O usufruto, como cediço, é regulado pelo Código Civil nos arts. 1.390 a 1.411, podendo ser definido como um direito atribuído a terceiro para usar, usufruir e gozar de determinado bem. Nesse sentido, Arnaldo Rizzardo¹ esclarece: “A ideia de usufruto emerge da consideração que se faz de um bem, no qual se destacam os poderes de usar e gozar ou usufruir, sendo entregues a uma pessoa distinta do proprietário, enquanto a este remanesce apenas a substância da coisa”.

No âmbito das sociedades anônimas, não há discussão a respeito da possibilidade de se instituir usufruto sobre ações representativas do capital social de determinada companhia. Inclusive, o art. 40 da Lei 6.404/76² (Lei das S.As.) prevê que a oponibilidade perante terceiros só ocorre mediante a averbação do usufruto nos livros próprios da companhia.

Ademais, a possibilidade de o usufrutuário receber dividendos também é prevista diretamente na Lei das S.As., especificamente no art. 205, o qual prevê: “A companhia pagará o dividendo de ações nominativas à pessoa que, na data do ato de declaração do dividendo, estiver inscrita como proprietária ou usufrutuária da ação”.

Não restam dúvidas, assim, de que ao usufrutuário cabem os frutos das ações gravadas e, portanto, cabe a ele o recebimento dos dividendos — eis que nada mais são do que os frutos, assim como a participação nos lucros, a distribuição de juros sobre capital próprio e a participação no acervo da companhia.

O Tribunal de Justiça de São Paulo já corroborou esse entendimento³: “Ocorre que, como o usufruto é direito real sobre coisa alheia, que compreende os acessórios e acrescidos à coisa, a autora tem direito de usufruir os frutos que decorrem das ações que pertenciam ao seu falecido marido, consubstanciados no direito, notadamente aos dividendos, participação nos lucros, distribuição de juros sobre capital e a participação no acervo da companhia, inclusive em caso de liquidação, tudo à luz do art. 1.392 do Código Civil”.

Regra do direito de voto para ações gravadas com usufruto

Contudo, o ponto fulcral deste artigo é determinar a regra do direito de voto para ações gravadas com usufruto, eis que existente discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito do tema, tendo correntes defendendo direito de voto somente ao usufrutuário; somente ao nu-proprietário; para ambas ou nenhuma das partes; nos termos delimitados no prévio acordo celebrado entre nu-proprietário e usufrutuário.

Observando pela ótica do direito de voto exclusivo ao usufrutuário, poderia-se defender que o voto é inerente ao usufruto, ou seja, “usar” e “fruir” da coisa. Além disso, o usufrutuário pode ser o maior interessado no recebimento ou até mesmo no aumento dos lucros e dividendos, quando a ele for atribuído usufruto de ações com direitos patrimoniais, o que justificaria o seu direito ao voto.

Diante disso, seria alegado que não poderia furtar do usufrutuário, aquele que tem plenos poderes de “usar” e “fruir” da coisa, o direito de exercer o voto e definir quais as melhores decisões a serem tomadas para que, num futuro próximo, possa “usar” e “fruir” ainda mais dos dividendos e lucros percebidos pela sociedade.

Em suma, defende-se que o usufrutuário exerce o direito de voto como forma de administração necessária para a conservação do bem.

Por outro lado, o nu-proprietário e os demais acionistas sustentariam que poderiam sofrer com qualquer decisão equivocada por parte do usufrutuário, o que provavelmente não ocorreria se o direito de voto ficasse nas mãos do proprietário, pois o direito de voto deve ser exercido pelo acionista em favor do interesse social e não em favor dos seus interesses pessoais, sob risco de se gerar o abuso do direito de voto e o conflito de interesses.

Ademais, há de se ressaltar que o direito de voto implica decidir, além de outros, os destinos da sociedade e a subsistência do valor patrimonial das ações, ou seja, questões ligadas à substância da companhia, o que pode não ser o objetivo do usufruto das ações atribuído pelo proprietário.

Nesse sentido: “O nu-proprietário permanece acionista, inobstante o usufruto, e sofre os efeitos das decisões tomadas nas assembleias em que o direto de voto é exercido.”2

O entendimento, portanto, seria que pela ausência de transferência expressa do direito de voto ao usufrutuário, a manutenção do direito de voto ao nu-proprietário é medida que se impõe.

Ocorre que ambos os casos, seja para o voto exclusivo do usufrutuário ou exclusivo do nu-proprietário, existem pontos preocupantes. Ora, em caso de voto exclusivo do usufrutuário ele interferiria em decisões que não competem a ele e visando exclusivamente o lucro; enquanto no caso de voto exclusivo ao nu-proprietário poderia ocorrer uma trava para o usufrutuário usar e fruir do bem, como por exemplo votando pela não distribuição de dividendos.

Noutro norte, a teoria dualista permitindo o voto por ambas as partes, ora ao usufrutuário ora ao nu-proprietário, a despeito de seguir uma linha lógica, também poderá gerar conflitos e entendimentos no sentido de prejudicialidade. A ideia dessa teoria seria que ao usufrutuário caberia votar em matérias inerentes e ligadas à distribuição de dividendos, enquanto seria de competência do nu-proprietário deliberar sobre matérias que têm capacidade de alterar a essência da companhia.

O que diz o art. 114 da Lei das S.As.

Pois bem. Sabe-se que o art. 114 da Lei 6.404/76 prevê que o direito de voto da ação gravada com usufruto, se não for regulado no ato de constituição do gravame, somente poderá ser exercido mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário.

Por isso mesmo, ao se constituir usufruto sobre determinadas ações, principalmente para evitar prejuízos à companhia e aos demais acionistas, bem como para evitar discussões e conflitos entre o nu-proprietário e o usufrutuário, sugere-se às partes envolvidas no ato da constituição do gravame ou até mesmo antes de determinada assembleia, chegarem a um acordo e disciplinarem como serão exercidos os votos para cada matéria específica.

Dessa forma: “O prévio acordo entre o proprietário e usufrutuário há de ser reduzido a escrito, devendo o original ou sua cópia autenticada ficar em poder da sociedade. Os interessados poderão estipular o que entender sobre a maneira pela qual o direito de voto será exercido por um deles. Assim, poderão discriminar as matérias sobre as quais votará o proprietário ou o usufrutuário.”

Caso contrário, poderá haver uma discussão sobre quem teria o direito de voto para cada matéria constante da ordem do dia na assembleia. Até mesmo porque a Lei das S.As., especificamente o art. 114, é omissa a respeito de quem teria o direito de exercer o voto, caso não haja pré-acordo. Analisando-se a redação do artigo, de uma forma fria e objetiva, conclui-se até mesmo que não há direito de voto da ação gravada com usufruto, se não for regulado no ato de constituição do gravame ou formalizado acordo prévio entre o proprietário e o usufrutuário.

Inclusive, há entendimento de grande parte da doutrina e jurisprudência no sentido de que, na ausência de acordo prévio, o direito de voto ficaria suspenso. Nas palavras do desembargador Francisco Loureiro, da 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, “a omissão do título, somado à ausência de acordo entre as partes, provoca a suspensão do direito de voto de ambas as partes, até que o Poder Judiciário dirima o dissídio”.

Essa teoria, todavia, também encontra problemas. Imagina-se uma situação em que a maioria absoluta das ações com direito a voto ou a totalidade das ações com direito a voto estejam gravadas com usufruto? Tal situação prejudicaria a companhia, inviabilizando até mesmo a deliberação assemblear.

Nesse cenário, em que a controvérsia sobre o assunto é patente, a melhor saída é, como dito, no ato da constituição do gravame ou até mesmo antes de determinada assembleia, disciplinar como serão exercidos os votos para cada matéria específica.

Análise do caso concreto

Caso não haja acordo prévio entre nu-proprietário e usufrutuário, a alternativa seria analisar cada caso concreto, diante dos acontecimentos entre as partes e das necessidades da companhia — considerando que os interesses da companhia sempre serão prioridade.

Outro ponto que chama bastante atenção diz respeito à possibilidade de conceder usufruto apenas e tão somente o exercício do direito de voto.

Há quem sustente que o direito de voto, em si, não pode ser objeto de usufruto, uma vez que “o voto não é fruto da ação, mas exercício de direito nela contido como instrumento para que o acionista contribua para a formação da vontade social”⁹.

Ademais, como ensina Nelson Eizirik¹⁰, “é nulo, por não satisfazer o requisito essencial do negócio jurídico, o usufruto constituído sobre a ação com declaração de que abrange apenas o exercício do direito de voto, pois é da essência do usufruto o direito do usufrutuário aos frutos da coisa gravada. No usufruto constituído sobre a ação, o único fruto é o dividendo. O voto não é fruto da ação, é exercício de direito nela contido como instrumento para que o acionista contribua para a formação da vontade social.”

A ideia, portanto, é que o usufruto somente poderia ocorrer caso, além do direito de voto, fosse objeto também a participação nos lucros da companhia, constituindo o usufrutuário ao risco do negócio. Em suma, considerando que o usufrutuário tem interesse em receber maior participação nos lucros, o seu voto ocorreria com maior cautela e zelo.

Nesse sentido, vale destacar, inclusive, que há controvérsias existentes onde há convenção expressa de voto para usufrutuário.

Decisão da CVM sobre voto conflitado

A título de exemplo, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) recentemente, no âmbito de Processo Administrativo Sancionador (PAS)¹¹, apurou a responsabilidade de membros do conselho de administração de determinada companhia pela utilização irregular, na qualidade de também acionistas, de suas ações para aprovação de suas próprias contas, do relatório de administração e das demonstrações financeiras.

Isso porque teria ocorrido violação aos arts. 115, § 1º, c/c 134, § 1º, da Lei 6.404/76. Os artigos mencionados tratam justamente do conflito de interesses, ou seja, fica impossibilitado ao acionista que exercer determinado cargo na administração da companhia de votar na deliberação sobre suas próprias contas, o relatório da administração e as demonstrações financeiras.

No caso, a defesa reconheceu a impossibilidade de votar as suas próprias contas, mas aduziu que estavam desprovidos de qualquer direito de voto na medida em que constituíram usufruto sobre a totalidade das ações de sua propriedade a terceiros. A análise da CVM, portanto, se baseou no conceito de usufruto e em toda a legislação societária, principalmente sobre o direito de voto pelo usufrutuário à luz do art. 114 da Lei 6.404/76.

A despeito da decisão ter entendido, pela maioria, que pode ocorrer em determinados casos a convenção de voto para usufrutuário nesse tipo de situação, o caso concreto levou ao entendimento que uma série de circunstâncias demonstrou que, na verdade, os administradores constituíram o usufruto com o intuito de obter êxito na aprovação de suas próprias contas.

Como destacado nos votos: os gravames foram formalizados próximo ao término do prazo legal para a realização da AGO e à data da realização da assembleia; à época da celebração dos negócios estariam ocorrendo diversas divergências entre os acionistas, sendo que já era provável o embate na AGO e, consequentemente, o risco de reprovação das contas da administração; o vínculo familiar entre os administradores e os outorgados, podendo levar em conta certa influência sobre os usufrutuários.

O relator Henrique Machado entendeu que, independentemente das circunstâncias do caso, o impedimento de voto do acionista que também seja administrador quanto à deliberação acerca da aprovação de suas próprias contas se estende ao voto exercido por usufrutuário de ações de titularidade tal acionista (nu-proprietário), em razão da natureza do direito de voto e de regras cogentes que regem o seu exercício, às quais as convenções de voto devem se alinhar.

Entretanto, a diretora Flávia Sant’Anna Perlingeiro destacou que “se, mediante convenção de voto em usufruto, o direito de voto em relação à aprovação de contas da administração for atribuído exclusivamente ao usufrutuário das ações e este não for administrador da companhia, ele não estará impedido de votar na assembleia geral de acionistas convocada para deliberar sobre as contas da administração que participe o nu-proprietário”. Isso porque, nesse caso, segundo a diretora, o nu-proprietário sequer terá direito de voto sobre a matéria, eis que houve a transferência integral ao usufrutuário.

No mesmo sentido, o presidente Marcelo Barbosa ressaltou que embora “no presente caso, haja elementos de prova suficientes para se chegar a essa conclusão, entendo que, a depender de suas características, arranjos contratuais (incluindo o usufruto) ou mecanismos organizacionais podem ser capazes de dissociar a vontade de determinado acionista da influência do acionista-administrador, impedido de deliberar sobre as próprias contas”. Assim, segundo o presidente, o instrumento de usufruto poderia conter, sim, dispositivos aptos a dissociar os interesses das partes no momento do exercício do direito de voto pelo usufrutuário.

As contradições apresentadas no âmbito do PAS, portanto, apenas demonstram a complexidade do assunto, bem como destacam a importância de se analisar cada caso concreto.

*Colaborou Carolina Coimbra Cataldo, advogada do Nankran e Mourão Sociedade de Advogados.


¹ RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.941.
² Art. 40. O usufruto, o fideicomisso, a alienação fiduciária em garantia e quaisquer cláusulas ou ônus que gravarem a ação deverão ser averbados:
I – se nominativa, no livro de “Registro de Ações Nominativas”;
II – se escritural, nos livros da instituição financeira, que os anotará no extrato da conta de depósito fornecida ao acionista.
Parágrafo único. Mediante averbação nos termos deste artigo, a promessa.
³ BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Acordão no 0008988-85.2008.8.26.0533. São Paulo, SP, 13 de setembro de 2011. Diário Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?conversationId=&cdAcordao=5392236&cdForo=0&uuidCapt cha=sajcaptcha_fc885dc4a9634fe29d30e55a9ed8535b&vlCaptcha=qpvS&novoVlCaptcha;=>. Acesso em 8 dez. 2017.
RIBEIRO, Renato Ventura. Direito de Voto nas Sociedades Anônimas. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 290.
STJ, Resp. no. 1.169.202 – SP, Ministra relatora: Nancy Andrighi, publicado em 27/09/2011, disponível em https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Default.asp?registro=200902367423&dt_publicacao=27/09/2011. Acesso em 15/02/2012
TJ-MG, apelação cível n. 2.0000.00.406316-5/000, relatora Teresa Cristina da Cunha Peixoto, julgado em 5/5/04, DJe 22/5/04
AI: 20327852020198260000 SP 2032785-20.2019.8.26.0000. Relator: Rui Cascaldi, data de julgamento: 18/2/20, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/02/20.
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, 2º Volume. São Paulo: Saraiva, 2011. p.486.
⁹ REGO, Marcelo Lamy. “Direito de Voto”. In: LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões (orgs.). Direito das Companhias, volume I, 1a Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 392.
¹⁰ EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada, Volume I. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2011, pp. 649- 650.
¹¹ http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/noticias/anexos/2020/20200623_PAS_CVM_SEI_19957002277_2017_52_voto_diretor_henrique_machado.pdf