Tentativas de definição de devedor contumaz

Pelo menos dois projetos de lei — PLS 284/17 e PL 1.646/19 — pretendem delimitar fronteiras entre ilicitude, eventualidade e necessidade

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Dentre os numerosos imbróglios e embates envolvendo o fisco e os contribuintes no Brasil, há até questões semânticas tornando as situações ainda mais complexas. É o caso, por exemplo, da definição de devedor contumaz. Sem uma caracterização específica, esse tipo de devedor poderia ser confundido com os devedores eventuais e reiterado, que têm motivações diferentes para não terem cumprido com suas obrigações tributárias.

No Legislativo há pelo menos duas tentativas de ajuste desse problema. Uma delas está concentrada no PLS 284/17, de proposição do Senado Federal. “Esse projeto faz distinção objetiva entre os três tipos de devedores: o eventual, o reiterado e o contumaz”, destaca Alamy Candido, sócio-fundador do Candido Martins Advogados. “O projeto prevê que poderão ser adotadas em face aos devedores contumazes, entre outras medidas, a manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento; o controle especial do recolhimento do tributo, de informações econômicas, patrimoniais e financeiras; a instalação compulsória de equipamentos de controle de produção, comercialização e estoque”, detalha. Já o PL 1.646/19, explica o advogado, prevê inicialmente que o contribuinte a ser considerado devedor contumaz seria aquele cuja atuação extrapola os limites da inadimplência e se situa no campo da ilicitude.

De acordo com Alexandre Tadeu Navarro, sócio da Navarro Advogados, o PLS 284/17, de iniciativa parlamentar no Senado, pretende regulamentar o art. 146-A, da Constituição Federal, criando barreiras à concorrência fiscal desleal, em que uma empresa conseguiria vantagens competitivas ilegais por meio de manobras tributárias. “É uma boa iniciativa, mas está longe de ser algo prioritário no imenso desatar de nós que precisa ser feito em nossa legislação tributária”, opina. Para ele, o PL 1.646/19, de iniciativa governamental, afronta a realidade da já robusta legislação em favor dos fiscos, que dispõem de ferramental mais do que suficiente para cobrar e executar os tributos. “É de uma inutilidade crassa”, pontua.

A seguir, Candido e Navarro abordam detalhes dos projetos, que ainda não têm perspectiva de votação.


A relação das empresas brasileiras com o fisco ainda carece de uma definição mais acurada do conceito de devedor contumaz, situação que dois projetos no Legislativo tentam corrigir. O que preveem o PLS 284/17 e o PL 1.646/19, que estão em tramitação?

O PLS 284/17 faz distinção objetiva entre os três tipos de devedores: o devedor eventual, o devedor reiterado e o devedor contumaz. O projeto prevê que poderão ser adotadas em face aos devedores contumazes, entre outras medidas, a manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento; o controle especial do recolhimento do tributo, de informações econômicas, patrimoniais e financeiras; a instalação compulsória de equipamentos de controle de produção, comercialização e estoque; entre outras.

O PL 1.646/19 prevê inicialmente que o contribuinte a ser considerado como devedor contumaz seria aquele cuja atuação extrapola os limites da inadimplência e se situa no campo da ilicitude. Para tanto, estabelece critérios que o definirão como contumaz, como a inadimplência substancial e reiterada, superior a 15 milhões de reais por períodos maiores que um ano e o explícito propósito em fraudar a União. Além disso, prevê que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) poderá estabelecer medidas punitivas aos referidos devedores; o CNPJ do devedor poderá ser cancelado; o devedor poderá ser impossibilitado de receber benefício fiscal por um prazo de dez anos; a possibilidade de atuação do juízo da execução fiscal nos casos de empresas em recuperação judicial; a possibilidade de contratação de empresas especializadas em gestão de bens e de terceiros para cobrança administrativa; entre outras diretrizes.

O PLS 284/17, de iniciativa parlamentar no Senado, pretende regulamentar o art. 146-A, da Constituição Federal, no sentido de criar barreiras à chamada concorrência fiscal desleal, em que alguma empresa conseguiria vantagens competitivas ilegais por meio de manobras tributárias. É uma boa iniciativa, mas está longe de ser algo prioritário no imenso desatar de nós que precisa ser feito em nossa legislação tributária.

Já o PL 1.646/19, de iniciativa governamental, busca estabelecer suposta regulação para definir e caracterizar o chamado “devedor contumaz”. É de uma inutilidade crassa, porque afronta a realidade de nossa já robusta legislação em favor dos fiscos, que dispõem de ferramental mais do que suficiente para cobrar e executar os tributos. O problema real, que parece não caber na capacidade cognitiva dos gestores, é a imensa quantidade de exceções às normas, benefícios construídos sob medida e de regimes especiais, tornando nosso sistema tributário inadministrável. Criar uma lei de caráter perfumista é ridículo, ainda mais num cenário em que está tramitando uma anistia bilionária em favor de entidades religiosas e o próprio governo retirou o caráter de urgência na tramitação da sua microrreforma tributária proposta.

Os fiscos já têm normas suficientes para identificar e cobrar seus tributos; o que falta é coragem para efetivar essa cobrança de modo republicano, valendo aquela premissa de aplicar a lei apenas aos inimigos.


Apesar das outras demandas mais urgentes que se apresentam aos parlamentares (principalmente as relacionadas à pandemia), há chance de avanço na tramitação dessas propostas?

A princípio, há chance de avanço dos projetos de lei envolvendo o combate ao devedor contumaz. Com a necessidade de o País retomar sua economia e, por ser esperado que se tenha uma boa arrecadação quando da recuperação dos débitos acumulados por devedores contumazes, acreditamos que há bons argumentos para dizer que algum dos projetos poderá ser aprovado. No entanto, acreditamos que ainda deverão sofrer alterações na redação para melhor delimitar o conceito principal de devedor contumaz para conferir segurança jurídica.

Acredito que a chance é quase nula, ao menos neste ano, não só dessas como de todas as demais proposições legislativas relevantes na área tributária. Não há interesse e nem atitude do governo nesse sentido e nunca houve mudanças tributárias sem apoio e gestões efetivas do governo de plantão. A prioridade nitidamente não é essa, apesar da gritante necessidade por conta do brutal desequilíbrio fiscal. A pauta vigente é só focada em reeleição e salvar as crias.


Em termos de segurança jurídica, quais seriam os benefícios para as empresas com uma definição mais precisa de devedor contumaz?

Em relação à segurança jurídica, os benefícios para as empresas em relação à caracterização efetiva do devedor contumaz é saber ao certo da sua definição. Diante disso, aquele devedor que está de “boa-fé”, inadimplente não para ter benefício ou vantagem econômica, mas porque enfrenta dificuldades financeiras, não será equivocadamente incluído na definição de devedor contumaz com risco de incorrer em crime por deixar de recolher o tributo por ausência de fundos. Com isso, os contribuintes estarão seguros de arbitrariedades do Poder Judiciário ou das autoridades fiscais na exigência dos tributos ou na caracterização de crimes.

Se o projeto 1.646/19 fosse sério e baseado em técnica jurídica, certamente poderia estabelecer parâmetros positivos para os contribuintes e os fiscos, eliminando os aspectos subjetivos que envolvem essa definição. Mas basta ver a redação sugerida no art. 2º, em seus incisos, para vermos que a proposição é de uma absoluta inutilidade e ilegalidade: em todas as quatro hipóteses a premissa começa com a ocorrência de “indícios” e não de fatos ou atos que possam ser provados. Ou seja, somente criaria mais um cenário de contencioso infinito na discussão de cada situação concreta, pois não elimina o caráter de subjetivismo no enquadramento, o que é inaceitável em matéria tributária.

 

 

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