Procedimentos arbitrais passam a ser totalmente virtuais

Pandemia de covid-19 agilizou processo que já estava em andamento nas câmaras

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Por causa da pandemia do novo coronavírus, as câmaras arbitrais passaram a realizar todos os seus procedimentos de forma virtual. O processo já estava em andamento nas principais câmaras do País, mas foi agilizado diante da necessidade de distanciamento social. As ferramentas digitais já são usadas para as ações mais simples, como protocolos, e até para audiências e julgamentos de disputas.

De acordo com Claudio Roberto Pieruccetti Marques, sócio do Vieira Rezende Advogados, um dos pilares da aceitação e do crescimento da arbitragem é a celeridade dos procedimentos, principalmente se comparados aos processos judiciais — e a utilização de instrumentos virtuais vai nesse sentido. “A possibilidade de uso de meios digitais evita a paralisação em momentos como o atual, com normas que restringem a circulação de pessoas. Também tem impacto positivo na sustentabilidade, uma vez que evita os deslocamentos e a impressão de grandes quantidades de petições e documentos. Isso sem falar na redução de custos com passagens, papel, postagem, entre outros detalhes”, pondera. Guilherme Capuruço, sócio do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados concorda — e ainda completa: “as agendas de árbitros, advogados e testemunhas tornam-se mais ágeis e acessíveis. Demanda-se menos estrutura física das câmaras de arbitragem e menos horas trabalhadas por todos os profissionais envolvidos.”

A digitalização de processos já era uma prerrogativa das câmaras arbitrais antes mesmo da pandemia, pois sempre houve a possibilidade de realização de muitas das audiências online. É o que explica Pedro Mourão, sócio do Nankran & Mourão Advogados. “A audiência para celebração do termo de arbitragem e mesmo a audiência para alegações finais orais, por exemplo, podem ser totalmente virtuais. Há redução de custos, maior celeridade e otimização de tempo”, enumera. Porém, para determinados atos ainda é considerada indispensável a presença física. “Na oitiva de determinada ‘testemunha-chave’, a pressão presencial para se obter um testemunho verdadeiro pode ser muito mais efetiva do que quando feito por videochamada, a distância”, acrescenta.

Apesar de oferecer benefícios os processos arbitrais, a utilização de meios virtuais pelas câmaras pode ter efeitos negativos. Em entrevista, Capuruço, Marques, Mourão e Thomas Magalhães, sócio do Magalhães & Zettel Advogados, comentam como tem sido a experiência no Brasil e os prognósticos para um futuro pós-quarentena.


Há desvantagens na realização de procedimentos arbitrais virtualmente?

Não se pode deixar de apontar que a virtualização completa dos procedimentos pode prejudicar a percepção dos advogados em relação aos árbitros e, principalmente, às testemunhas. Quanto à percepção em relação aos árbitros, muitas vezes os advogados modulam suas intervenções de acordo com a “leitura” que fazem da reação dos árbitros, o que sofre uma perda se não há contato pessoal. Além disso, e talvez ainda mais importante, a falta de contato com as testemunhas impede até mesmo que se tenha certeza se ela, por exemplo, está consultando uma “cola” durante uma audiência. Outro prejuízo pode decorrer da ainda precária infraestrutura de telecomunicações do País, o que muitas vezes torna o sinal de transmissão falho, prejudicando ou até impedindo a realização de um determinado ato, razão pela qual as câmaras deveriam cuidar de expedir regras para regular determinadas situações.

Sem o contato presencial entre árbitros, advogados, partes e testemunhas, perde-se em termos de qualidade da prova oral produzida em audiência. Notadamente nos casos com maior controvérsia em matéria de fatos, esse contato direto com a prova pode ser crucial — tanto para a estratégia do advogado, quanto para a percepção do árbitro sobre a reconstituição da realidade. O nível de segurança dos sistemas contra o vazamento de informações sigilosas também é uma preocupação. Um exemplo disso é o caso da Corte Permanente de Arbitragem, que, em julho de 2015, teve seu site invadido por hackers que buscavam acesso a documentos confidenciais de uma arbitragem marítima entre a China e as Filipinas. Para prevenir esse risco, as câmaras de arbitragem têm investido maciçamente em tecnologia e segurança de dados.

O menor contato social é um problema. A oralidade, um dos pilares da arbitragem, está garantida pelo uso das videoconferências, mas esse recurso, por mais funcional que seja, não substitui o contato humano. Fora isso, ainda temos que contar com os imprevistos advindos da tecnologia, como a queda de conexão com a internet e as falhas nos softwares, o que pode prejudicar o andamento das reuniões. Outra questão diz respeito à controvertida confidencialidade do ambiente virtual, pois a realização de arbitragens online pode aumentar o risco de quebra de sigilo, a possibilidade de vazamento de informações ou mesmo de invasão de sistemas virtuais — o que torna necessário um maior investimento em segurança e inviolabilidade das informações e dados produzidos na arbitragem virtual. Existe, ainda, a questão da autenticidade das informações e dados disponíveis no ambiente online: o problema pode até ser mitigado com o uso de assinadores digitais, mas não é completamente sanado. 


O processo de utilização de meios digitais pelas câmaras arbitrais era algo que já estava em andamento, mas se tornou uma realidade por causa da pandemia de covid-19. Como tem sido essa experiência? Esses procedimentos se mostraram realmente viáveis?

Algumas câmaras de arbitragem já usavam ferramentas digitais para realizar intimações, transmitir documentos às partes e realizar as reuniões inaugurais de assinatura dos termos de arbitragem. A pandemia da covid-19 tornou esses mecanismos mais eficientes do ponto de vista operacional e catalisou o processo de virtualização daquelas câmaras que até então não haviam disponibilizado tais ferramentas. A experiência em serviços de atendimento, recebimento de solicitações de arbitragem e realização de audiências de forma inteiramente virtual foi satisfatória até o momento. O empenho das câmaras de arbitragem é notório para que os procedimentos sigam em curso e não haja prejuízo ao tempo de trâmite das disputas.

Muitos dos procedimentos arbitrais já tinham boa parte de seus atos feitos por meios virtuais. Mas mesmo nesses casos as audiências para assinatura de termo de arbitragem, apresentação do caso e oitiva de testemunhas ainda eram realizadas presencialmente. No que diz respeito ao envio e recebimento de petições e/ou comunicações, a experiência tem se mostrado muito boa, com a verificação de poucos percalços. Em relação a esses atos de menor complexidade, então, os procedimentos se mostraram viáveis.

Entretanto, muito embora a tecnologia hoje permita a realização dos atos mais complexos por meio digital, os pontos negativos apontados anteriormente desaconselham, na minha opinião, a realização de audiências por meio digital, especialmente as de apresentação de caso e aquelas destinadas à oitiva de técnicos e testemunhas.

Quanto às arbitragens virtuais no momento da pandemia, ainda é cedo para se chegar a uma conclusão. Em um futuro próximo, teremos condições de pesar mais ativamente os prós e contras, verificar as experiências e tirar conclusões mais condizentes com a realidade. Mesmo assim, os procedimentos que já haviam adotado o ambiente virtual antes da pandemia tiveram sim, em sua maioria, experiências positivas. Porém, detectou-se um problema: uma certa insegurança com as regras específicas sobre o uso dos métodos no ambiente online, principalmente por possível confronto entre as regras em arbitragens dos diversos países envolvidos em um procedimento internacional. Portanto, com o uso mais intensificado desse método, faz-se necessária a criação de regras globais com adesão da comunidade internacional, criando uma segurança jurídica ainda maior, aos procedimentos arbitrais virtuais entre diversas jurisdições nacionais.


De acordo com especialistas, o processo arbitral estaria se adequando melhor aos meios digitais por ser mais flexível do que o judicial. Quais as principais diferenças entre eles que justificam essa tese?

Os profissionais que atuam na arbitragem têm ciência de que o procedimento arbitral, em regra, é mais simples do que o processo judicial, inclusive pelos procedimentos digitais permitidos nos regulamentos das câmaras arbitrais. Eis que, maioria das vezes, as intimações são feitas por meio virtual (e-mail); o protocolo de manifestações — a critério das partes — pode se dar por meio eletrônico; as câmaras arbitrais têm um arquivo físico com o processo, mas também arquivo virtual com cópia integral; determinadas câmaras flexibilizam a realização de certas audiências por meio virtual e, em especial, pelo princípio da autonomia da vontade, pelo qual as partes podem, em conjunto com o tribunal arbitral e/ou árbitro, estipular determinadas regras. Além disso, como se sabe, pelos custos mais elevados do que no Judiciário arcados pelas partes envolvidas e também pelo fato de não se tratar de órgão público, as câmaras arbitrais têm, em regra, estrutura mais adequada e moderna. Elas se adequam mais facilmente aos meios digitais. Ademais, conforme se verificou com a crise gerada pela covid-19, as câmaras contam com autonomia para elaboração e alteração do regulamento e expedição de resoluções administrativas.

Por outro lado, vale lembrar que, no Judiciário, diversos processos ainda tramitam por meio físico. Com as restrições de circulação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou a suspensão dos prazos processuais por longo período, com previsão de retorno apenas em 15 de maio de 2020. Essa determinação do CNJ recebeu duras críticas, considerando que os protocolos das manifestações são realizados em plataforma digital e a intimação das partes também se dá por meio eletrônico. Ocorre que, de forma distinta das câmaras arbitrais, os tribunais — pela ausência de autonomia — ficaram vinculados à decisão do conselho.

A principal diferença entre os procedimentos arbitrais e os processos judiciais — além, é claro, da jurisdição estatal — é a autonomia da vontade das partes na definição das regras, do foro e da jurisdição competente, dos árbitros, dos meios de prova, dos prazos e mesmo do método procedimental.

O procedimento arbitral ainda é mais abrangente nas possibilidades de as partes definirem o rito, o método, dos procedimentos de acordo com a complexidade da demanda e a sua necessidade. Ele é muito mais flexível, e isso justifica a melhor adequação ao uso dos meios virtuais dos procedimentos arbitrais. Ainda podemos citar as questões referentes à estrutura e ao volume de demandas como pontos que facilitam a virtualização do procedimento arbitral ante o processo judicial.

A lógica que rege o processo judicial é sobremaneira diversa da que orienta o processo arbitral, não apenas no tocante ao procedimento em si. Sob o ponto de vista de normas regulamentares, no Poder Judiciário, o rito processual é pré-determinado pelo Código de Processo Civil [CPC] na Lei nº 13.105/2015, pelos regimentos internos de cada tribunal e pelas normas do Conselho Nacional de Justiça. As partes têm pouca ingerência nesse procedimento. Até agora, nem mesmo os novéis instrumentos de negócio jurídico processual e de calendarização do procedimento — inovações trazidas pelo novo CPC que permitem alteração do procedimento pelas partes – surtiram alterações sensíveis na prática. A natureza de serviço público e a submissão a outras inúmeras normas que limitam a atuação do servidor burocratiza o processo de estudo e investimento em novas tecnologias.

Na arbitragem, o princípio central é a autonomia das partes envolvidas. Advogados e árbitros contam com ampla liberdade para definir em consenso os contornos do procedimento e ajustá-los às necessidades do caso concreto. Não há um “Código de Processo Arbitral”. As regras gerais que disciplinam o procedimento como um todo estão dispostas nos regulamentos das câmaras, substancialmente mais simples do que os 1.072 artigos previstos no CPC. O formalismo em excesso que se vê no Judiciário dá lugar à maior preocupação com o direito material em disputa na arbitragem e com os interesses envolvidos face o tempo de trâmite do processo. Além do mais, as câmaras de arbitragem são entidades privadas atuantes num mercado atualmente bastante competitivo, o que dinamiza os investimentos em infraestrutura e a melhoria de qualidade. Tudo isso torna o ambiente da arbitragem imensuravelmente mais propício à absorção de novas tecnologias e ao uso de ferramentas digitais.

Eu discordo dessa afirmação. O Poder Judiciário está em processo de “virtualização” já há bastante tempo. Inicialmente com a utilização de softwares que permitiam ao juiz ditar o que deveria constar de depoimentos e atas de audiência e posteriormente com a gravação em vídeo de depoimentos de testemunhas. Já há alguns anos, quase todos os tribunais do país implementaram (por determinação do CNJ) o processo eletrônico, no qual o protocolo de petições, a expedição de comunicações, o acesso às peças e atos é totalmente virtual, havendo hoje pouquíssimos e pontuais problemas em relação a isso, conquanto seja possível identificar alguns sistemas mais eficientes do que outros.

As particularidades dos ritos dos processos judiciais podem ter tornado mais complexa a elaboração das plataformas digitais, mas não acho que a flexibilidade do procedimento arbitral torne a adequação melhor, apesar de, eventualmente, ser mais rápida do que foi a implantação dos processos judiciais eletrônicos. Ainda assim, não se pode ignorar o fato de que o desenvolvimento das plataformas de processos eletrônicos teve início já há algum tempo, num momento em que a tecnologia disponível provavelmente pareça obsoleta nos dias de hoje. Portanto, a “virtualização” das arbitragens tem essa vantagem que talvez torne até mesmo inviável a comparação sob esse aspecto.

Segundo minha percepção, a maior diferença entre ambos é que o processo judicial eletrônico funciona em uma plataforma digital única, na qual são inseridas as peças processuais e os atos praticados pelos agentes do Poder Judiciário. Já na arbitragem, o que comumente acontece é o envio de documentos por e-mail e, agora, a realização de audiências por meio de plataformas digitais. Mas, como dito, não acho que isso confirme a tese.


Na sua opinião, a utilização de plataformas virtuais para a realização de audiências, por exemplo, continuará a acontecer mesmo após o fim da quarentena? Por quê?

Já havia uma tendência mundial em se oferecer soluções digitais para problemas de logística na arbitragem. Para se ter um exemplo, a CAM-B3 implantou seu sistema de processo digital em julho de 2019, enquanto a Associação de Arbitragem da Rússia já tinha regras especiais para condução de procedimentos inteiramente virtuais desde 2015. O período de quarentena causada pela covid-19, além de ter acelerado a disseminação de instrumentos digitais para a prática de atos processuais, deve introduzir novos comportamentos sociais. De um lado, entra a questão da eficiência, da redução de custos, da celeridade do procedimento; de outro, a tradição, a preocupação com a representação da realidade e a qualidade da prova oral em audiência. Parece ser um caminho sem volta, mas que demanda cuidados nesse período de maturação. As próximas gerações não saberão como era.

Um outro pilar importante para a adoção de arbitragem como meio de solução de controvérsias é a possibilidade de o litígio ser decidido por especialistas na matéria, e por meio de um procedimento no qual as partes envolvidas tenham maior “interferência” sobre a decisão, tendo em vista que dispõem de mais meios para expor seus argumentos. No Poder Judiciário, por exemplo, não há a praxe de se realizar uma audiência para apresentação do caso e a inquirição de testemunhas é feita pelo juiz (artigo 456 do Código de Processo Civil) e não diretamente pelo advogado, como ocorre nas arbitragens.

A meu ver, essas oportunidades de contatos pessoais servem justamente para que os advogados possam observar as reações de árbitros e testemunhas e, desse modo, modular suas intervenções. Serve, também, para que os árbitros possam melhor avaliar o comportamento das testemunhas e, eventualmente, identificar “falhas” nas informações prestadas.

Por isso, no período pós-pandemia acho que as audiências voltarão a ser presenciais, a fim de que não haja as perdas mencionadas, devendo ser ressaltado que a experiência no período de pandemia pode servir para, em alguns casos, e de maneira pontual, tornar mais célere e menos custoso, quando, por exemplo, precisar ser ouvida uma testemunhas que reside em local distante ou não tenha disponibilidade de comparecer presencialmente ao ato.

É possível, nos procedimentos arbitrais, um aumento considerável na realização de audiências por plataformas virtuais mesmo após o fim da quarentena, considerando principalmente a otimização de tempo e também a redução de custos para as partes envolvidas. Vale imaginar determinada situação: um procedimento arbitral, por exemplo, que esteja em trâmite na cidade de São Paulo, mas o advogado e a parte têm residência e/ou sede em outro estado.

No entanto, é de se entender que algumas audiências presenciais ainda podem ser indispensáveis, como a oitiva de determinada “testemunha chave”, sendo certo que a pressão presencial para se obter uma verdade pode ser mais efetiva do que por vídeo e a distância. Por outro lado, a audiência presencial para celebração do termo de arbitragem pelas partes, em determinados casos, pode se tornar dispensável. 

Ressalte-se, ademais, que um dos princípios da arbitragem é a autonomia da vontade e, portanto, em diversas oportunidades as partes poderiam estipular a realização de audiências virtuais. Entretanto, importante destacar também a necessidade de as câmaras arbitrais realizarem as adaptações necessárias nos regimentos e regulamentos. Inclusive, algumas câmaras já preveem em seu regulamento a realização de assembleias virtuais em determinadas situações, como é o caso do item 6.2 do Regulamento da CAMARB: “6.2 As partes e o Tribunal Arbitral deverão firmar o Termo de Arbitragem em audiência especialmente designada para tal finalidade, sendo facultada a realização de audiência por vídeo ou teleconferência, ou a troca de correios eletrônicos, hipóteses em que as assinaturas serão colhidas posteriormente”.

Sim, indubitavelmente essa passará a ser realidade tanto dos procedimentos arbitrais (em maior volume), quanto dos processos judiciais (em um primeiro momento menor volume). O próprio Supremo Tribunal Federal (STF), com a quarentena, adotou as audiências virtuais com a sustentação oral de advogados a distância.

Essa adoção não se deu pelos aspectos positivos desta audiência virtual, mas sim, pela necessidade causada pela pandemia — e, portanto, pelos motivos errados. Mas, apesar disso, a experiência está sendo positiva, pois facilita o acesso à Justiça, dá maior celeridade ao processo, diminui os custos ao erário e oferece maior agilidade às agendas dos magistrados e advogados. Porém, há grandes desafios como infraestrutura, capacidade técnica dos usuários e do sistema como um todo, bem como da legislação nacional. É uma realidade que bate à porta. Agora, é questão de o sistema se adequar à nova realidade.

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