Quem ganha e quem perde com o uso da Selic para corrigir dívidas?
Lei 14.905/24 traz segurança jurídica ao definir quais taxas serão usadas, quando contratos não as determinarem
Mais segurança jurídica. Este deve ser o principal efeito da determinação de quais taxas e índices de preços devem ser usados para corrigir dívidas civis, quando os contratos não os definirem. Essa determinação veio por meio da Lei 14.905/24, publicada no início de julho, e que dispõe que a taxa usada será a Selic e o indicador será o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
“O grande mérito da Lei 14.905/24 é dar maior segurança às relações jurídicas. Ao trazer uma definição precisa e clara sobre as taxas legais aplicáveis às dívidas cíveis, ela encerra uma dúvida que durava mais de 20 anos, desde a promulgação do nosso atual Código Civil”, avalia Marcelo Matos, associado do Freitas Ferraz Advogados. Ele explica que, durante esse tempo, havia divergência entre os tribunais estaduais e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre se o mais correto seria aplicar a Selic ou uma da taxa fixa de 1% ao mês. “Tal situação inegavelmente trazia insegurança e indefinições.”
Matos lembra que, no Brasil, a prática contratual no âmbito das relações de consumo ou empresariais é o estabelecimento dos juros moratórios e índice de correção monetária que incidirão quando uma das partes do contrato ficar inadimplente. Para esses casos, a Lei 14.905/24 não terá impacto – ela alcança apenas os contratos que não pactuaram essas condições.
A taxa e o índice de correção monetária usados nas indenizações e correções de dívidas sempre levantou discussão porque tem impacto no valor que o devedor terá de pagar (e o credor irá receber). Se os indicadores forem muito elevados, a dívida aumenta e o devedor tem todo o interesse em saldar logo as pendências. Mas, se forem muito baixos, a tendência pode ser postergar ainda mais o pagamento. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), os julgamentos com resultados diferentes levaram a questão a parar na Corte Especial, que decidiu pela aplicação da Selic (e não pelos juros de 1%). Mas a nulidade do julgamento foi pedida.
Quem ganha e quem perde com a Lei 14.905/24
A resposta para a pergunta “Quem ganha e quem perde com a nova lei?” é: depende. “Considerando que a taxa Selic é variável e diretamente relacionada com as condições macroeconômicas do país, na verdade não é possível apontar ganhadores ou perdedores”, afirma Matos.
Ele pondera que, quando a Selic estiver alta e o IPCA baixo, os juros moratórios serão consideráveis, podendo até passar o patamar de 1% ao mês. Quando a situação se inverter (Selic baixa e IPCA alto), os juros legais aplicáveis serão mais modestos, podendo chegar perto de zero. O advogado explica que primeiro se deve corrigir monetariamente a dívida pelo IPCA, para depois aplicar os juros moratórios, calculados de acordo com a diferença entre a taxa Selic e o IPCA.
Na entrevista abaixo, Matos aborda a nova Lei 14.905/24 e seus impactos.
– No que diz respeito a taxas de juros e à correção monetária, quais são os principais pontos da Lei nº 14.905/2024, publicada em 01/07/24?
Marcelo Matos: A Lei 14.905/2024 alterou disposições do Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/2002) que tratam sobre correção monetária e taxa de juros legal nas dívidas de natureza civil, aplicáveis quando há o inadimplemento parcial de uma obrigação (principalmente o atraso). Em razão dessa nova lei, certas dúvidas que existiam em relação aos encargos moratórios são afastadas, em especial quais os parâmetros que devem ser utilizados pelo julgador quando as partes não estabelecem os índices e taxas.
Em relação ao primeiro ponto, a lei introduziu um parágrafo único ao artigo 389 do Código Civil, determinando que, quando não estabelecido de forma diversa entre as partes, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), apurado e divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) deverá ser aplicado para cálculo da correção monetária das dívidas vencidas e não pagas. Anteriormente, o mencionado artigo não deixava claro qual era o índice a ser aplicado, remetendo a índices oficiais sem especificar qual deveria ser utilizado.
Por sua vez, em relação ao segundo ponto, a lei alterou a redação do artigo 406 do Código Civil, estabelecendo a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (taxa Selic) como taxa legal de juros moratórios, a qual deverá ser aplicada com desconto do índice de atualização monetária (IPCA). Em razão dessa alteração, afasta-se a dúvida sobre qual era a taxa legal aplicável, a taxa Selic (que era utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça) ou taxa de 1% ao mês (que usualmente era aplicado pelos tribunais estaduais). Com isso, quando houver o atraso no pagamento de uma dívida, a taxa legal a ser aplicada será a seguinte: taxa Selic (-) IPCA.
Considerando essa forma de cálculo, quando da aplicação dos encargos moratórios, deve-se primeiro corrigir monetariamente a dívida pelo IPCA, para depois aplicar os juros moratórios, calculados de acordo com a diferença entre a taxa Selic e o IPCA. Para evitar maiores problemas e facilitar a aplicação dessa regra, a nova lei determinou ainda que a forma de cálculo da taxa será definida pelo Conselho Monetário Nacional e divulgada pelo Banco Central do Brasil.
– A taxa Selic passará a ser usada na correção de contratos, quando não houver especificação. Quem sai ganhando e quem sai perdendo com isso?
Marcelo Matos: Em primeiro lugar, é importante esclarecer que a prática contratual brasileira costuma se preocupar com o estabelecimento dos encargos moratórios. Seja em contratos de consumo, seja em contratos empresariais, é bastante comum que as partes estabeleçam qual a taxa de juros moratórios e qual o índice de correção monetária aplicável em caso de atraso no pagamento das obrigações neles estabelecidas. Nesses casos, não há impacto da lei. No entanto, quando não houver definição pelas partes as novas disposições se aplicam.
Considerando que a taxa Selic é variável e diretamente relacionada com as condições macroeconômicas do país, na verdade não é possível apontar ganhadores ou perdedores. Certo é que, em períodos nos quais a taxa Selic estiver alta e o IPCA estiver baixo, os juros moratórios serão consideráveis, podendo até passar o patamar de 1% ao mês. Quando os índices se inverterem, com uma taxa Selic mais baixa e o IPCA mais alto, os juros legais aplicáveis serão mais modestos, podendo chegar perto de zero a depender da situação. No primeiro caso, há um inegável incentivo para o devedor pagar a dívida, pois o valor será acrescido de juros em um patamar considerável. Já no segundo caso, o incentivo pode ser perverso, em razão da falta de consequências mais severas sobre o valor da dívida em atraso.
Além disso, é importante salientar que, por força da redação do novo §3º do artigo 406 do Código Civil, caso a diferença entre o valor da taxa Selic e o IPCA for um número inferior a zero, a taxa de juros aplicáveis será zero. Na prática isso significa que se a taxa Selic foi inferior ao IPCA não haverá aplicação de juros moratórios em uma dívida vencida e não paga, apenas correção monetária. Consequentemente, não haverá uma verdadeira pressão sobre o devedor inadimplente e se verificará um falta de incentivo ao adimplemento.
– A partir de quando a taxa Selic passa a ser usada e em quais contratos?
Marcelo Matos: A Lei 14.905/2024 foi publicada em 1º de julho de 2024, mas o legislador estabeleceu um período de vacância (a famosa vacatio legis) de 60 dias. Em razão disso, as regras só passarão a valer no final de agosto de 2024 (depois do dia 29/08 mais especificamente). A partir dessa data, a taxa estabelecida pela lei passa a ser utilizada pelos julgadores quando da aplicação dos juros moratórios nas dívidas inadimplidas. Porém, como dito anteriormente, trata-se de uma norma supletiva, aplicável apenas quando as partes não definirem outro índice de atualização ou taxa de juros no contrato.
Essa nova regulamentação se aplica a todos os contratos cíveis, bem como às demais relações jurídicas de natureza cível nas quais haja inadimplemento (por exemplo caso uma pessoa cause um acidente veicular e não pague o reparo do carro da pessoa acidentada). Por outro lado, ela não se aplica às dívidas que tenham outra natureza, como as tributárias e as derivadas da Justiça do Trabalho.
– Em sua visão, a fixação da taxa Selic nesses casos é positiva? Em linhas gerais, qual deve ser o impacto da nova lei?
Marcelo Matos: O grande mérito da Lei 14.905/2024 é dar maior segurança às relações jurídicas. Ao trazer uma definição precisa e clara sobre as taxas legais aplicáveis às dívidas cíveis, ela encerra uma dúvida que durava mais de 20 anos, desde a promulgação do nosso atual Código Civil. Durante esse tempo não se chegou a um consenso entre a aplicação da taxa Selic ou da taxa fixa de 1% ao mês como parâmetro legal, com idas e vindas do STJ e dos tribunais estaduais. Tal situação inegavelmente trazia insegurança e indefinições. Esse ponto acaba sendo superado com a publicação dessa lei, que definiu que a taxa legal de juros passa a ser a taxa Selic subtraída pelo percentual do IPCA.
Ainda é cedo para prever quais os impactos dessa nova regulamentação. Mesmo assim, é possível afirmar que o cenário macroeconômico do Brasil passará a ter impacto direto nos incentivos, pois os encargos moratórios serão diretamente afetados pela taxa de juros e pela inflação. Quando o Brasil estiver vivenciando fases de Selic baixa e inflação alta, haverá uma falta de incentivos para o devedor inadimplente a pagar sua dívida. Por sua vez, em momentos de alta da taxa básica de juros e inflação controlada, os incentivos em prol do inadimplemento serão verificados.
Por fim, mais uma vez é importante lembrar que essas taxas são as legalmente definidas, aplicáveis apenas quando as partes não estabelecerem nada diverso no contrato. Em razão disso, caso as partes queiram tratar a questão da correção monetária e dos juros moratórios de forma específica ou diferente daquela legalmente definida, podem estipular expressamente no contrato. Dessa forma, as partes podem, por exemplo, estipular uma cláusula que prevê que os juros moratórios aplicáveis em caso de atraso no pagamento dos valores devidos em decorrência do contrato será de 1% ao mês, e que o índice de correção monetária será o Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M) calculado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).