Tributação de criptoativos: o desafio da natureza jurídica

Uma breve análise do cenário normativo brasileiro e do ordenamento jurídico internacional para a tributação de criptoativos

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Os criptoativos, como já apresentado no primeiro artigo dessa série, são “uma representação digital de valor que pode ser transferida, armazenada ou comercializada de forma eletrônica. Além disso, também é essencial que sejam protegidos por mecanismos criptográficos e que utilizem, para a sua estruturação e registro de transações, tecnologias como as de Distributed Ledger Technology (DLT) ou semelhantes”.

Nesse sentido, os criptoativos são ativos digitais que podem deter informações, tecnologias e sistemas protegidos por meio de criptografia. Além disso, como visto na dinâmica do mercado, eles podem ser transacionados entre partes interessadas, sendo transferida a informação, tecnologia e/ou sistema detido na representação digital.

E na medida que sua evolução é muito dinâmica, como qualquer tecnologia disruptiva, os criptoativos acabam não tendo a definição de sua natureza jurídica de forma objetiva, fazendo com que surjam questionamentos sobre a tributação das operações que os envolvam.

O presente artigo pretende, portanto, apresentar breve análise do cenário normativo brasileiro relativamente à tributação de operações envolvendo criptoativos, trazendo um paralelo com elementos pontuais extraídos do ordenamento jurídico internacional, mais especificamente dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e União Europeia.

Qual a natureza jurídica dos criptoativos para fins tributários? 

Não há definição uníssona sobre o assunto entre as diversas jurisdições. Considerando as transações que podem ser realizadas com os criptoativos, é possível caracterizá-los como investimento (ativo) de seu titular, um bem incorpóreo cujo maior objetivo é render frutos para o proprietário, sendo este o enquadramento mais utilizado atualmente.

Alternativamente, pela facilidade de negociação, eles já foram considerados como mercadorias, atraindo assim um conceito de compra e venda para as operações realizadas. Mas isso não impediria a caracterização dos criptoativos, especialmente as criptomoedas, como meio de pagamento ou como efetiva moeda de pagamento.

Na medida em que a natureza jurídica dos criptoativos seja definida de forma distinta, o seu tratamento tributário também precisará ser analisado de forma singular.

Se os criptoativos forem considerados como investimentos, as transações relacionadas a esses ativos estarão sujeitas ao ganho de capital, atraindo a incidência de Imposto de Renda para a pessoa física (alíquotas de 15 a 22,5%) e Imposto de Renda e Contribuição Social para o Lucro Líquido para a pessoa jurídica (alíquotas conjuntas de 24 a 34%).

Por outro lado, sendo consideradas operações com mercadorias, é atraído o conceito de compra e venda e a reflexão sobre a incidência de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), com alíquotas ente 17 e 18%, a depender da legislação do Estado.

Qual é o posicionamento adotado internacionalmente?

O presente artigo não poderia abordar a questão internacional de forma exaustiva e, por isso, delimitou a análise internacional para apresentar elementos extraídos das previsões normativas dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e União Europeia: 

Estados Unidos da América – O Internal Revenue Service (IRS), órgão que nos Estados Unidos se equipara à Receita Federal do Brasil, por meio da Notice 2014-21[1], definiu que a “virtual currency”, que seria, em tradução livre, as moedas virtuais (criptomoedas) deveriam ser tratadas, para fins tributários, como propriedade:

Q-1: How is virtual currency treated for federal tax purposes?
A-1: For federal tax purposes, virtual currency is treated as property. General tax principles applicable to property transactions apply to transactions using virtual currency.
(Tradução livre: Q-1: Como são tratadas as moedas virtuais para fins tributários?
A-1: Para fins tributários federais, moedas virtuais são tratadas como propriedade. Os princípios tributários gerais para transações de propriedade são aplicáveis para transações usando moedas virtuais.)
Ao definir o tratamento a ser dado às moedas virtuais como propriedade, o IRS atraiu o tratamento tributário dos ‘ativos tradicionais’[2], ou seja, em transações que os envolvam, deverá ser apurado eventual ganho para tributá-lo conforme a sistemática geral da venda de outros ativos.

Canadá – O Canada Revenue Agency (CRA), elaborou um guia[3] sobre a tributação de “cryptocurrency” (criptomoedas, em tradução livre), expondo entendimento bastante similar ao do IRS (Estados Unidos), apresentando os criptoativos como representações digitais e não como moedas de curso obrigatório.

Sobre o aspecto tributário, restou previsto que os ganhos decorrentes das operações com criptomoedas podem ser tratados como ganho de capital ou receita operacional, a depender do objetivo de quem está negociando. Assim, como previsto na legislação brasileira, o que vai definir a forma da tributação é a atividade do contribuinte e a recorrência com o que os negócios são feitos:

The CRA generally treats cryptocurrency like a commodity for purposes of the Income Tax Act. Any income from transactions involving cryptocurrency is generally treated as business income or as a capital gain, depending on the circumstances. Similarly, if earnings qualify as business income or as a capital gain then any losses are treated as business losses or capital losses.
(Tradução livre: O CRA normalmente trata criptomoedas como commodities para fins de tributação sobre a renda. Assim, quaisquer rendimentos decorrentes de operações com criptomoedas são tratados como receita operacional ou ganho de capital, o que irá depender das circunstâncias. De maneira similar, se os ganhos são caracterizados como receita operacional ou como ganho de capital, as perdas serão tratadas como despesas operacionais ou perdas de capital).

Porém, assim, como previsto nos Estados Unidos, no Canadá as criptomoedas não são consideradas moedas propriamente ditas, sendo ativos passíveis de negociação e sujeitos à tributação pela valorização envolvida.

Reino Unido – No Reino Unido, conforme HM Revenue & Customs (HMRC)[4], a tributação é devida por ocasião de (i) venda; (ii) troca ou permuta; (iii) doação; e (iv) pagamento de bens e serviços por meio de criptoativos. 

Nos termos do HMRC, a regra geral de tributação das operações envolvendo criptoativos é a sistemática de tributação sobre o ganho de capital:

When you dispose of cryptoasset exchange tokens (known as cryptocurrency), you may need to pay Capital Gains Tax.
You pay Capital Gains Tax when your gains from selling certain assets go over the tax-free allowance.
You might need to pay other taxes if you receive cryptoassets.
(Tradução livre: Quando você dispõe de tokens de troca de criptoativos (conhecidos como criptomoedas), você pode ter que pagar tributos sobre ganho de capital.
Você paga tributos sobre ganho de capital quando seus ganhos decorrentes da venda de ativos são maiores do que a isenção tributária.
Você pode ter que pagar outros tributos se você receber criptoativos).

Cabe notar que os criptoativos são considerados como bens passíveis de tributação pelo ganho de capital. Contudo, considerando que também podem ser transacionados de outras maneiras (como doação), o HMRC trouxe previsão de incidência de outros tributos, como o incidente sobre as doações.

União Europeia – Apesar da autonomia legislativa dos países europeus, o que permite regulamentações específicas sobre o tema, um caso julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia que trouxe elementos de reflexão importantes. Nesse contexto, a Corte julgou, em 2015, o caso C-264/14[5] no qual foi decidido que a troca de bitcoins por moedas tradicionais configura serviço de pagamento, os quais são isentos de IVA[6]:

2) O artigo 135º, nº. 1, alínea e), da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que prestações de serviços como as em causa no processo principal, que consistem no câmbio de divisas tradicionais por unidades da divisa virtual «bitcoin» e vice-versa, mediante o pagamento de uma quantia correspondente à margem constituída pela diferença entre, por um lado, o preço pelo qual o operador em causa compra as divisas e, por outro, o preço a que as vende aos seus clientes, constituem operações isentas de IVA, na acepção dessa disposição (tradução livre).

A decisão da Corte sobre a isenção de IVA em operações com bitcoins, espécie de criptomoedas, traz elementos do entendimento do órgão sobre a não ocorrência de operação de circulação de mercadorias nessas transações. Dessa forma, aos bitcoins não poderia ser atribuído o tratamento tributário de outros bens fungíveis e facilmente transacionados, como alimentos, móveis e outros bens de consumo.

O que pode ser extraído da análise apresentada? 

Apesar de se tratar de um breve panorama que não aprofunda em questões mais específicas de cada país, pode-se identificar a tratativa feita por mais de uma jurisdição internacional dos criptoativos como bens de investimento. E nesse sentido, sua negociação pode ocasionar o acréscimo de recursos por parte do investidor, que poderá apurar ganho de capital tributável.

Qual paralelo pode ser feito entre a análise acima e o cenário visto atualmente no Brasil?

Natureza Jurídica. Foi sancionada no final dezembro de 2022, a Lei 14.478/22, informalmente denominada o Marco Regulatório dos Criptoativos. A partir do artigo 3° da Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para a realização de pagamentos ou com o propósito de investimento”.[7]

Apesar de a norma só passar a produzir efeitos 180 dias após a publicação[8], a promulgação de Lei específica pode ser comemorada ao passo que a definição de que se tratam de ativos digitais e da natureza das operações com eles realizadas garante maior previsibilidade e segurança para o mercado de criptoativos brasileiro.

Contudo, considerando o período anterior à legislação, os órgãos e as autarquias apresentaram suas próprias definições, sem se basear em um conceito único e, por vezes, instituindo normas em sentidos diversos a respeito da natureza dos criptoativos. É o caso do Banco Central do Brasil (Bacen) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

O Bacen[9] conceituou os criptoativos como moedas virtuais sem garantias de autoridades monetárias, sem garantia de conversão para moedas soberanas e sem lastro em ativo real. Nesse sentido, o Bacen acabou por não definir a natureza jurídica dos criptoativos, apenas delimitando que esses ativos não são considerados, oficialmente, como moeda.

Em outubro de 2022, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM)[10] editou parecer para garantir maior previsibilidade e segurança, diante da ausência de legislação específica à época.

Com isso, trouxe os limites de atuação da CVM determinadas operações envolvendo os criptoativos e, nesses casos, sendo tratados como valores mobiliários. Em outras situações, como no caso de compra e venda de moeda virtual, a CVM determina que esses criptoativos não serão considerados valores mobiliários, logo, não serão alcançados pela regulamentação da CVM[11].

Com o Marco Regulatório dos Criptoativos, será imprescindível que as normas criadas por demais órgãos e autarquias sejam revisadas e adequadas ao conceito de criptoativos previsto na nova lei. 

Tratamento da Receita Federal. Antes mesmo da edição de legislação que definiu a natureza jurídica desses ativos, a Receita Federal do Brasil (RFB) editou a Instrução Normativa RFB nº 1888/19[12] para tratar da obrigatoriedade de prestação de informações de operações com criptoativos ao órgão federal. Apesar de se tratar de norma referente à obrigação acessória, entende-se que ela irá orientar a atuação da RFB.

Do ponto de vista tributário, a RFB reconhece os criptoativos como ativos representativos de valor e, portanto, capazes de atrair a incidência de tributos. Dessa forma, é possível afirmar que o entendimento expresso pela RFB quanto à natureza desses ativos está em consonância ao texto artigo 3º do Marco dos Criptoativos.

Nesse contexto, por meio do Perguntas & Respostas IRPF[13], a RFB determina que os criptoativos sejam declarados com a indicação de seu valor de aquisição, na ficha de bens e direitos na Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física, ao passo que são equiparados a ativos sujeitos a ganho de capital (Pergunta 455)[14].

Estão obrigadas a declarar esses ativos as pessoas físicas que dispuserem de mais de R$ 5 mil de valor de aquisição de cada tipo de criptoativos, sendo os tipos: Bitcoins; altcoins; stablecoins; NFTs; e outros criptoativos.

Nessa linha, serão tributados como ganho de capital os ganhos decorrentes das alienações que superem R$ 35 mil ao mês, conforme alíquotas progressivas em função do ganho de capital. Nota-se que o “teto” da isenção é de R$ 35 mil, limite que é aplicável para todos os bens passíveis de apuração do ganho de capital. Esse limite é diferente da isenção aplicável à venda de ações, em que esse valor é de R$ 20 mil, alinhando o posicionamento da RFB com a CVM, que afasta o tratamento do mercado de capitais para os criptoativos.

Assim, quanto à tributação, os criptoativos estão sujeitos aos mesmos pressupostos jurídico-tributários de operações suscetíveis ao ganho de capital.

E quais conclusões podem ser extraídas?

O Brasil segue os posicionamentos identificados em outras jurisdições sobre as definições relativas aos criptoativos.

Ainda, com a recente promulgação da Lei 14.478/22, podemos esperar maior previsibilidade de tratamento, sobretudo tributário, em relação às operações envolvendo esses ativos. É possível que as normas apresentadas pelo Bacen, CVM e demais órgãos sejam revisadas em breve para serem alinhadas aos dispositivos legais.

Do ponto de vista tributário, entende-se que o tratamento de criptoativos como bens de investimento e, portanto, sujeitos à apuração de ganho de capital, também está em linha com as previsões de outras jurisdições acima apresentadas.

 

*Pedro Henrique Rezende Simão é sócio do Freitas Ferraz Advogados; Júlia de Oliveira Barreto e Sarah Partika Euzébio são associadas do Freitas Ferraz Advogados

 

[1] Notice 2014-21. Disponível em < https://www.irs.gov/pub/irs-drop/n-14-21.pdf>. Acesso em 20 de dezembro de 2022.
[2]“The implication is that the IRS views cryptocurrencies as similar in nature to traditional assets.” Disponível em <https://www.ey.com/pt_br/tax/how-and-why-there-is-global-confusion-about-digital-currencies>. Acesso em 18 de dezembro de 2022.
[3] “Guide for cryptocurrency users and tax professionals”. Disponível em < https://www.canada.ca/en/revenue-agency/programs/about-canada-revenue-agency-cra/compliance/digital-currency/cryptocurrency-guide.html>. Acesso em 21 de dezembro de 2022.
[4]“Guidance: Check if you need to pay tax when you sell cryptoassets”. Disponível em < https://www.gov.uk/guidance/check-if-you-need-to-pay-tax-when-you-sell-cryptoassets>. Disponível em 18 de dezembro de 2022.
[5] Disponível em <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/pt/TXT/PDF/?uri=uriserv%3AOJ.C_.2015.414.01.0006.01.POR>. Acesso em 21 de dezembro de 2022.
[6] IVA = Imposto sobre o Valor Acrescentado.
[7] “Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para a realização de pagamentos ou com o propósito de investimento, não incluídos:” – Lei 14.478 de 2022. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/Lei/L14478.htm>. Acesso em 16 de janeiro de 2022.
[8] “Art. 14. Esta Lei entra em vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial.” – Lei 14.478 de 2022. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/Lei/L14478.htm>. Acesso em 16 de janeiro de 2022.
[9] “Considerando o crescente interesse dos agentes econômicos (sociedade e instituições) nas denominadas moedas virtuais, o Banco Central do Brasil alerta que estas não são emitidas nem garantidas por qualquer autoridade monetária, por isso não têm garantia de conversão para moedas soberanas, e tampouco são lastreadas em ativo real de qualquer espécie, ficando todo o risco com os detentores. Seu valor decorre exclusivamente da confiança conferida pelos indivíduos ao seu emissor.” –  Comunicado do Banco Central do Brasil n° 31.379 de 16/11/2017. Disponível em <https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Comunicado&numero=31379>. Acesso em 20 de dezembro de 2022.
[10] Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022. Disponível em <https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html>. Acesso em 20 de dezembro de 2022.
[11] Disponível em <https://conteudo.cvm.gov.br/menu/investidor/alertas/ofertas_atuacoes_irregulares.html>.
[12] Instrução Normativa RFB nº 1888/19. Disponível em < http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=100592>. Acesso em 20 de dezembro de 2022.
[13] Perguntas de Respostas IRPF 2022 – Disponível em < https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/perguntas-e-respostas/dirpf/pr-irpf-2022.pdf/view>. Acesso em 21 de dezembro de 2022.
[14] Pergunta 455 — Como os criptoativos devem ser declarados? Os criptoativos não são considerados moeda de curso legal nos termos do marco regulatório atual. Entretanto, podem ser equiparados a ativos sujeitos a ganho de capital e devem ser declarados pelo valor de aquisição na Ficha Bens e Direitos (Grupo 08 – Criptoativos), considerando os códigos específicos a seguir (01, 02, 03, 10 e 99), quando o valor de aquisição de cada tipo de criptoativo for igual ou superior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais): – Disponível em < https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/perguntas-e-respostas/dirpf/pr-irpf-2022.pdf/view>. Acesso em 21 de dezembro de 2022.
2 Comentários
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