Cobrança retroativa de ISS provoca judicialização

Contribuintes de Barueri questionam embasamento jurídico da iniciativa

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Ao longo dos anos, o município de Barueri atraiu muitas empresas. Elas escolhiam o local não só por causa de sua proximidade com a cidade de São Paulo e boa infraestrutura, mas também por questões fiscais. Enquanto na capital paulista a alíquota do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS) é de 5%, em Barueri esse percentual é de 2% — e até 2017 era cobrado sobre uma base de cálculo menor, que excluía impostos federais. Esse tratamento pró-contribuinte, entretanto, sofreu uma reviravolta, e o município passou a cobrar impostos que julga atrasados. Como resultado, o assunto tem ido parar na Justiça. 

Paulo Coimbra, sócio do Coimbra & Chaves Advogados, recomenda que as empresas que receberam essas cobranças recorram ao Judiciário para buscar “a nulidade do lançamento tributário, que padece de evidente vício de origem”. O advogado considera que há fortes argumentos para sensibilizar os magistrados a respeito da nulidade dessas cobranças.

Elas decorrem da diferença de imposto gerada pelo uso de duas bases distintas para cálculo do ISS. A primeira, apurada conforme o artigo 41 do Código Tributário do Município (CTM) de Barueri, desconsiderava o IRPJ, o PIS, a Cofins e a CSLL. Dessa forma, o tributo incidia sobre uma base de cálculo menor. A prática, vantajosa para as empresas, durou até o fim de 2017, quando a desconsideração desses impostos federais passou a ser proibida pela Lei Complementar 157. Desde então, esses tributos passaram a ser incluídos na conta, gerando uma base de cálculo superior.

A questão é que, em agosto do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o artigo 41 do CTM de Barueri inconstitucional. De acordo com o tribunal, ele fere o artigo 88 da Constituição, que prevê uma alíquota mínima de 2% para o ISS e veda a concessão de benefícios fiscais que reduzam indiretamente a alíquota — como, por exemplo, a modificação na base de cálculo, com a retirada dos impostos federais. Diante desse entendimento, o município passou a cobrar das empresas os valores retroativos a 2016 e 2017, quando a base de cálculo era inferior. Na entrevista abaixo, o advogado detalha o imbróglio e suas implicações.


Os municípios contam com liberdade para dispor sobre as alíquotas e sobre a base de cálculo do ISS? Há limitações?

Paulo Coimbra: Os municípios contam com autonomia para definir as alíquotas aplicáveis ao ISS, desde que observados os limites impostos pela lei complementar de regência. Caso tal norma não tenha sido editada, devem obedecer as normas previstas no Ato de Disposições Constitucionais Transitórias.

Recorde-se que a Constituição, a fim de compatibilizar os interesses entre os diversos municípios existentes e promover o princípio federativo, elegeu a lei complementar como veículo apto a disciplinar não apenas quais seriam os serviços de quaisquer natureza (artigo 156, III), mas também definir sua base de cálculo (artigo 146, III, “a”), fixar as suas alíquotas máximas e mínimas e regular a forma e as condições como as isenções, os incentivos e os benefícios fiscais serão concedidos e revogados (artigo 155, §3º, I e III).

Enquanto não editada a lei complementar exigida, prevê o Ato de Disposições Constitucionais Transitórias que a alíquota mínima do tributo seria de 2%, sendo vedada a concessão de benefícios fiscais que implementem a redução indireta da alíquota (artigo 88). Atendendo ao reclame constitucional, a Lei Complementar (LC) 116/2002 definiu que a base de cálculo do ISS será, em regra, o preço do serviço (artigo 7º); enquanto as alíquotas poderão atingir o patamar de 5%. Foi somente em 2016, com a edição da LC 157, que foi suprida a lacuna de limitação quanto à alíquota mínima do tributo em lei complementar, que acabou por replicar a previsão outrora constante no ADCT.

Desse modo, os municípios podem dispor sobre as alíquotas do ISS, desde que variem entre o mínimo de 2% e o máximo de 5%. Não podem, no entanto, estabelecer abatimentos ou alterar a base de cálculo do ISS prevista em lei complementar (lei nacional).


A cobrança de ISS de forma retroativa, no caso do município de Barueri (SP), tem embasamento jurídico?

Paulo Coimbra: No específico caso em análise, pode-se dizer que a cobrança retroativa do ISS pelo município de Barueri é, no mínimo, demasiado prematura. Ora, a decisão que considerou sua legislação inconstitucional não transitou em julgado porque o próprio município dela recorreu, pretendendo, dentre outros pedidos (a exemplo da nulidade do julgamento), que seus efeitos sejam exclusivamente prospectivos. Evidente a contradição do município! De um lado, pede sua modulação, para que prevaleça apenas para casos futuros e, de outro lado, pretende cobrar retroativamente o imposto que deixou de ser cobrado no passado.

Destarte, é relevante registrar a real possibilidade de que o Tribunal module os efeitos de sua decisão. Não obstante os julgamentos do Supremo Tribunal Federal terem, em regra, efeitos ex tunc, eles apenas se operam a contar da definitividade da decisão de mérito. Porquanto ainda pendente de julgamento o pedido de modulação, não poderia o ente municipal cobrar retroativamente o tributo. Patente contradição!


O que se recomenda às empresas que receberam cobranças retroativas de ISS?

Paulo Coimbra: Tendo em vista a insubsistência das cobranças no atual contexto, recomenda-se que recorram ao Judiciário, a fim de declarar a nulidade do lançamento tributário, que padece de evidente vício de origem.

Ademais, deve-se considerar que, embora o STF ainda não tenha se manifestado quanto ao pleito de modulação de efeitos, podem os juízes avaliar a retroação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em cada caso concreto, uma vez que implica em mudança do entendimento da jurisprudência (artigo 927, §3º, CPC). Acreditamos haver fortes argumentos para sensibilizar os magistrados, desde a presunção de legitimidade das leis, até a proteção da confiança, da legítima expectativa gerada pelo próprio municipal (em lei por ele mesmo editada), ambos umbilicalmente associados à segurança jurídica.


Qual é o impacto desse tipo de cobrança sobre as empresas e sobre a segurança jurídica?

Paulo Coimbra: A cobrança retroativa do ISS malfere a segurança jurídica e a proteção da confiança, uma vez que, enquanto não declarada a inconstitucionalidade do artigo legal alvejado, os contribuintes continuaram a obedecer ao seu comando, sob a legítima expectativa de sua validade. Em observância ao princípio da presunção de validade das leis, merece prevalecer a confiança legítima do contribuinte até a data do julgamento em sentido contrário pelo STF.

A convalidação de cobranças (indevidas) promovidas pelo município de Barueri é medida que erode a confiabilidade dos administrados no sistema normativo, comprometendo a eficácia do princípio de certeza e previsibilidade do direito.

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