Revisão do Refis da Crise pode gerar rombo bilionário para União

Controvérsia envolve cálculo de juros de mora sobre multas e está sob análise do STJ

0

Como forma de amenizar os impactos da crise de 2008 sobre a economia brasileira, o governo da época criou o chamado Refis da Crise, instituído pela Lei 11.941/09. O programa permitia o parcelamento de débitos tributários das empresas aderentes com a previsão de descontos em multas e juros de mora. Passada mais de uma década, uma controvérsia com efeitos potencialmente bilionários para os cofres públicos chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Se a tese dos contribuintes sair vitoriosa da disputa, estima-se que eventual devolução de valores pode corresponder a 5% do total arrecadado pela União com o Refis da Crise.

Como explica Alamy Candido, sócio fundador do Candido Martins Advogados, a questão envolve a interpretação a ser dada ao artigo 1º, § 3º, inciso I, da Lei 11.941/09. “Especialmente no que diz respeito à incidência de juros de mora à razão de 45% sobre a multa reduzida em 100% nos casos de pagamento à vista do débito pelo contribuinte. O contribuinte alega que os juros incidentes sobre a multa deveriam seguir o mesmo percentual de redução da penalidade (i.e., de 100%), em razão da regra de que o acessório deve seguir o principal”, destaca.

“A legislação não foi clara ao determinar se o contribuinte que realiza a quitação do débito à vista ainda estaria sujeito aos juros incidentes sobre a multa — ou seja, os juros sobre a multa deveriam reduzir 100% (junto com a própria multa), 45% (assim como os juros de mora) ou simplesmente não haveria redução sobre esse valor (juros sobre a multa)?”, acrescenta Thiago Braichi, sócio do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.

No caso de o STJ tomar uma decisão contrária ao fisco, determinando que o desconto de 100% no valor da multa em razão da quitação à vista do débito também resulta na exclusão dos juros sobre ela incidentes, haveria redução do saldo a ser pago pelos contribuintes participantes do Refis da Crise, na opinião de Enrique Lewandowski, sócio do Amaral Lewandowski Advogados. “Nesse contexto, os contribuintes poderão — e certamente irão — se utilizar do precedente da Corte para mover ações judiciais”, avalia.

A seguir, Candido, Braichi e Lewandowski comentam outros detalhes dessa revisão do Refis da Crise.


Está sob análise dos ministros do STJ a forma de cálculo dos descontos concedidos aos contribuintes no âmbito do Refis da Crise (Lei 11.941/09). Em que consistia esse programa?

O Refis da Crise foi um programa de parcelamento de débitos tributários acompanhado de significativas reduções das multas (de 20% a 100%) e dos juros de mora (de 25% a 45%). A controvérsia a ser analisada pelo STJ trata da interpretação a ser dada ao artigo 1º, § 3º, inciso I, da Lei 11.941/09 — principalmente no que diz respeito à incidência de juros de mora à razão de 45% sobre a multa reduzida em 100% nos casos de pagamento à vista do débito pelo contribuinte. O contribuinte alega que os juros incidentes sobre a multa deveriam seguir o mesmo percentual de redução da penalidade (i.e., de 100%), em razão da regra de que o acessório deve seguir o principal.

Em resumo, discute-se a forma de cálculo dos descontos sobre os juros incidentes sobre a multa: os contribuintes defendem que esses descontos alcançam os respectivos juros incidentes sobre a multa, de modo que, se é concedido 100% de desconto sobre a multa, não há como remanescer a exigência de juros sobre esse montante perdoado. Já o fisco defende que os descontos devem ser aplicados proporcionalmente, de maneira que a multa seja calculada separadamente dos respectivos juros. Assim, mesmo não havendo mais a multa perdoada em 100%, deveriam remanescer os respectivos juros incidentes sobre ela.

O Refis da Crise foi um programa de recuperação fiscal instituído durante o período de crise econômica entre os anos de 2008 e 2010. Regulamentado pela Lei 11.941/09, ele possibilitou o parcelamento do débito fiscal de pessoas físicas e jurídicas em até 180 vezes com a redução de até 100% da multa e 45% dos juros de mora.

Ocorre que a legislação não foi clara ao determinar se o contribuinte que realiza a quitação do débito à vista ainda estaria sujeito aos juros incidentes sobre a multa — ou seja, os juros sobre a multa deveriam reduzir 100% (junto com a própria multa), 45% (assim como os juros de mora) ou simplesmente não haveria redução sobre esse valor (juros sobre a multa)? Assim, a discussão acabou sendo levada ao Judiciário para se definir a correta interpretação da legislação.

O programa de recuperação fiscal conhecido como Refis da Crise foi instituído pela Lei 11.941/09 e possibilitou às pessoas físicas e jurídicas o parcelamento das suas dívidas de tributos federais e previdenciários com redução de encargos, notadamente multas e juros. O programa de parcelamento recebeu esse nome pelo fato de ter sido instituído em meio à crise financeira internacional de 2008, tendo, contudo, o prazo para adesão sido reaberto em 2013 e estendido até 2014.


Eventual decisão do STJ no sentido de rever o cálculo do imposto poderia obrigar o fisco a ressarcir os contribuintes?

Sim. O contribuinte que efetuou o pagamento e desejar ter o cálculo revisado deverá ajuizar a respectiva medida judicial para a restituição do indébito.

Caso a Corte venha a acolher a tese dos contribuintes para redução integral dos juros sobre a multa, será cabível, em tese, o ajuizamento de ações pelos contribuintes requerendo a restituição ou compensação desse débito, observada a prescrição quinquenal.

Uma decisão do STJ contrária ao fisco, no sentido de que o desconto de 100% no valor da multa em razão da quitação à vista do débito também resulta na exclusão dos juros sobre ela incidentes, implicaria redução do saldo a ser pago pelos contribuintes participantes do Refis da Crise. Nesse contexto, os contribuintes poderão — e certamente irão — se utilizar do precedente da Corte para mover ações judiciais contra a Fazenda Nacional, pleiteando a restituição dos valores indevidamente recolhidos a maior.


Seria possível estimar o impacto desse eventual ressarcimento?

A Fazenda Nacional estima que uma eventual decisão favorável à tese defendida pelos contribuintes obrigaria a União a devolver cerca de 5% de todo o valor arrecadado no âmbito do Refis da Crise.

Conforme mencionado, em caso de eventual decisão favorável aos contribuintes, será possível que estes pleiteiem o ressarcimento referente ao juros incidentes sobre a multa perdoada. No entanto, ainda é cedo para mensurar o real impacto desse eventual ressarcimento — mesmo que, segundo levantamento feito pela Fazenda Nacional, esse valor possa chegar a até 5% do valor arrecadado com o Refis da Crise.

Certo é que, em caso de decisão desfavorável à União Federal, haverá grande impacto aos cofres públicos, em especial ao se considerar o atual contexto de gastos e queda na arrecadação tributária decorrentes da pandemia.

De acordo com o governo federal, aproximadamente 36 mil pessoas jurídicas aderiram ao Refis da Crise e pelo menos 20 bilhões de reais foram arrecadados com o programa. À vista disso, segundo previsão da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), caso o STJ decida a disputa em favor dos contribuintes, a União estaria obrigada a devolver cerca de 5% do total arrecadado com o programa de parcelamento, com impactos aos cofres públicos na ordem de 1 bilhão de reais.


A conclusão do caso no STJ poderia reverberar sobre outros programas oficiais semelhantes ao Refis da Crise?

Sim, pois a Lei 11.941/09, objeto do recurso analisado, serviu como base para a implementação dos programas de parcelamento publicados nos anos subsequentes. Porém, a extensão dessa interpretação não é automática. Cada programa deverá ter a sua respectiva lei avaliada pelo Poder Judiciário para que possa ser estendido aos demais casos, uma vez que a decisão do STJ está interpretando, neste momento, apenas os dispositivos da Lei 11.941/09.

A conclusão do caso pela 1ª Seção serviria como um importante precedente sobre o tema nos tribunais superiores, em especial ao se considerar a controvérsia existente entre as decisões da 1ª e 2ª Turma do STJ. Assim, eventual decisão favorável aos contribuintes poderia servir como leading case para que seja pleiteado o ressarcimento do juros (sobre a multa) indevidos por meio de ações de repetição de indébito em outros programas de parcelamento de débitos tributários.

A Lei 11.941/09 foi utilizada como parâmetro para a concepção e instituição de muitos dos programas de recuperação fiscal instituídos pelo governo federal na última década. Nesse contexto, parte significativa dos programas de parcelamento posteriores ao Refis da Crise também adotaram a metodologia da redução de 100% da multa, sem o perdão total da dívida relativa aos juros que incidem sobre tais valores. Dessa forma, uma interpretação da Lei 11.941/09, pelo STJ, em favor dos contribuintes deverá repercutir sobre outros programas de renegociação de dívidas federais, resultando em um impacto ainda maior para as contas da União.

 

 

 

 

Deixe uma resposta

Seu endereço de e-mail não será publicado.