Fundos imobiliários: medo de tributação faz sentido?

Entenda as questões regulatórias e tributárias envolvendo a decisão da CVM sobre o Fundo Maxi Renda

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Desde o fim de janeiro, os participantes da indústria de fundos de investimento imobiliários (FIIs) estão preocupados. Investidores e gestores de recursos temem que a distribuição de dividendos desses produtos, hoje isenta de imposto de renda (IR), possa ser tributada. O receio não é fortuito. Ele surgiu após decisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), publicada em 24 de janeiro, a respeito do fundo Maxi Renda (MXRF11), um dos maiores FIIs do País, com cerca de 500 mil cotistas. Nela, o regulador manifestou entendimento de que o Maxi Renda só deveria distribuir dividendos quando registrasse lucro contábil. Até então, a distribuição ocorria com base no lucro apurado pelo chamado “regime de caixa”. Administrador do fundo, o BTG Pactual recorreu da decisão, suspendendo temporariamente seus efeitos.

Em relatório, analistas da XP avaliaram que a interpretação da CVM gera insegurança jurídica e afasta os investidores. Afinal, ela afeta dois grandes atrativos dos FIIs: o pagamento de dividendos e a isenção tributária sobre os lucros distribuídos aos cotistas. Isso ocorre porque qualquer valor distribuído por um FII acima do lucro contábil deve ser apresentado como amortização de cotas ou devolução de capital. O problema é que, enquanto a distribuição de rendimentos é isenta de imposto de renda, a amortização é tributada.

Para os advogados Felipe Hanszmann, Caio Brandão e Michel Siqueira Batista, respectivamente sócio e associados do Vieira Rezende Advogados, qualquer repercussão de um eventual novo entendimento a respeito dos rendimentos dos FIIs não seria automática. Antes de tributar os dividendos recebidos como resgate ou devolução de capital, seria necessário que o Fisco exigisse a reelaboração das demonstrações financeiras dos FIIs para identificar a parcela dos dividendos classificada como amortização — e informar os quotistas. “Sem a observância de ambas as condições, qualquer tentativa de cobrança seria questionável”, afirmam. Além disso, mesmo que haja a distribuição de parcelas referentes à amortização, nem sempre ela significa acréscimo patrimonial tributável (isso depende do custo de aquisição das cotas). Outro ponto passível de discussão, avaliam os advogados, é se a parcela distribuída referente a amortizações poderia ser enquadrada como rendimento ou não. 

Na entrevista a seguir, Hanszmann, Brandão e Batista explicam o imbróglio envolvendo a decisão da CVM e suas possíveis repercussões. 


No que consistem o lucro contábil e o lucro apurado pelo regime de caixa (lucro caixa)? De acordo com as normas, os FIIs devem apurar lucro de acordo com o regime de caixa ou de competência?

Felipe Hanszmann, Caio Brandão e Michel Siqueira Batista: Como regra geral, a Lei das Sociedades Anônimas (Lei das S.As.) e as normas contábeis determinam que as companhias elaborem seus balanços patrimoniais com base no princípio da competência.

De acordo com esse princípio, as entidades devem reportar em seus balanços os efeitos das suas operações (e demais eventos que repercutam em seu patrimônio) nos períodos a que elas se referem, ainda que os recebimentos e pagamentos em caixa ocorram em períodos distintos. 

A elaboração das demonstrações financeiras dos fundos de investimento imobiliários (FIIs) está sujeita a esse critério, por força do artigo 2º da Instrução CVM 516, de 29 de dezembro de 2011 (ICVM 516/11).

O resultado positivo das mutações patrimoniais registradas ao longo de determinado período é o que se chama lucro (ao passo que o resultado negativo representa o prejuízo).

O que se convencionou chamar de lucro contábil corresponde, portanto, à diferença positiva resultante das mutações patrimoniais registradas pelas entidades (e FIIs) com base no regime de competência.

É a partir desse lucro que as companhias distribuem seus dividendos.

Dito isso, o parágrafo único do artigo 10 da Lei 8.668, de 25 de junho de 1993 (com a redação dada pela Lei 9.779, de 19 de janeiro de 1999), ao dispor especificamente sobre a distribuição de rendimentos, estabelece que os FIIs deverão “distribuir a seus quotistas, no mínimo, noventa e cinco por cento dos lucros auferidos, apurados segundo o regime de caixa”.

Como o balanço dos FIIs (a partir do qual o lucro é apurado) é elaborado com base no princípio da competência, a disposição acima gerou dúvidas no mercado.

Foi nesse contexto que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou o Ofício-Circular CVM/SIN/SNC 1/2014, que trata da “orientação aos administradores sobre a distribuição de resultados de fundos de investimento imobiliário”.

Na ocasião, o órgão regulador esclareceu a metodologia a ser aplicada pelos FIIs para apuração do valor a ser distribuído, estabelecendo que “o administrador deverá partir do resultado contábil (lucro ou prejuízo) apurado pelo regime de competência em um determinado período e ajustá-lo pelos efeitos das receitas/despesas contabilizadas e ainda não recebidas/pagas no mesmo período de apuração.”

Assim, pode-se concluir que o “lucro caixa” (montante passível de distribuição, nos termos do parágrafo único do artigo 10 da Lei 8.668/93) seria, de forma simplificada, o lucro contábil ajustado pelas receitas/despesas que tiverem sido registradas de acordo com o regime de competência, mas que não tenham sido recebidas/pagas no período.

Diante disso, conclui-se que os FIIs devem elaborar suas demonstrações financeiras aplicando os princípios geralmente aceitos de contabilidade, incluindo o princípio da competência. Nessa ocasião, será apurado o chamado lucro contábil.

Adicionalmente, para identificar o montante passível de distribuição, os FIIs deverão apurar o lucro caixa.


Em esclarecimento ao mercado, a CVM pontua que, ao apresentarem suas demonstrações financeiras, os FII “devem reconhecer adequadamente a segregação dos valores distribuídos entre rendimentos e amortização de capital”. Como são definidos os rendimentos e as amortizações de capital? 

Felipe Hanszmann, Caio Brandão e Michel Siqueira Batista: A nota de esclarecimento da CVM emitida em 27 de janeiro de 2022 refere-se à decisão do colegiado no processo SEI 19957.006102/2020-10, publicada em 24 de janeiro de 2022 e que analisou a possibilidade de o Maxi Renda Fundo de Investimento Imobiliário (MXRF11) distribuir aos seus quotistas valores em montante superior ao lucro contábil.

Na ocasião, o colegiado decidiu por maioria, seguindo o voto do diretor relator Fernando Caio Galdi, que seria possível a distribuição de resultado com base no lucro caixa em valor superior ao lucro contábil, porém nessa situação “o montante distribuído em excesso à soma do lucro do exercício adicionado dos lucros acumulados (e/ou reserva de lucros) do exercício anterior, deve ser tratado contabilmente [pelo FII] como amortização de cotas ou devolução do capital”.

Para a CVM, portanto, somente a parcela distribuída com base no lucro contábil pode ser considerada rendimento, enquanto a parcela excedente passível de distribuição (por força do parágrafo único do artigo 10 da Lei 8.668/93) deve ser tratada como resgate de quotas ou devolução do capital.

Apesar de se referir a um caso específico (FII Maxi Renda), o racional da decisão pode se aplicar aos demais fundos de investimento imobiliário que tenham características similares às do caso analisado.

Importante destacar, no entanto, que os efeitos da decisão se encontram nessa data suspensos, após a CVM aceitar o pedido de efeito suspensivo apresentado pelo BTG Pactual, administrador do FII Maxi Renda, após diversas instituições manifestarem publicamente preocupações com o impacto dessa interpretação.


Em tese, os investidores podem ser prejudicados quando há distribuição de amortização de capital e não de rendimentos? E, caso a autarquia não mude o seu entendimento, em que medida os investidores seriam afetados?

Felipe Hanszmann, Caio Brandão e Michel Siqueira Batista: Com relação ao montante passível de distribuição, a princípio não haveria impacto para os investidores.

O que pode ocorrer, no entanto, é uma mudança do tratamento tributário aplicável, capaz de potencialmente reduzir a rentabilidade do investidor, em especial as pessoas físicas que gozam da isenção prevista no inciso III do artigo 3º da Lei 11.033, de 21 de dezembro de 2004 (parte significativa do público investidor em FIIs).

De acordo com esse dispositivo, são isentos (atendidos determinados requisitos) os rendimentos distribuídos pelos FIIs às pessoas físicas.

Assim, caso os FIIs venham a ser obrigados a segregar a distribuição entre rendimentos e amortização (resgate ou devolução de capital), as autoridades fiscais podem entender que a parcela referente à amortização não está sujeita à isenção.

Aplicando esse entendimento, sob a perspectiva do investidor, o valor recebido em decorrência da amortização seria utilizado para reduzir o custo de aquisição das quotas do FIIs por ele detidas, repercutindo, assim, no aumento de eventual ganho de capital a ser apurado em um evento futuro de alienação das quotas — implicando, pois, em uma maior tributação, uma vez que o ganho de capital na alienação de quotas de FIIs por pessoa física residente no Brasil está, em regra, sujeito à alíquota de 20% (enquanto os rendimentos são isentos).

Essa repercussão, no entanto, não seria automática.

Primeiramente, qualquer iniciativa por parte das autoridades fiscais no sentido de pretender tributar essa parcela exigiria que antes o FII refizesse suas demonstrações financeiras, de modo a identificar a existência ou não de parcela passível de ser classificada como amortização.

Além disso, entendemos que a informação deve ser adequadamente transmitida para o quotista, para que este tenha condições de aplicar o tratamento correspondente.

Sem a observância de ambas as condições, qualquer tentativa de cobrança seria questionável.

Adicionalmente, a distribuição em razão de amortização até o limite do custo de aquisição das quotas não configura acréscimo patrimonial tributável.

Então, apenas quando o montante distribuído a título de amortização superar o custo de aquisição ou quando o quotista alienar as quotas auferindo efetivo ganho de capital (sobre o custo de aquisição ajustado por amortizações anteriores) é que se poderia cogitar algum efeito fiscal para o investidor.

Por fim, a própria interpretação de que a parcela distribuída referente a amortizações não se enquadra no conceito de rendimento para os fins do inciso III do artigo 3º da Lei 11.033/04 é questionável, podendo esse argumento ser alegado como elemento de defesa caso a situação venha a suscitar questionamentos por parte das autoridades fiscais.


Como funciona a apresentação de pedidos de reconsideração por parte da autarquia? São comuns os casos em que o colegiado volte atrás nas decisões tomadas e/ou contrarie os pareceres da área técnica?

Felipe Hanszmann, Caio Brandão e Michel Siqueira Batista: Nos termos da Resolução CVM 46/21 — que trata sobre a tramitação de processos administrativos não sancionadores na CVM — é possível ingressar com um pedido de reconsideração da decisão no prazo até 15 dias úteis contados da ciência pelo interessado.

Nessa oportunidade, o pedido é direcionado para área técnica responsável pela decisão impugnada ou para o membro do colegiado que tiver redigido o voto condutor para que possa reformar ou manter a decisão recorrida. 

Em termos quantitativos, na maioria dos casos o colegiado da CVM tende a manter o parecer da área técnica, muito embora haja hipóteses de reconsideração, sendo certo que a reforma das decisões pelo colegiado depende bastante das particularidades do caso concreto, ainda mais considerando que há vários temas regulados pela CVM que são controversos na jurisprudência da própria autarquia, bem como a rotatividade dos diretores que analisam o caso, a exemplo do caso concreto em análise — dado que o diretor relator, cujo voto foi acompanhado pela maioria, foi substituído em janeiro de 2022.

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