Elevação do IOF é inconstitucional, dizem advogados

Dada sua função regulatória, imposto não deveria ter usado pelo governo para aumentar arrecadação

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Além de provocar o encarecimento das operações de crédito, a elevação das alíquotas do imposto sobre operações financeiras (IOF) poderá gerar uma proliferação de demandas judiciais questionando a constitucionalidade do decreto que estabeleceu a medida. 

 No último dia 17, o governo publicou o Decreto nº 10.797/2021, que eleva temporariamente as alíquotas incidentes sobre operações de crédito para pessoas físicas (de 3% para 4,08% ao ano) e jurídicas (de 1,5% para 2,04% ao ano). Os novos valores serão cobrados entre 20 de setembro e 31 de dezembro de 2021. 

Sávio Hubaide, associado do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, explica que a finalidade de impostos com função extrafiscal — como é o caso do IOF — é a regulação e intervenção na economia, incentivando ou desincentivando determinadas práticas por parte dos contribuintes. Por isso, esse tipo de tributo é chamado de imposto regulatório, não tendo como objetivo principal fomentar a arrecadação. Porém, contrariando essa premissa, o argumento do governo para a atual elevação do IOF foi a necessidade de angariar recursos para o custeio do Auxílio Brasil (substituto do Bolsa Família). 

“Independentemente de qualquer juízo de valor acerca da legitimidade do programa, tal justificativa evidência que o Poder Executivo utilizou prerrogativas que lhe foram concedidas para intervir, quando necessário, na política econômica, para levantar recursos para o custeio de despesas não relacionadas com a almejada finalidade extrafiscal ou regulatória”, observa Hubaide.

Na mesma linha, Michel Siqueira Batista, associado do Vieira Rezende Advogados, observa que a utilização desse tipo de instrumento com finalidade essencialmente arrecadatória burla o espaço de excepcionalidade autorizado pela Constituição. “Houve uma quebra de confiança. Se o governo tomou essa atitude agora, quem garante que não haverá novos aumentos no futuro com objetivo apenas arrecadatório?”, questiona o advogado.

Na entrevista abaixo, Hubaide e Batista abordam os impactos da elevação do IOF e explicam a finalidade dos impostos regulatórios.


Que tipos de impostos podem ser alterados via decreto? Esse modo é o ideal para promover alterações nos tributos?

Sávio Hubaide: Os impostos passíveis de alterações via decreto são aqueles que possuem majoritária função extrafiscal, tais como os impostos aduaneiros de importação e de exportação, o imposto sobre produtos industrializados (IPI) e o imposto sobre operações financeiras (IOF). 

As hipóteses que admitem a alteração de alguns impostos por atos do Poder Executivo (como os decretos) são excepcionais, chamadas de exceções ou mitigações do princípio da legalidade. Isso porque, em regra, tributos devem ser obrigatoriamente instituídos ou majorados mediante lei, elaborada pelos representantes democraticamente eleitos para o Poder Legislativo, que devem prever todos os elementos essenciais da obrigação tributária e respeitar as demais limitações constitucionais ao poder de tributar. Até mesmo nas hipóteses excepcionais, os decretos somente podem atuar dentro das condições e limites estabelecidos em lei.

Michel Siqueira Batista: A Constituição Federal estabelece como regra geral que a União, os estados, Distrito Federal e municípios somente poderão exigir ou aumentar tributo mediante lei. Essa regra é mitigada de forma excepcional apenas para o IOF, o imposto de importação (II), o imposto de exportação (IE) e o imposto sobre produtos industrializados (IPI).

O aumento via decreto não é o ideal, pois ao prescindir da tramitação pelo Legislativo, aumentam-se as chances de arbitrariedades e decisões equivocadas, passíveis de questionamento judicial pelos contribuintes. O ideal, portanto, é que alterações dessa natureza sejam realizadas via lei, envolvendo um debate prévio sobre suas reais motivações. O aumento via decreto é, portanto, medida de urgência, excepcional, razão pela qual deve ser muito bem fundamentado.


A elevação do IOF causou surpresa no mercado. Qual é a importância de os agentes econômicos terem previsibilidade com relação aos impostos?

Sávio Hubaide: Um dos pilares da segurança jurídica consiste na “calculabilidade”, isto é, a capacidade de antever e medir quais serão as consequências dos atos e negócios jurídicos praticados. No caso da elevação do IOF crédito, como os contribuintes são as pessoas físicas ou jurídicas tomadoras de crédito, e tendo em vista que o imposto impacta diretamente o preço dos contratos, a previsibilidade é um elemento essencial para a tomada de decisão acerca da contratação do empréstimo, financiamento, cheque especial, entre outras operações afetadas pelo decreto.

Michel Siqueira Batista: A previsibilidade é fundamental para que os agentes econômicos tenham tranquilidade para planejar e implementar seus projetos e investimentos.

Sem previsibilidade, não há estabilidade. Por sua vez, instabilidade representa risco, e quanto maior o risco, maior o retorno exigido pelo mercado. Logo, maior o custo para quem produz.


Uma das críticas feitas à medida é a de que o IOF é um tributo com função regulatória e que não poderia ser elevado unicamente para elevar a arrecadação. No que consiste a função regulatória dos tributos? Como você enxerga essa questão?

Sávio Hubaide: Os tributos regulatórios são aqueles que possuem função majoritariamente extrafiscal, por consistirem em valiosos instrumentos de política econômica. Nesse sentido, impostos como o de importação, o de exportação e o IOF não possuem como principal finalidade fomentar a arrecadação e prover recursos aos cofres públicos, mas são comumente utilizados como mecanismos de regulação e de intervenção na economia, desempenhando o papel de incentivar ou desincentivar a prática de determinadas condutas pelos contribuintes. Esses impostos se relacionam diretamente com comércio exterior, políticas monetária e cambial, motivo pelo qual a Constituição autorizou não só a alteração de alíquotas diretamente por meio de decretos, como também os excepcionou das anterioridades anual e nonagesimal. 

No caso da recente elevação das alíquotas do IOF crédito, a justificativa veiculada foi a de que o governo federal desejaria angariar recursos para financiar determinado programa de política pública. Independentemente de qualquer juízo de valor acerca da legitimidade do referido programa, tal justificativa evidência que o Poder Executivo utilizou prerrogativas que lhe foram concedidas para intervir, quando necessário, na política econômica, para levantar recursos para o custeio de despesas não relacionadas com a almejada finalidade extrafiscal ou regulatória. Um exemplo de utilização do IOF crédito com função reguladora seria elevar as alíquotas como tentativa de desestimular a contratação de empréstimos, ou o contrário, reduzir as alíquotas para encorajar a tomada de recursos com o intuito de movimentar a economia.

Michel Siqueira Batista: Função regulatória é a capacidade que os tributos têm de influenciar as decisões dos contribuintes, de modo a incentivar ou desestimular determinados comportamentos como consequência da redução ou aumento dos custos representados pelos tributos. Essa função também é chamada de extrafiscal ou indutora.

Por definição, qualquer tributo guarda algum grau de função extrafiscal, tendo em vista que o tributo é um custo e como custo sempre impactará na formação de decisão dos contribuintes. Da mesma forma, por definição, o tributo sempre gerará arrecadação.

Acontece que a economia é mais sensível a alguns tributos, como o IOF e os demais já anteriormente mencionados, os quais incidem sobre situações (empréstimos, remessas de câmbio, importações etc.) que geram repercussões mais imediatas.

Por conta disso, diz-se que esses impostos têm função regulatória preponderante, pois têm grande capacidade de impactar na economia, revelando-se como instrumentos alternativos de política monetária, cambial e sobretudo fiscal.

Em tese, a justificativa para mitigar a exigência de lei para aumentar o IOF (assim como para que o aumento entre em vigor imediatamente — pois a regra é que qualquer elevação só passe a valer após pelo menos 90 dias) seria a utilização dele como instrumento de política monetária/fiscal (por exemplo, poderia ser utilizado — de modo devidamente fundamentado — com o objetivo de reduzir a quantidade de empréstimos, impactar o nível de consumo, etc.).

Dessa forma, aproveitar-se das prerrogativas desse tipo de instrumento com objetivos essencialmente arrecadatórios, e principalmente sem qualquer fundamentação de caráter regulatório, configura uma burla ao espaço de excepcionalidade autorizado pela Constituição. 

Neste sentido, entendemos que o aumento em questão sofre de ilegalidade, por tentar se beneficiar da exceção ao princípio da legalidade, sem, contudo, basear-se em motivação compatível com o uso desta exceção.  


Quais devem ser os impactos da elevação do IOF?

Sávio Hubaide: Primeiramente, vale lembrar que a elevação impactará as operações de crédito, mas não as de câmbio, seguros e relativas a títulos ou valores mobiliários. A medida tornará mais onerosa a contratação de operações como empréstimos, adiantamento a depositantes e financiamentos. 

A elevação das alíquotas prejudicará, ainda, operações de crédito contratadas na modalidade de liberação parcelada, pois o aumento impactará o custo de créditos liberados após a data definida no decreto (20 de setembro de 2021), ainda que os contratos tenham sido celebrados em data anterior a sua edição. Por fim, uma possível consequência da medida é a proliferação de demandas judiciais questionando a constitucionalidade do decreto, abarrotando ainda mais o Poder Judiciário.

Michel Siqueira Batista: Em termos de arrecadação, fala-se que o aumento deve render cerca de 2,14 bilhões de reais aos cofres do governo.

Embora nominalmente esse valor seja relevante (além de representar um acréscimo de cerca de 36% em relação às alíquotas anteriores), na prática a cobrança será pulverizada sobre milhares de contribuintes, causando, individualmente, impacto em certa medida pequeno na maioria dos casos. Além disso, o aumento é temporário. Em 1º de janeiro de 2022, voltam as alíquotas anteriores.

Por conta disso, captações de empréstimos de volumes grandes que estariam programadas para ocorrer até o final do ano talvez sejam postergadas para 2022 ou, no limite, renovadas já sob alíquotas reduzidas.

A nosso ver, o principal impacto é o da quebra de confiança do mercado. Se o governo tomou essa atitude agora, quem garante que não haverá novos aumentos no futuro com objetivo apenas arrecadatório? Mais ainda, quem garante que novos aumentos não atingirão outras situações, como o imposto de importação, IPI e o próprio IOF, tanto sobre operações de crédito quanto sobre remessas de câmbio?

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