Novo coronavírus não é cheque em branco para contratação emergencial
Em tempos de pandemia causada pelo novo coronavírus, muito tem sido escrito a respeito de suas consequências no âmbito das relações contratuais. No Direito Civil, o instituto que se encontra mais em voga é o da força maior – presente no artigo 393 do Código Civil – possível causa de excludente de responsabilidade, de necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro e, quiçá, de rescisão contratual a depender de suas implicações no caso concreto.
No âmbito do Direito Administrativo, diversas manifestações também têm relacionado a covid-19 como possível causa de reequilíbrio econômico-financeiro, apenas que com fundamento no artigo 65, inciso II, alínea ‘d’, da Lei de Licitações. Nessa seara, há ainda um outro tema bastante relevante, mas que tem sido menos badalado: as contratações emergenciais.
A par de o nosso ordenamento ter como regra para as contratações públicas a realização de procedimento licitatório, a própria lei excepciona a regra em algumas hipóteses, de modo a conferir maior agilidade ao Poder Público – seja por razões de ordem técnica, seja mesmo por questões de ordem prática. A calamidade pública é uma dessas hipóteses excepcionais, conforme previsto no artigo 24, inciso IV, da Lei de Licitações.
A covid-19 já se configura como calamidade pública de fato, sendo causa de diversas medidas restritivas: de locomoção, de exercício de atividade privada e também de direito, posto que assim declarada em âmbito nacional por meio do Decreto Legislativo nº 6/2020. Desse modo, parece de todo razoável reconhecer fundamento para as contratações emergenciais. Tanto assim, isso foi explicitado no artigo 4º, caput, da Lei nº 13.979/20.
Limites para contratações emergenciais
A situação de calamidade pela qual passa o país – na verdade, o mundo – exige a adoção célere de medidas. A contratação direta é realmente mais adequada para atender ao interesse público. Prova disso são o artigo 4º-A da Lei 13.979/20, que permite a compra de equipamentos que não sejam novos e, principalmente, os artigos 4º-C e 4º-E do mesmo diploma legal (e também inseridos pela MP nº 926), os quais permitem contratações sem a realização de estudos preliminares quando se tratar de bens e serviços comuns mediante a elaboração de termo de referência simplificado. Todos esses dispositivos foram introduzido pela medida provisória (MP) 926/20.
Ainda assim, isso não pode ser considerado um “cheque em branco” para o Poder Público e para os particulares que com ele contratam.
O primeiro e importante limite a ser observado é o de que as contratações emergenciais devem ficar restritas aos bens e serviços absolutamente indispensáveis para o atendimento das necessidades relacionadas com a situação de calamidade pública. Esse cenário não autoriza a contratação direta de todo e qualquer bem e/ou serviço, mas apenas daqueles que tenham por objetivo, por exemplo, propiciar o atendimento médico da população (compra de medicamentos, equipamento, etc).
O segundo limite que se encontra muito claro na Lei de Licitações é o prazo de vigência de 180 dias para a contratação realizada sob o regime emergencial, vedada a prorrogação. Ainda que a estipulação desse prazo possa ser criticada pelo fato de que a situação de calamidade pública normalmente não possui “data de validade”, podendo ultrapassar o prazo legal, o fato é que o texto expresso da lei deixa pouca margem para interpretação.
Adequações à lei em tempos de pandemia
A recém editada Lei nº 13.979/20, contudo, traz algumas mudanças. Além de trazer no §1º do artigo 4º a mesma restrição de ordem conceitual, explicitando que as contratações devem perdurar somente durante o período de calamidade, ela indicou expressamente no artigo 4º-H (inserido pela MP 926) que o prazo de duração dos contratos deverá ser de no máximo 6 meses. São possíveis, ainda, prorrogações sucessivas enquanto perdurar o cenário – o que afasta, pelo menos para essa calamidade pública, a problemática do prazo estipulado pela Lei nº 8.666/93.
De todo modo, pode ocorrer de a situação de calamidade não durar todo esse período. Por essa razão, pode ser interessante para ambas as partes – Poder Público e contratados privados – inserir nos contratos de trato sucessivo cláusulas que estipulem como causa da rescisão antes do prazo de 180 dias o término da situação emergencial.
Além dessas balizas legais objetivas, não apenas o Poder Público, mas também os particulares que com ele contratam sob o regime emergencial devem tomar cuidados adicionais. Isso porque, passada a calamidade, os órgãos de controle fiscalizarão todos os atos praticados. A demonstração de zelo pelo interesse público certamente será levada em consideração pelas entidades de fiscalização.
Cuidados com a instrução dos processos administrativos
Mesmo que o artigo 4º-B da Lei nº 13.979/20 (introduzido pela MP nº 926/20) tenha expressamente declarado que presumem-se atendidas as condições de ocorrência de situação de emergência; necessidade de pronto atendimento da situação de emergência; existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência, o maior cuidado precisa ser com a instrução dos processos administrativos.
É preciso que esteja muito bem documentado que o objeto da contratação é não apenas essencial para o atendimento da situação de calamidade, mas sobretudo decorrente daquela situação excepcional, e não uma desídia da autoridade, que poderia ou deveria ter adotado a medida no momento adequado. Tudo isso para evitar que, no futuro, os particulares sejam acusados de atos de improbidade administrativa em conjunto com os agentes públicos.
Os particulares precisam ficar atentos à adoção, por parte do Poder Público, dos atos necessários à comprovação da economicidade, uma vez que a situação de calamidade não significa um “cheque em branco” para qualquer contratação a qualquer preço. A economicidade precisa ser observada também nas contratações diretas, e pode ser demonstrada com pesquisa de valores ou mediante a utilização de tabelas de referência, caso existentes, tal qual previsto no artigo 4º-E da Lei 13.919/20, incluído pela MP 926/20.
Nesse ponto específico, a instrução pode ficar ainda mais robusta se, após a pesquisa de preços, o Estado buscar negociar alguma melhoria de preço ou condições. Todo esse processo de ocorrer de forma célere, como a situação de emergência exige, porém com a cautela que o bom administrador deve ter.
Dito isto, penso que as faculdades contidas nos §§2º e 3º do artigo 4º-E da Lei nº 13.979/20, no sentido de que “excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, será dispensada a estimativa de preços” e as contratações podem ser feitas por valores superiores aos estimados em decorrência de variações do mercado, devem ser utilizadas com absoluta parcimônia para evitar futuras responsabilizações. Em resumo, o que se quer dizer é que, mesmo diante das necessidades prementes decorrentes da situação de calamidade pública, o Poder Público e os privados que com ele contratam não podem deixar de tomar todas as precauções necessárias à comprovação da regularidade da contratação.
Além de ser uma questão de resguardo do interesse público, isso também deve ser feito para robustecer defesas em eventuais processos administrativos. Ao assim agirem, fornecerão elementos para que, dentre outras coisas, seja aplicado o artigo 22 e seu §1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, cujo preceito diz que devem levados em conta pelos órgãos de controle os obstáculos e as dificuldades reais do gestor – isto é, as circunstâncias práticas que limitaram ou condicionaram a ação do agente público em dado momento.