Sociedade Anônima do Futebol (SAF): dilemas de propriedade intelectual

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No futebol profissional, a propriedade intelectual é um ativo importante que pode ser utilizado para gerar receitas. Desde a comercialização de produtos relacionados ao brasão e mascote da equipe, até o licenciamento de direitos de transmissão, direitos sobre nomes e imagens de jogadores para campanhas publicitárias e naming rights para estádios e outros tipos de instalações, as entidades que pretendem aproveitar o novo regime jurídico das Sociedades Anônimas do Futebol (“SAF”) devem considerar cuidadosamente certos aspectos da gestão desses direitos.

Dentre as formas mais tradicionais de exploração de ativos de propriedade intelectual, pode ser destacada a titularidade sobre os direitos do nome, logotipo e mascote do time de futebol, que podem ser licenciados a fabricantes de mercadorias na forma de itens de vestuário, itens colecionáveis e demais souvenires. Uma entidade também pode ser proprietária dos direitos dos nomes e imagens dos seus jogadores, que podem ser utilizados em campanhas de marketing e patrocínios. O licenciamento dos direitos de transmissão dos jogos também são uma fonte relevante e tradicional de receitas para o segmento, associados a venda de espaços publicitários.

Atualmente também não é incomum que os clubes de futebol licenciem os naming rights de estádios e outros estabelecimentos, garantindo a corporações a oportunidade de associarem sua marca àquela do time de futebol, como no caso das arenas de clubes paulistas como Corinthians e Palmeiras, associadas à Neo Química e Allianz, respectivamente. As transmissões de jogos e eventos, por sua vez, ganham novos contornos com o acesso a novos canais de transmissão, como plataformas de streaming gratuitas ou pagas, canais de transmissão de personalidades e streamers, como ocorreu com o sucesso da Cazé TV, canal do influenciador “Casemiro”, durante a Copa do Mundo de 2022.

Com o amadurecimento e consolidação da SAF no Brasil, surgem, todavia, dúvidas com relação a questões de propriedade intelectual. Por exemplo: o que diz a lei sobre a propriedade intelectual dos clubes de futebol que passam a se organizar na forma de SAF? Como as novas sociedades podem explorar direitos de propriedade intelectual para gerarem receitas? Observado esse cenário, o propósito deste texto é explorar como a Lei das SAF – Lei n. 14.193, de 2021, lida com o tema.

O que diz a Lei das SAF sobre Propriedade Intelectual?

Em suma, a lei é clara ao afirmar que dentro do objeto social – ou seja, do objetivo – das SAFs está a atividade de exploração, sob qualquer forma, dos direitos de propriedade intelectual de sua titularidade ou dos quais seja cessionária, incluídos os cedidos pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, bem como a exploração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, relacionados ao futebol[1].

Para além do jargão jurídico, isso significa que a SAF poderá utilizar seus ativos e direitos de propriedade intelectual, tanto aqueles de sua titularidade original ou aqueles que anteriormente eram do clube – como brasões, marcas e demais identificadores do time, quanto aqueles relacionados a jogadores de futebol, cujos direitos de imagem são licenciados pelos clubes para fins de transmissão de partidas ou propaganda.

Ainda, como visto no primeiro artigo da nossa série[2], a SAF pode ser constituída de diversas formas, e uma delas é a cisão da entidade com a versão do acervo líquido relacionado ao setor de futebol de um clube para a criação da SAF. Essa modalidade, inclusive, traz impactos importantes para as questões de propriedade intelectual do novo ente.

A lei dispõe que, para fins de continuar a operação dos direitos de propriedade intelectual do clube cessionário, o clube – ou a pessoa jurídica original – e a SAF deverão contratar, na data de constituição desta, a utilização e o pagamento de remuneração decorrente da exploração pela SAF de direitos de propriedade intelectual de titularidade do clube ou pessoa jurídica original. Assim, os clubes originais podem licenciar seus ativos de propriedade intelectual, os quais serão explorados pela SAF em sua atividade futebolística.

Finalmente, a Lei da SAF ainda estabelece algumas proteções para o clube, de maneira que a sua marca e a sua história não sejam desvirtuadas. No caso, enquanto o clube detiver pelo menos 10% (dez por cento) do capital social votante da SAF – na forma de ações ordinárias de Classe A, poderá impedir a disposição de qualquer direito de propriedade intelectual conferido pelo clube para a formação do capital social da SAF, evitando mudanças dos escudos dos times, hinos e até mesmo de marcas históricas.

Isso quer dizer, como proposto pela lei, que o clube poderá utilizar ativos de propriedade intelectual para integralizar sua parcela no capital da SAF, garantindo ao ente certos direitos e prevenindo abusos em relação às marcas do clube. Nesse sentido, pode impedir mudanças na marca, no escudo e até mesmo nas cores da agremiação.

Problemas e Possibilidades relacionados à exploração da Propriedade Intelectual da SAF

A lei, apesar dos seus enormes avanços, é um pouco genérica ao lidar com a questão da propriedade intelectual, de forma que apenas menciona que a SAF poderá explorar os direitos de propriedade intelectual e que deverá negociar com o clube a exploração destes. Dessa forma, há uma lacuna que precisará ser preenchida durante os processos de constituição do novo ente.

Nesse sentido, seja pela transformação do clube original em SAF, seja pela cisão do clube original – com a transferência do acervo líquido relacionado ao futebol para o novo ente, a SAF assume as condições existentes no clube, incluindo os deveres e direitos relacionados a propriedade intelectual. Ou seja, no momento da constituição da SAF a questão da gestão dos ativos de propriedade intelectual precisa ser regulada contratualmente, especificamente com relação à exploração dos ativos de propriedade intelectual do clube, que as vezes ainda manterá a forma de associação para abraçar outros esportes.

A título ilustrativo, encontramos em Portugal caso emblemático do clube lisboeta Belenenses. Nesse episódio, a venda do clube e constituição da SAD (Sociedade Anônima Desportiva) levou a diversos conflitos entre os dirigentes da sociedade e do clube. A situação chegou ao limite quando o presidente do clube tentou impedir que a SAD – que disputava a primeira divisão do campeonato português – utilizasse o nome e o símbolo do Belenenses[3]. Simultaneamente, sócios e torcedores do clube insatisfeitos com a situação da SAD criaram um time de futebol que começou na última divisão do campeonato português usando as cores originais do clube. Esse embate entre a SAD e o clube resultou em uma ação judicial, com as duas entidades buscando na Justiça o direito de utilizarem nome, marcas e símbolos do time de futebol original[4].

Apesar disso, a utilização de propriedade intelectual de um clube de futebol pode trazer grandes ganhos à SAF, como já foi percebido por alguns clubes de futebol no Brasil. O clube América/MG, por exemplo, registrou a marca America Football Club, enquanto o Flamengo conseguiu junto ao INPI o reconhecimento do nome “Flamengo” como marca de alto renome[5], não podendo ser utilizada desde 2019 em nenhum novo estabelecimento comercial, produto ou serviço em qualquer ramo de atividades.

Ainda, a venda de camisas e vestuário esportivo pode representar uma considerável fonte de receita. A título de exemplo, o clube Atlético Mineiro, tradicional entidade de Minas Gerais, registrou um lucro superior a R$12 milhões na venda de sua camisa comemorativa “Manto da Massa”[6].

Assim, a exploração da propriedade intelectual pode ser uma fonte de receitas importante paras SAFs, mas demanda atenção para correta gestão e licenciamento desses ativos. O Botafogo, agora já constituído como SAF, realizou em 2022 movimento para verticalizar a gestão de lojas e produtos esportivos do clube, adotando uma nova estratégia de merchandising. Dessa maneira, para além de somente arrecadar com uma parte do valor da venda de produtos na forma de royalties, a SAF passou a ter o retorno de todo o lucro obtido com a comercialização de materiais esportivos[7].

Isso também significa que as SAFs podem se beneficiar de terem uma melhor gestão na exploração dos direitos de propriedade intelectual, inclusive coibindo práticas de utilização ilegal desses direitos, como a pirataria.

Qual o caminho a partir de agora?

Como se viu, os direitos de propriedade intelectual representam uma parcela importante da geração de receita para os clubes de futebol e, agora, também para as SAFs. Dessa maneira, é um tema que não pode ser desconsiderado pelos empresários ou dirigentes que estão à frente de processos de conversão de um clube de futebol tradicional em uma SAF ou outras formas de constituição. É importante, inclusive, apontar que a SAF pode e deve explorar os direitos de propriedade intelectual, inexistindo vedação a esse tipo de atividade.

Para tanto, é preciso que no momento da constituição da SAF, seja realizada uma auditoria adequada para que os potenciais investidores possam ter ciência, dentre outros assuntos, dos ativos de propriedade intelectual existentes e a sua real situação. Vale ressaltar, inclusive, que não é incomum que os clubes de futebol, apesar de poderem se beneficiar disso, não tenham registros de suas marcas e não tenham o controle sobre a exploração de seus direitos de propriedade intelectual.

Ainda, no momento da negociação para a constituição da SAF, é preciso que as partes acordem sobre quais ativos farão parte ou não da SAF e o que será meramente licenciado pelo ente. Isso significa garantir que a SAF poderá explorar os direitos de propriedade intelectual sem que incorra em violações à legislação brasileira. A flexibilidade nesse tipo de ajuste tem como exemplo o caso do Vasco da Gama: o estádio do clube de São Januário não entrou na constituição da sociedade anônima, mas foi “alugado” pela SAF e receberá investimentos para garantir que o estádio seja capaz de competir com as modernas arenas de futebol ao redor do país[8].

Com tais cuidados, uma SAF terá condições de explorar seus ativos de propriedade intelectual, podendo buscar condições mais favoráveis que aquelas anteriormente obtidas pelos clubes, muitas vezes em crises financeiras graves.

Finalmente, também caberá ao clube, agora com novos modelos de governança, na forma da SAF, buscar maneiras de capitalizar o uso desses ativos. Novas formas de comercialização, como a utilização de naming rights para estádios, a comercialização de material esportivo e a realização de campanhas promocionais de outras marcas vinculadas à do time de futebol podem representar uma grande oportunidade para os investidores, desde que certas cautelas básicas sejam tomadas para preservar tais importantes ativos da sociedade e do clube.

 

[1] BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Lei da SAF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14193.htm.
[2] FREITAS, Bernardo. SOCIEDADE ANÔNIMA DO FUTEBOL: O QUE É PRECISO SABER?. Disponível em: https://legislacaoemercados.capitalaberto.com.br/sociedade-anonima-do-futebol-o-que-e-preciso-saber/
[3] REIS, Lucas. COMO A EX-EQUIPE DE ABEL BRAGA E JESUS FOI PARAR NA SÉTIMA DIVISÃO DE PORTUGAL? A HISTÓRIA DO TRADICIONAL BELENENSES. UOL. 3º Tempo, 10 de junho de 2022. Disponível em: https://terceirotempo.uol.com.br/noticias/como-a-ex-equipe-de-abel-braga-e-jesus-foi-parar-na-setima-divisao-de-portugal-a-historia-do-tradicional-belenenses.
[4] ESTEVES, Adérito. SAD diz que tribunal permite usar nome Belenenses. Mais Futebol, 21 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://maisfutebol.iol.pt/rui-pedro-soares/21-02-2021/liga-sad-diz-que-tribunal-permite-usar-nome-belenenses.
[5] PESSÔA, Lucas. Flamengo reforça posição no combate à pirataria e assume postura rígida na defesa da marca.  Lance!Biz, 054 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.lance.com.br/lancebiz/flamengo-reforca-posicao-no-combate-a-pirataria-e-assume-postura-rigida-na-defesa-da-marca.html.
[6] RIBEIRO, Fred. Com recorde de vendas do Manto da Massa, Atlético-MG terá lucro superior a R$ 12 milhões em 2022. GE-Globo. Atlético-MG, 16 de maio de 2022. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/times/atletico-mg/noticia/2022/05/16/com-recorde-de-vendas-do-manto-da-massa-atletico-mg-tera-lucro-superior-a-r-12-milhoes-em-2022.ghtml.
[7] FOGÃONET. Botafogo adota nova estratégia com merchandising de material esportivo e internaliza gestão de lojas e produtos para aumentar receita. FogãoNet, 19 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.fogaonet.com/noticias-do-botafogo/botafogo-adota-nova-estrategia-material-esportivo-internaliza-gestao-lojas-produtos/
[8] NETVASCO. Vasco aguarda Prefeitura para seguir com plano de ampliação de São Januário. NETVASCO, 25 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.netvasco.com.br/n/301509/vasco-aguarda-prefeitura-para-seguir-com-plano-de-ampliacao-de-sao-januario
1 comentário
  1. Alex45 Diz

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