A responsabilidade dos cotistas após a Resolução CVM 175

Com Lei de Liberdade Econômica e normativo da CVM, fica afastada a ideia de que as regras de condomínio geral poderiam ser aplicadas aos fundos de investimento

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Com o advento da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19), os fundos de investimento foram devidamente regulamentados, incluindo a previsão de que sua natureza jurídica é de condomínio de natureza especial.

Até então, muito se debatia no meio jurídico a respeito da responsabilidade dos cotistas, notadamente no que tange à extensão de tal responsabilidade sobre eventuais passivos dos fundos.

Contudo, a Lei de Liberdade Econômica, conforme redação do artigo 1.368-C do Código Civil, afastou expressamente a ideia de que as regras do condomínio geral, previstas nos artigos 1.314 ao 1.358-A do Código Civil, seriam aplicadas ao fundo de investimento. Assim, por consequência e lógica, a responsabilidade ilimitada dos fundos de investimento ficou afastada.

Ademais, a Lei de Liberdade Econômica ainda trouxe a informação de que os regulamentos dos fundos podem estabelecer a limitação de responsabilidade de cada investidor ao valor de suas cotas (inciso I, artigo 1.368-D, Código Civil)[1].

Dessa forma, caso haja previsão no regulamento, as cotas de determinado fundo de investimento de titularidade dos cotistas não podem ser objeto de penhora e muito menos responder por passivos dos referidos fundos[2]. Isso porque, de forma diferente do que ocorre com os condomínios em geral[3], os cotistas possuem direito apenas às frações patrimoniais proporcionais à aplicação realizada.

Como não poderia deixar de ser, a CVM editou resolução, no dia 28/12/2022, que substituiu as Instruções 555, de 2014, e 356, de 2001, estabelecendo um novo marco regulatório sobre o tema. Até mesmo pela previsão contida no §2º, do artigo 1.368-C do Código Civil[4], havia muita expectativa do mercado sobre a norma.

Nesse primeiro momento, a norma conta com os anexos referentes aos Fundos de Investimento Financeiro, os FIFs, (Anexo Normativo I) e dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios, os FIDCs, (Anexo Normativo II). A expectativa é que até abril de 2023 sejam incluídos os anexos normativos referentes aos Fundos de Investimento Imobiliário (Anexo Normativo III), dos Fundos de Investimento Previdenciário (Anexo Normativo IV), dos Fundos de Investimentos Negociados em Bolsa, os ETFs, (Anexo Normativo V), dos Fundos Mútuos de Privatização-FGTS (Anexo Normativo VI), dos Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (Anexo Normativo VII),  dos Fundos de Aposentadoria Programada Individual (Anexo Normativo VIII), dos Fundos Mútuos de Ações Incentivadas (Anexo Normativo IX), dos Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Anexo Normativo X), dos FIDC-FIPS (Anexo Normativo XI) e, finalmente, dos Fundos Previdenciários (Anexo Normativo XII).

Como bem destacou Pedro Rudge, vice-presidente da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima)[5]: “A nova regulação nos aproxima das melhores práticas dos mercados internacionais, simplificando estruturas e trazendo maior flexibilidade. Todo mundo ganha com isso. Para o mercado, as responsabilidades ficam mais claras e delimitadas e há ganhos de eficiência nas operações. O cotista terá mais segurança e, dada a otimização da indústria, passará a ter acesso a produtos ainda melhores e a estratégias que até então não seriam oferecidas ao varejo”.

A Resolução da CVM, que entrará em vigor em 03/04/2023, em consonância com as previsões e novidades trazidas pela Lei de Liberdade Econômica, reuniu a regulação sobre a matéria em um único documento.

Aos pontos que interessam ao presente texto, ficou estabelecido:

  1. A possibilidade de diferenciação de classes em uma mesma carteira, sendo que cada classe contará com o respectivo patrimônio segregado, o qual responderá somente pelas obrigações da classe. Assim, o fundo deixa de responder pelas obrigações de cada classe de cotas;
  2. A responsabilidade limitada dos cotistas ao valor da cota subscrita, devendo o regulamento prever tal limitação;
  3. A possibilidade de aplicar o regime de insolvência em cada classe de cotas, devendo o pedido de insolvência ser deliberado privativamente pela assembleia de cotistas. Inclusive, há a possibilidade de a CVM pedir a declaração judicial de insolvência da classe de cotas caso seja verificado risco ao funcionamento do mercado de valores mobiliários ou para a integridade do sistema financeiro;
  4. A possibilidade de pedir empréstimo para lidar com o patrimônio negativo, o que até então era proibido, podendo ser tratado como um plano de ação para ser implementado antes da declaração de insolvência.

Por fim, ponto de extrema relevância é destacar o julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito da possibilidade (ou não) da desconsideração da personalidade jurídica dos fundos de investimento.

Antes mesmo do advento da Lei de Liberdade Econômica e da Resolução CVM 175[6], o STJ decidiu[7] sobre a possibilidade de desconsideração inversa da personalidade jurídica dos fundos de investimento na hipótese de serem utilizados com o intuito de “blindagem patrimonial” e para lesar os credores.

A título de exemplo, no caso julgado pelo STJ, determinadas empresas que faziam parte de grupo econômico que tinham cotas em fundo de investimento em participações (FIP) “ocultaram” o seu verdadeiro patrimônio ao realizar o repasse irrisório (fora de mercado) de cotas do FIP entre elas.

Assim sendo, considerando o abuso da finalidade da entidade e da ausência de cotistas de boa-fé, tornou-se possível aplicar a desconsideração inversa da personalidade jurídica dos cotistas (em consonância com o artigo 50, § 3º, Código Civil), atingindo diretamente o patrimônio líquido do FIP.

 

[1] Vale ressaltar a importância de conter a limitação da responsabilidade nos regulamentos dos fundos, eis que o §1º do artigo 1.368-D do Código Civil prevê que a “adoção da responsabilidade limitada por fundo de investimento constituído sem a limitação de responsabilidade somente abrangerá fatos ocorridos após a respectiva mudança em seu regulamento.”
[2] Todavia, o §1º, do artigo 1.368-E do Código Civil, ressalvou que se o fundo com limitação de responsabilidade não possuir patrimônio suficiente para responder pelas dívidas, as regras referentes à insolvência (artigos 955 a 965 do Código Civil) devem ser aplicadas.
[3] Artigo 1.314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la.
[4] § 2º Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto no caput deste artigo.
[5]https://www.anbima.com.br/pt_br/noticias/nova-norma-para-fundos-de-investimento-traz-avancos-para-o-mercado-e-para-os-cotistas.htm
[6] Após o advento das novas normas, deve-se aguardar eventual mudança de posicionamento, a despeito da possível relativização da limitação da responsabilidade em casos fraudulentos e abusivos.
[7] Acórdão ao Recurso Especial 1965982 – SP, de 5 de abril de 2022.
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