O dia seguinte da criminalização do ICMS próprio declarado e não pago: como interpretar o novo tipo penal — Parte 2
Na parte 1 deste artigo, foram colocados os problemas nascidos da criação de um novo tipo penal — referente ao ICMS próprio declarado e não pago — pela via jurisprudencial. Ali problematizaram-se os possíveis sentidos de contumácia, o dolo de se apropriar, a questão do que se está a apropriar e de quem.
Apresento, agora, como conclusão, como se pode interpretar o novo delito.
O ornitorrinco punitivo representado por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ)1, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF)2, como detalhado na primeira parte deste artigo, foi parido na fauna legal brasileira, e já procria. Toca à doutrina, assim, buscar dar-lhe mínimos contornos de legalidade.
Por enquanto, é um exercício de exclusão de possibilidades interpretativas, algo como um exercício de heurística negativa.
No campo da contumácia, o critério a ser empregado deve partir do oferecido pela UF, mas não deve com ele se confundir. Já que a legalidade foi jogada às traças, é preciso ao menos lhe conferir sentido de garantia, ou seja, o conceito administrativo de devedor contumaz é o ponto de partida, o mínimo para que se possa falar em contumácia criminal. É critério necessário, mas não é suficiente.
Como o STF criou um tipo tributário, então o sujeito passivo direto desse crime é o Estado, por coerência. Ainda, já que nesse caso o Estado é, em verdade, uma representação a fórceps de todos os consumidores de fato lesados pela apropriação do ICMS próprio destacado e não pago, e que a ofensa ao bem jurídico é medida em bloco, pela consolidação do tributo declarado como devido e não pago, é forçoso que também se agregue a seguinte variável: a existência de crédito do contribuinte perante a UF.
Juízo negativo
O racional para a decisão do STF é um juízo negativo — e justo, diga-se — àqueles que sistematicamente se financiam pelo inadimplemento de ICMS próprio. Igualmente justo deveria ser o juízo negativo ao Estado caloteiro que cria diversas formas institucionalizadas de descumprir o seu dever de repetir indébitos, ou de compensar tributos, seja pela via de precatórios, seja pela omissão em dar seguimento a procedimentos administrativos de compensação tributária.
Discordo do uso desse tipo de juízo para o campo penal; mas se o STF assim decidiu, deve, por coerência, descontar o quanto o Estado caloteiro deve ao contribuinte devedor contumaz, para fins de aferição do novo tipo penal. Um peso, uma medida.
No campo do dolo de se apropriar, é preciso aferir se, realmente, o valor destacado e não recolhido foi destinado ao contribuinte de fato. Em outras palavras, se houve efetivo dolo de obter benefício econômico aos sócios da pessoa jurídica. Assim, é forçoso considerar a quantidade, em bloco, de inadimplemento por parte dos contribuintes de fato.
Ainda que haja descasamento temporal, decorrente do regime de competência, a contumácia exigirá o inadimplemento médio de cinco ou seis não recolhimentos, o que permite enxergar uma média tanto da sonegação quanto dos inadimplementos pelos contribuintes de fato. Essa média daria algum nível de segurança de que, naquele período, haveria uma alta convergência entre calotes dos clientes, de um lado, e apropriação de ICMS, de outro.
A lógica aqui é trivial: só é possível agir com ânimo de se apropriar aquele que recebeu o bem da vítima. Logo, só pode haver crime quando aferido se houve montante efetivamente apropriado dos contribuintes de fato.
Cuida-se de exercício de aferição de potencialidade lesiva do novo tipo penal, fruto direto da combalida regra da legalidade. Ainda que mantido o entendimento de ser um crime formal, a conduta deve ser apta, ex ante, a ofender o bem jurídico protegido. Trocando em miúdos: quando o inadimplemento da pessoa jurídica não guardar relação com o montante descontado dos contribuintes de fato, então não se deu o novo tipo penal. A essa conclusão só pode chegar — ou se aproximar com um mínimo de segurança — por meio desse encontro de contas.
Exemplo prático
Imagine um vendedor de cadeiras que, nos últimos 12 meses, vendeu, a cada mês, 100 cadeiras a 1 mil reais, em dez parcelas de 100 reais. Mês a mês, teve de recolher arredondados 21 mil reais, imaginando uma alíquota de 18%. Considere-se, ainda, que na aquisição dos insumos, creditou-se de 13 mil reais. Deve, assim, recolher 5 mil reais a título de ICMS. Suponha-se que, por descontos em negociações com devedores e calotes, não entraram no caixa daquela empresa os 100 mil reais médios esperados (100 vezes 1.000), mas 50 mil reais. Houve, na realidade sensível, a percepção não de 18 mil reais mensais a título de ICMS dos contribuintes de fato, mas de 9 mil reais. Aos olhos do fisco, em caso de inadimplemento desse vendedor, ele seria de 8 mil reais (21 mil reais de débito, descontados os 13 mil reais de créditos). Na prática, porém, apenas 50% das operações lançadas foram de fato de quitadas, o que inverteria a verdade dos fatos: o vendedor teria um crédito de 4 mil reais (9 mil reais de débitos “de verdade”, descontados os 13 mil reais de crédito). Dar contornos criminais a esse fato seria rematado absurdo.
Por fim, é preciso haver intenção de ganho econômico por meio do inadimplemento, por força do animus rem sibi habendi. Bem verdade que há precedentes excluindo a tipicidade dos crimes tributários formais em caso de penúria econômica — aferível, entre outros, pela ausência de distribuição de lucros ou dividendos aos sócios/acionistas, amparado em perícia ou equivalente, em situação pré-falimentar. Esse, no entanto, é um tema de culpabilidade, de inexigibilidade de conduta diversa. A régua, para fins de tipicidade, há de ser menos rigorosa, por coerência.
Soluções viáveis
É evidente que a melhor solução seria a mudança de entendimento da jurisprudência, pelos incontáveis erros apontados do referido caso, ou alteração legislativa, com claros contornos típicos. Enquanto isso não ocorre, a contumácia deve ser empregada a partir dos critérios administrativos, não como critério suficiente, mas necessário do quanto seja devedor contumaz. A ela, devem-se agregar eventuais créditos que o devedor tenha perante a UF, independentemente da efetiva compensação, já que está a se aferir a conduta criminal, e não tributária do agente.
Em se tratando de delito motivado pelo ânimo de apropriação, é preciso aferir se efetivamente há bem a se apropriar, recebido pelo agente econômico pelos consumidores/tomadores de serviço, aferível por meio de um encontro de contas que considere o inadimplemento médio e os descontos negociais; além da intenção de realização de ganho econômico aos sócios/acionistas por meio do inadimplemento de ICMS próprio, alçado a essa forma torta de apropriação pelo STF.
1 HC 399.109
2 RHC 163.334