A aplicação da Lei de Falência e recuperação de empresas aos clubes de futebol

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A Sociedade Anônima do Futebol (SAF) é, sem dúvidas, uma das mais relevantes e curiosas inovações jurídicas recentes no Brasil — e ainda dará o que falar. Muito além de simples instituto societário, a SAF foi criada para se tornar um pilar do novo mercado do futebol nacional, garantindo mais confiança, credibilidade e segurança para investidores e permitindo, com isso, o crescimento sustentável dos clubes.

Conceitualmente, a SAF nada mais é do que uma companhia que tem sua atividade principal dedicada à prática do futebol profissional. Ela foi criada pela Lei nº 14.193/21, que estimula os clubes do país (historicamente constituídos sob a forma de associações civis sem fins lucrativos) a migrarem do modelo associativo para o modelo societário-empresarial.

A Lei nº 14.193/21 previu diferentes formas pelas quais a SAF pode ser constituída. Duas delas se aplicam especificamente aos clubes já existentes: (i) por meio da transformação integral, do clube-associação, em SAF; ou (ii) por meio da cisão do departamento de futebol do clube-associação e transferência de todo o patrimônio relacionado ao futebol à SAF. Este último modelo é o que vem sendo adotado pelos clubes que já fizeram uso da Lei da SAF[1].

Conjuntamente à figura da SAF, o legislador inovou ao criar meios alternativos pelos quais os clubes-associações podem satisfazer as suas dívidas multimilionárias, contraídas ao longo de décadas de gestões muitas vezes amadoras e até temerárias. Ou seja, ao mesmo tempo em que foi instituída a possibilidade de que os clubes-associações constituam sociedades específicas para conduzirem suas atividades do futebol (as SAFs), estabeleceram-se métodos de pagamento — até então inexistentes e acompanhados de uma série de privilégios — que seriam disponibilizados a tais clubes.

Num primeiro olhar, parecia o cenário perfeito: por meio de uma única lei, aliaram-se mecanismos para obtenção de novas receitas e investimentos (através da figura da SAF) à meta audaciosa de permitir que os clubes-associações sanem suas dívidas históricas. Entretanto, o que se tem visto na prática é uma aplicação dos dispositivos legais muito distante daquilo que previu o legislador.

Por um lado, a Lei nº 14.193/21 instituiu a possibilidade de pagamento por concurso de credores, através de um procedimento denominado Regime Centralizado de Execuções. Basicamente, optando por esse instituto, os clubes têm todas as suas execuções centralizadas em um único procedimento (o “juízo centralizador”), que concentrará, além das execuções, as receitas dos clubes-associações, determinando sua distribuição aos credores, em concurso e de forma ordenada. Conjuntamente ao Regime Centralizado de Execuções, a Lei nº 14.193/21 também passou a permitir que os clubes-associações se submetam ao procedimento de recuperação judicial.

Previsão expressa

Até então, enquanto associações sem fins lucrativos, os clubes de futebol não podiam requerer sua própria recuperação judicial. Isso porque a Lei nº 11.101/05 (que regula as falências e procedimentos recuperacionais) dispõe, logo em seu primeiro artigo, ser aplicável apenas ao empresário e à sociedade empresária. Com a edição da Lei nº 14.193/21, entretanto, essa situação se alterou e passou a existir previsão legal expressa para que os clubes-associações (e não todo e qualquer ente associativo, ressalte-se) se submetam à Lei nº 11.101/05 e, consequentemente, à recuperação judicial.

Acerca do conceito da recuperação judicial, ela nada mais é que um procedimento pelos quais sociedades empresárias (e agora os clubes de futebol) podem renegociar suas dívidas com os credores. Na prática, a sociedade/clube propõe um plano de pagamento, que, em maior parte, concede deságios e dilações de prazos, sendo tal plano levado a votação pelos credores.

Essa possibilidade de renegociação de dívidas, todavia, não é uma opção concedida aos devedores “sem motivo algum” – longe disso. O fundamento por trás da recuperação judicial, como o próprio nome sugere, é preservar e recuperar a atividade empresária, tão relevante para o desenvolvimento nacional – por meio da criação de empregos, desenvolvimento de produtos e serviços, pagamento de impostos, dentre inúmeros outros benefícios à sociedade.

Colocando de outro modo: os inegáveis prejuízos que a recuperação judicial impõe aos credores (que receberão montantes significativamente inferiores aos seus créditos, em prazos alongados e muito distantes do vencimento) somente se justificam diante de uma sociedade/clube que, inobstante a crise pontual, efetivamente exerça atividade econômica e que, por isso, demonstre que sua recuperação é viável.

Sociedade viável?

Esclarecida essa premissa, é possível retornar ao exemplo dos clubes-associações que, para constituírem uma SAF, optam pela cisão do departamento de futebol (caso emblemático do Cruzeiro). Ora, a partir da constituição da SAF em tais moldes, os clubes-associações passam a ser nada mais que um grande aglomerado de dívidas. Afinal, não somente sua atividade principal (futebol), como todos os ativos relacionados a essa atividade principal (centros de treinamento, direitos federativos dos atletas, dentre outros) foram transferidos e alocados na SAF.

Eis, portanto, o inafastável questionamento a ser enfrentado: se a recuperação judicial, como visto, pressupõe uma sociedade viável, que efetivamente exerça atividades a serem recuperadas, qual é o propósito de submeter clubes-associações que já cindiram o departamento e a atividade de futebol para a SAF a esse procedimento de recuperação judicial?

Para responder, reflita-se o seguinte. Imaginando que a recuperação judicial tenha seu regular andamento, com a aprovação do plano e pagamento dos credores nos prazos ali estabelecidos: quando todas as dívidas forem pagas, o que acontecerá com o clube-associação? A resposta é simples. A recuperação judicial terá servido, apenas, para reduzir (drasticamente) o crédito dos credores e postergar o pagamento de dívidas por parte de uma associação já morta na prática. Noutras palavras, essa recuperação judicial terá imposto gravíssimos prejuízos aos credores, sem que o fundamento basilar do instituto, que justifica tais prejuízos – ou seja, a conservação da atividade empresária e seus benefícios – se faça presente.

Imagine-se agora que, em vez do fiel cumprimento ao plano de recuperação judicial, seja decretada a falência do clube-associação: qual é a consequência disso? Pior ainda do que no exemplo anterior, pois restarão apenas credores já assolados pelas novas condições de pagamento impostas pela aprovação da recuperação judicial (deságio, parcelamento etc.), em busca de bens de um CNPJ praticamente vazio, uma vez que o departamento e atividade de futebol (com todos os seus ativos) foram transferidos à SAF.

Logo, diante da novel previsão legal de que os clubes de futebol possam se valer da recuperação judicial, parece-nos mais adequado que, em caso de implementação da SAF mediante cisão do departamento e atividade de futebol, os efeitos de eventual pedido de recuperação judicial feito pelo clube-associação sejam estendidos à respectiva SAF. Do contrário, a operação de criação da SAF terá sido feita apenas a duras penas dos credores e em benefício dos acionistas da SAF, ou simplesmente baseada numa tese financeira que pressupõe a fraude na transferência de ativos do clube-associação.

Em conclusão, o propósito de profissionalizar o mercado futebolístico nacional é, sem sombra de dúvidas, louvável e necessário. E a instituição da SAF, do ponto de vista ideal, certamente exercerá um papel relevante nesse momento de transformação. Num cenário de default, entretanto, recomenda-se extrema cautela na aplicação dos institutos de direito societário e falimentar. Se é certo que a atividade futebolística precisa ser profissionalizada, também é correto dizer que os direitos dos credores hão de ser protegidos. Como em toda nova criatura jurídica, caberá aos nossos tribunais a atividade de superar as lacunas da Lei da SAF num ambiente de interesses em conflito. Fica no ar qual será o hard case.


Coautoria de André Ruiz Menezes Costa e Gabriel Guimarães Arlé, do Freitas Ferraz Advogados


[1] A nosso ver, o exemplo mais notório é o do Cruzeiro Esporte Clube. A SAF do Cruzeiro foi formalmente constituída em 06/12/2021. Naquela oportunidade, o Cruzeiro-Associação (clube original), na qualidade de acionista fundador, integralizou 100% das ações de emissão da nova sociedade, transferindo, ao Cruzeiro-SAF, os ativos relacionados à atividade do futebol – dentre eles, direitos federativos e econômicos dos atletas, direito de participação em campeonatos, direitos de propriedade intelectual e, posteriormente, até mesmo os seus centros de treinamento.

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