Defensor público aciona Magazine Luiza por programa de treinees

Ação, que causou repúdio dentro da própria defensoria, considera discriminatória a seleção voltada exclusivamente a candidatos negros

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Um dos assuntos mais comentados recentemente no mundo corporativo foi a decisão da rede Magazine Luiza de criar um programa de treinees que aceita apenas candidatos negros. Por considerar a decisão inadequada, um defensor público federal ingressou com uma ação civil pública pedindo indenização de 10 milhões de reais em danos morais coletivos por considerar o programa uma seleção baseada exclusivamente na cor da pele dos candidatos — seria discriminação, portanto, uma atitude que contraria a Constituição.

O ajuizamento da ação logo gerou reações contrárias, inclusive dentro da própria Defensoria Pública da União. Um grupo de defensores manifestou seu repúdio à atitude do colega Jovino Bento Júnior, que na ação classifica a intenção do Magazine Luiza como “marketing de lacração”.

“Falta tudo para a ação — propósito, coerência, fundamento e lógica. Por outro lado, como é esperado no país em que vivemos atualmente, sobram preconceito, racismo e surrealismo com palavras fantasiosas”, critica a advogada Gabriela Ponte Machado, que a seguir comenta outras inconsistências da iniciativa do defensor público e as implicações desse tipo de atitude para o mundo empresarial.


Qual a sua avaliação sobre a iniciativa do defensor de acionar o Magazine Luiza por causa do programa de treinees exclusivo para negros? Considerando suas atribuições, ele tem condições de abrir uma ação como essa?

A iniciativa do defensor, acima de qualquer coisa, escancara o racismo que persiste no nosso País. Pior ainda foi a escolha do tipo de ação: ação civil pública, criada para proteção de vulneráveis. Ora, perguntaria ao caro defensor, quem é o vulnerável? Os brancos que estão na liderança da empresa há anos e ocupam todos os espaços de poder? “Ah, sim, compreendo”, responderia com ironia.

Em resumo, é uma mistura completa de conceitos. De um lado, o racismo: discriminação racial sistemática. De outro lado, a ação afirmativa: programas voltados a positivamente alavancar grupos historicamente discriminados. O Magazine Luiza promoveu uma ação afirmativa e não uma discriminação racial contra brancos (dá até vergonha repetir o argumento do defensor).

Falta tudo para a ação — propósito, coerência, fundamento e lógica. Por outro lado, como é esperado no país em que vivemos atualmente, sobram preconceito, racismo e surrealismo com palavras fantasiosas.

Não há pessoa melhor para explicar a constitucionalidade, legalidade e legitimidade do programa da Magazine Luiza do que a professora de Direito constitucional Flavia Piovesan, ao tratar de ações afirmativas ao amparo da Constituição Federal de 1988: “A implementação do direito à igualdade racial há de ser um imperativo ético-político-social capaz de enfrentar o legado discriminatório que tem negado à metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos e liberdades fundamentais”.[1]

Esse senhor deveria ser punido pelo crime de racismo e ser proibido de permanecer no exercício da defensoria pública para dar seu lugar a um profissional que, de fato, mereça exercer um ofício de tanta importância no nosso País.


São comuns ações contra empresas referentes a questões raciais ou de gênero no Brasil ou esses temas são recentes no Judiciário nacional?

Os grupos que ocupam atualmente o poder não estão habituados a ter os espaços que sempre lhe foram naturalmente reservados, como se lhes fossem de direito, dados por natureza, ocupados por outros grupos. O homem, branco, hétero, cis que ocupa o cargo de C-level nunca nem imaginou disputar esse espaço. Com ações afirmativas como essas, esse grupo sente-se ameaçado e sai com fervor e algoz na defesa de seus “direitos”. Essas ações vão expor que a meritocracia nunca existiu no País e que, ao dar oportunidades iguais a todos, o lugar de muitos dos atuais líderes ficará ameaçado.

Concluindo: não, até então não eram comuns as ações alegando “racismo reverso” contra grupos hegemônicos, porque ainda são poucas as ações afirmativas no Brasil, como as do Magazine Luiza. Mas, a depender do desfecho dessa empreitada, ações assim podem passar a ser cada dia mais comuns.


Qual a relevância, do ponto de vista das práticas empresariais socialmente responsáveis, de um programa como o do Magazine Luiza?

Combater o racismo na medida em que houver mais paridade de condições no espaço de trabalho. Vivemos num país em que os negros ganham 55,8% da renda dos brancos. A intenção do programa do Magazine Luiza é reverter a inércia que sempre beneficiou o ciclo de promoção de brancos, em especial, dos homens.

O programa de trainee (diferentemente de outros programas de contratação nas empresas) é voltado para treinar profissionais para ocuparem posições de real destaque dentro da empresa. O profissional passa por diferentes áreas, recebe os treinamentos mais diversos e termina pronto para ocupar um cargo de relevância e possível liderança. Por isso, é importante que seja ocupado apenas por pessoas negras. Só assim é possível virar a mesa e gerar real impacto com essa ação. Precisam ser formados líderes negros, é absolutamente urgente que eles e elas ocupem esses espaços de poder para que seja possível começar a se falar em equidade e inclusão.


A companhia ganha pontos aos olhos dos investidores com esse tipo de atitude?

Sim, com essa ação o Magazine Luiza (sem nenhuma novidade) reitera seu comprometimento com métricas sociais essenciais para a construção de um país mais justo, igualitário e inclusivo.

Os investidores têm buscado — e valorizado — cada dia mais empresas comprometidas com o capitalismo responsável. Companhias que visem, sim o lucro, mas sem deixar de lado ou passar por cima das suas responsabilidades com as pessoas, o meio ambiente e seus compromissos com seus stakeholders.

[1] Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2008000300010&lng=pt&tlng=pt, acessado em 13/10/2020.

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