Do bitcoin à tokenização de ativos mobiliários

Entenda o que são os criptoativos, seus tipos mais comuns e os aspectos jurídicos que impactam este fascinante capítulo do mundo contemporâneo

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De sonho idealista para o setor bancário a ativos de especulação agressiva e tecnologia inovadora, termos como bitcoin, criptomoedas, blockchain e NFTs, antes restritos a uma audiência especializada, assumiram papel de destaque para o cidadão médio nos últimos anos. Artigos sobre o impacto dos criptoativos e sua tecnologia na sociedade e no Direito não faltam. Mas, numa era em que a informação transborda, objetividade e clareza são essenciais. Nesta série de artigos, vamos explorar as diversas formas como as criptomoedas — os criptoativos — mudaram e ainda podem continuar mudando o mundo.

O tema, sem dúvida, não carece de exposição. Basta citar exemplos de como as criptomoedas voltaram a realizar prejuízos para os investidores, ou ainda as desventuras de El Salvador ao adotar o bitcoin como moeda oficial. Mais recentemente, a história dramática da FTX, uma das maiores corretoras de criptomoedas do mundo, tomou as manchetes. A instituição foi alvo de denúncias relatando fraudes que envolviam fundos dos seus investidores, e o caso resultou em pedido de falência. Isso mostra que, mesmo quase 15 anos após a primeira proposta para o bitcoin, os criptoativos não perderam relevância, longe disso.

E por onde começar? O ponto de partida será compreender o que são os criptoativos, visto que vão muito além das criptomoedas, elementos mais comuns do gênero. De um lado, temos que compreender o que aproxima e diferencia os diversos tipos de criptoativos, como as criptomoedas, NFTs e tokens em geral, de forma que possamos conceituar o tema. De outro, é essencial entender como esses novos tipos de ativos se encaixam no mundo real.

O que são os criptoativos?

Apesar de se dividirem em diversas espécies, os criptoativos têm uma natureza comum e possuem mais semelhanças que diferenças. Esses bens criptográficos são — como descritos pela repartição de impostos australiana e pelo Tesouro estadunidense — uma representação digital de valor que pode ser transferida, armazenada ou comercializada de forma eletrônica. Além disso, também é essencial que sejam protegidos por mecanismos criptográficos e que utilizem, para a sua estruturação e registro de transações, tecnologias como as de Distributed Ledger Technology (DLT) ou semelhantes.

São, em essência, uma espécie do gênero de ativos digitais que usam criptografia para proteger as informações, tecnologias de DLT e sistemas P2P (peer-to-peer) para registro e validação de transações envolvendo esses ativos. Isso significa dizer que os criptoativos existem e são transacionados, comprados e vendidos, com base em “anotações” feitas em um livro-registro ou livro-razão.

Pensando no formato tradicional das transações econômicas, uma vez que compradores e vendedores geralmente não se conhecem, devem confiar em um terceiro para garantir que a transação aconteça. Esse intermediário pode ser uma instituição financeira (que garante que determinada quantia saia da conta do comprador e chegue à conta do vendedor), ou mesmo uma entidade reguladora, como um Banco Central, que emite papel-moeda. Especialmente no caso das instituições financeiras, o “livro-razão” em que as transações são anotadas fica sob a guarda do banco, de modo que a transação só acontece pela confiança das partes nessa instituição financeira para manter um registro correto do saldo de cada conta.

Em sua concepção original, o bitcoin e a tecnologia blockchain deveriam eliminar o intermediário, transferindo o papel deste — de garantir a confiança entre as partes — para a tecnologia e reduzindo, assim, os custos da transação. Na visão original, os saldos e as transações realizadas não dependeriam da confiança das partes no intermediário, mas seriam, na verdade, garantidos pela própria tecnologia em que essas transações acontecem.

E como a tecnologia pode gerar confiança? As tecnologias DLT[1], em suma, são um banco de dados distribuído entre múltiplos dispositivos ou entre vários nós conectados em uma rede descentralizada[2]. Nessa rede, são armazenados diversos registros de evento contendo uma estampa de tempo – timestamp – e uma assinatura digital, que validam a autoria e a data de ocorrência de um determinado evento. Portanto, tem-se um tipo de base de dados que armazena registos eletrônicos partilhados e replicados em muitos locais e mantidos por membros dessa rede descentralizada, sendo que cada nova transação deve ser validada pelos membros da rede antes de ser adicionada ao livro-razão.

O blockchain é uma subespécie dessa tecnologia, que utiliza uma metodologia de agrupamento dos registros em blocos interligados. Cada um desses blocos carrega não só o seu conjunto de dados, mas uma referência ao conjunto de dados de seu antecessor, formando uma cadeia de blocos de informação que são protegidos por criptografia[3].

Essa forma única de estruturação dos dados faz com que as transações registradas na blockchain tenham uma segurança adicional, pois são (praticamente) irreversíveis. Assim, podem ser usadas para armazenar muitos tipos de dados, embora tenham se tornado extremamente populares pela sua utilização para armazenar o histórico de transações em moeda criptográfica.

Dito isso, o token ou criptoativo (que é transacionado nessas redes digitais) nada mais é que um bem digital que representa algo: ele pode representar uma reserva de valor, sendo então uma criptomoeda como o bitcoin ou ether; pode representar benefícios ou direitos de acesso, como um cartão de acesso a um edifício corporativo ou um cartão de sócio de um clube esportivo; e pode representar direitos e obrigações, como aquelas inerentes a uma participação no capital social de uma empresa.

Quais os tipos mais comuns de criptoativos?

Existem diversas espécies de criptoativos, sendo que nem sempre os diferentes tipos são excludentes, nem seus limites são exatamente fixos, uma vez que a inovação constante no setor permite sempre a criação de novos tokens que podem agregar características variadas. Algumas das categorias mais comuns são:

Criptomoedas: as moedas criptográficas — ou moedas virtuais — são o tipo de criptoativo mais conhecido, especialmente por terem inaugurado o “mercado cripto” com a criação do bitcoin. Podem ser utilizadas na troca por produtos ou serviços, como moedas comuns (a exemplo de dólares e reais), ou para fins meramente especulativos, como uso em plataformas de negociação de ativos criptográficos. Alguns exemplos incluem moedas famosas como o bitcoin e o ether, da Ethereum, embora também existam moedas de menor valor ou com um propósito menos sério — como o doge coin, que surge a partir de um meme (uma piada) de internet.[4]

Tokens de utilidade (utility tokens): são ativos que fornecem direitos de acesso a um produto ou serviço específico ao seu portador (sejam serviços ou produtos existentes ou futuros), ou mesmo acesso a uma plataforma, um determinado grupo ou ambientes em geral, sejam físicos ou digitais, no que o utility token se assemelha tanto a um voucher ou cupom de desconto quanto a um cartão de acesso (a um espaço privado, por exemplo). Um fornecedor pode emitir os tokens que serão utilizados na rede específica do emissor, oferecendo alguma espécie de benefício ao detentor.[5] No Brasil, uma aplicação inovadora desse tipo de ativo são os fan tokens, lançados por clubes como Atlético-MG, Corinthians, Flamengo e São Paulo, para garantir aos torcedores que aderirem benefícios exclusivos, como ocorre com programas de sócio-torcedor.

Tokens de securitização (security tokens): os tokens de securitização, ligados às securities (ativos negociáveis como obrigações, débitos, ações e garantias) são uma forma de se investir em um determinado projeto, assim como ocorre em investimentos baseados em papel como ações e imóveis. Ao contrário dessas formas tradicionais de investimento, essas securities são representadas pelos tokens criptográficos, que por sua vez podem ser transacionados em sistemas descentralizados. Enquanto esse formato pode parecer muito mais flexível que os modelos tradicionais de organização de uma empresa (sociedade limitada, sociedade por ações ou sociedade anônima, por exemplo), se esse token reunir certas características, poderá ser considerado um valor mobiliário, estando assim sujeito às mesmas regras das ações, debêntures e contratos coletivos de investimento. Do ponto de vista do investidor, é importante entender que o investimento apoia uma ideia de modelo de negócio ou uma empresa, podendo dar certo ou não, mas não representa a aquisição de um produto ou serviço totalmente realizado[6].

Non-Fungible Tokens: as fichas não fungíveis (NFTs) são tokens registrados em um sistema descentralizado que registram a propriedade de um objeto tangível ou intangível único, como os direitos de propriedade intelectual sobre uma canção ou uma imagem digital, um vídeo ou uma roupa de marca. O fato de serem não-fungíveis significa que não podem ser trocadas umas pelas outras; cada uma delas é única, diferentemente das criptomoedas[7]. Os NFTs são relativamente novos, mesmo para bens criptográficos. São mais conhecidos pelas imagens e artes virtuais que se tornaram tendência de artistas, influenciadores e personalidades públicas, que investiram milhões nesses objetos virtuais que, como outros ativos criptográficos, estão sujeitos a grandes variações de valor, por razões diversas.

Stablecoins: as stablecoins são um tipo específico de moedas digitais, sendo que, ao contrário das criptomoedas como bitcoin ou ether, estão ligadas a ativos tradicionais, apresentando assim menor volatilidade enquanto o ativo subjacente permanecer também estável.[8] São moedas digitais lastreadas em outros ativos, como divisas emitidas por governos – dólar e euro, por exemplo, e/ou commodities, como é o caso do ouro. Um exemplo desse tipo de ativo é o USD Coin (USDC), lastreado em dólar.

Impactos jurídicos dos criptoativos e a sua regulamentação

Apesar da constante inovação desde o artigo seminal publicado pelo pseudônimo Satoshi Nakamoto em 2008, os criptoativos ainda geram dilemas para o universo jurídico, que vão desde questões relativas à tributação das criptomoedas até a validade da tokenização de participação societária. Existem diversas tentativas de regulamentação de criptoativos no Brasil e no mundo, sendo a mais notória a regulamentação europeia.

Como ocorre em qualquer setor, os objetivos da regulamentação são variados. De início, busca-se garantir segurança jurídica aos investidores e outros atores de empreendimentos em criptoativos, preservando-se a existência de um quadro jurídico sólido e definindo-se claramente o tratamento jurídico dos criptoativos. Ainda é necessário buscar formas de apoiar a inovação, ao mesmo tempo em que se estimula a concorrência no setor. Por outra via, é essencial também buscar níveis adequados de proteção aos consumidores e garantir a integridade do mercado, de modo que a volatilidade desses ativos não impacte diretamente outros aspectos do mercado financeiro. Finalmente, também é necessário garantir a estabilidade dos criptoativos para promover a sua aceitação ampla e desenvolver o seu potencial sistêmico, visto que muitas pessoas ainda temem a sua intensa volatilidade.

Nessa medida, também cabe ressaltar que o investidor ou empresário que quer desenvolver seu modelo de negócio a partir de criptoativos ou quer negociar criptoativos no mercado como uma forma de investimento deve sempre avaliar os ativos em si e as regras sobre seu funcionamento e distribuição, o sistema no qual são ou serão baseados (estimativas recentes apontam que mais de 10.000 redes diferentes baseadas em blockchain estavam em operação em setembro de 2022), bem como os canais de negociação a serem utilizados e a empresa ou pessoa que oferta e/ou compra os tokens.

Os criptoativos são de fato um capítulo fascinante do mundo contemporâneo. Enquanto muitos apostam em sua derrocada desde o primeiro dia, o ecossistema de criptomoedas hoje vale mais de 900 bilhões de dólares (e já chegou ao pico de quase 3 trilhões). Do outro lado, os mais otimistas que pregam há mais de uma década que as criptomoedas iriam suplantar o sistema econômico atual viram a realização de suas previsões, no mínimo, adiada, ao passo que o mercado financeiro tradicional vem criando suas próprias formas de interagir e aproveitar o campo fértil dos criptoativos.

Ainda assim, é inegável o impacto dessa tecnologia no mundo atual. É esperado que ela continue por muito tempo influenciando a forma como compramos, investimos, vivenciamos a cultura e nos comunicamos e interagimos com os mundos físico e digital.

 

[1] ARSLANIAN, Henri; FISCHER, Fabrice. Blockchain as an enabling technology. In: The Future of Finance. Palgrave Macmillan, Cham, 2019. p. 113-121.
[2] ROMERO UGARTE, José Luis. Distributed ledger technology (DLT): introduction. Banco de Espana Article, v. 19, p. 18, 2018.
[3] DI PIERRO, Massimo. What is the blockchain?. Computing in Science & Engineering, v. 19, n. 5, p. 92-95, 2017.
[4] MILUTINOVIĆ, Monia. Cryptocurrency. Ekonomika, v. 64, n. 1, p. 105-122, 2018.
[5] BENEDETTI, Hugo; ABARZÚA, Luis; CACERES FUENTES, Christian. Utility Tokens. Available at SSRN 4088568, 2021.
[6] MENDELSON, Michael. From initial coin offerings to security tokens: A US Federal Securities law analysis. Stan. Tech. L. Rev., v. 22, p. 52, 2019.
[7] VALEONTI, Foteini et al. Crypto collectibles, museum funding and OpenGLAM: challenges, opportunities and the potential of Non-Fungible Tokens (NFTs). Applied Sciences, v. 11, n. 21, p. 9931, 2021.
[8] HOANG, Lai T.; BAUR, Dirk G. How stable are stablecoins?. The European Journal of Finance, p. 1-17, 2021.

 

Eugênio Corassa: Advogado na área de Direito Digital do Freitas Ferraz Advogados. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro da International Association of Privacy Professionals (IAPP), pela qual é também certificado como Certified Information Privacy Professional – Europe (CIPP-E), Certified Information Privacy Manager (CIPM) e Certified Data Protection Officer – Brasil (CDPO/BR).

Guilherme Guidi: Head da área de Direito Digital do Freitas Ferraz Advogados. Doutor em Direito Internacional e Comparado e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pesquisador nas áreas de Proteção de Dados, Direito e Tecnologia, Inovação e Propriedade Intelectual em instituições como ITSRio (2016), FGV (2017) e USP. Membro da Comissão de Estudos sobre Compliance Digital da Legal, Ethics and Compliance (LEC) e da International Association of Privacy Professionals (IAPP), pela qual é também certificado como Certified Information Privacy Professional – Europe (CIPP-E), Certified Information Privacy Manager (CIPM) e Certified Data Protection Officer – Brasil (CDPO/BR), reconhecido como Fellow of Information Privacy (FIP) pela mesma instituição.

3 Comentários
  1. Vinicius Rolim Diz

    Excelente artigo!
    Me permita usar como difusor do tema. Espero que web3 tenha um belo texto como esse.

    Obrigado!

  2. […] alguns anos de discussão, o marco legal dos criptoativos foi aprovado no Congresso Nacional. O Projeto de Lei 4.401/21, de autoria do deputado Expedito […]

  3. Paulo Diz

    É claro que o impacto da criptomoeda na vida e na economia é inegável. E o mundo dos jogos de azar online não é exceção. Nos últimos anos, a popularidade dos casinos de criptomoeda aumentou significativamente. Para mim, esta é uma grande chance de ganhar. Especialmente, graças ao artigo – https://www.publicitarioscriativos.com/os-12-melhores-cryptocasinos-do-brasil-vantagens-e-desvantagens-dos-cassinos-de-bitcoin/ , encontrei sites de casino online fiáveis com criptomoeda.

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