma, e considerando, portanto, que se trata da instituição de nova exação, é necessário o cumprimento, pelos estados, das normas constitucionais editadas com o objetivo de se proteger os contribuintes do aumento imediato de sua carga tributária, que são claras e vedam aos entes públicos a cobrança de tributo (i) no mesmo exercício financeiro em que foi publicada a lei que os instituiu ou aumentou; e (ii) antes de decorridos noventa dias da data em que foi publicada a lei que os instituiu ou aumentou. Com isso, é certo que o Difal do ICMS só poderá ser cobrado a partir do exercício de 2023. 

Sobre eventual estratégia de defesa dos contribuintes contra possíveis arbitrariedades por parte dos estados, considerando o período de vacatio legis, sugere-se a impetração de mandado de segurança nos estados de destino de suas mercadorias, com a finalidade de que se resguarde o seu direito ao não recolhimento do imposto. Além disso, recomenda-se que sejam depositados os valores no processo, como forma de mitigar eventuais riscos decorrentes do entendimento que ainda será firmado pelo Poder Judiciário quanto ao tema. A necessidade da ação judicial decorre do risco de que, na ausência de recolhimento, os estados realizem a apreensão de mercadorias em barreiras fiscais, trazendo prejuízos financeiros e atrasos operacionais e logísticos significativos. 

Paulo Coimbra: Tendo a LC 190 regulado a competência tributária para a instituição de nova obrigação tributária, de competência do estado de destino, foi suprida a lacuna legislativa reconhecida pelo STF (Tema 1093). Nessa ordem de ideias, seria necessária a edição de uma lei posterior, por parte de cada estado (de destino) instituindo de forma válida o Difal. Não poderia, portanto, a LC 190 convalidar leis estaduais anteriores que padeciam de inconstitucionalidade formal (devido à ausência de lei complementar, cuja omissão não permitiria a cobrança do Difal, conforme decidido pelo STF). E as leis estaduais instituidoras do Difal, necessariamente posteriores à 04/01/22, devem (ou deverão) se sujeitar à anterioridade anual (e, também, nonagesimal). Assim, na melhor das hipóteses, o Difal somente poderá ser exigido a partir de 1º de janeiro de 2023.

Diante desse cenário controverso, é recomendável que os contribuintes (remetentes ou destinatários em operações interestaduais) ingressem em juízo visando a garantia de seus direitos, evitando a cobrança precipitada do Difal, protegendo-se, inclusive, de uma possível (se não provável) nova modulação de efeitos pelo STF.

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