O dia seguinte da criminalização do ICMS próprio declarado e não pago: como interpretar o novo tipo penal — Parte 1
Surpreendeu a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ)¹, posteriormente confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF)², de criminalizar o não pagamento de ICMS próprio, embora corretamente declarado. A tese ficou assim redigida: o contribuinte que de forma contumaz e com dolo de apropriação deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, inciso II, da Lei 8.137/90.
Há muitos erros nas decisões. Destaco aqui o principal: não é dada aos tribunais a prerrogativa de criação de tipos penais, conforme os artigos 5o e 22 da Constituição Federal. É mais um triste exemplo do ativismo judicial, que transforma atos imorais ou ilícitos administrativos em crimes.
O fato é que a tese existe e já vem sendo aplicada, inclusive em casos de grande repercussão nacional.
Cabe, então, perguntar: como operacionalizar o tipo criado pelo STF?
Conceito de contumácia
Contumaz quer dizer costumeiro, habitual, em sentido ordinário, mas remete a pelo menos dois conceitos jurídicos — um penal, outro tributário.
No campo penal, várias figuras são dedicadas à reiteração de condutas: o concurso material e sua variação, o crime continuado; os delitos permanentes; e os delitos habituais. Nos delitos permanentes, de maneira simplificada, há uma única ação ou omissão, com continuada afetação ao bem jurídico protegido (a exemplo do sequestro). No concurso material, existe um conjunto de condutas instantâneas, todas elas criminosas, que levarão à soma das penas (no concurso material) ou ao aumento de uma delas, a mais grave, quando houver identidade tal de circunstâncias, que “devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro”, conforme art. 71 do Código Penal (CP).
O delito habitual requer a reiteração de condutas que, isoladamente, não são crimes, e é precisamente do adensamento dessas condutas que surge a tipicidade — a exemplo do rufianismo e do curandeirismo. Nilo Batista, com costumeira precisão, o aproxima do crime complexo (como o latrocínio, que amalgama os crimes de roubo e homicídio), porém diferenciáveis sob o ângulo da temporalidade: “No crime habitual, as condutas se agregam diacronicamente, e no crime complexo, sincronicamente: em ambos os casos, contudo, as (pelo menos) duas devem estar presentes para que a tipicidade habitual ou complexa se perfaça”³.
Tal como desenhado o novo tipo penal pelo STF, portanto, cuida-se de tipo habitual.
Não existe, porém, nos delitos habituais uma quantidade mínima de reiterações para que a referida tipicidade se atinja. Há, inclusive, quem agregue um critério subjetivo para esse fim: que o agente realize o fato como um modo de vida.
Por se tratar de crime tributário, todavia, a assessoriedade administrativa remete o intérprete aos conceitos tributários. Aqui o segundo sentido jurídico relevante, para este artigo, de habitualidade: diversos estados definiram o conceito de devedor contumaz, agregando, preponderantemente, o vetor reiteração (um certo número de omissões em pagar ao longo dos últimos 12 meses) ou o vetor importância no inadimplemento (uma porcentagem do faturamento, por exemplo).
A solução parece sedutora, mas gera diversas dificuldades.
Levantamento feito por um grupo de alunos da Escola de Direito da FGV/SP⁴ revela que sete estados não regulamentaram o tema: Acre, Amapá, Mato Grosso do Sul, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins. O Amazonas menciona o conceito em decreto, mas não o define⁵. O Ceará, por sua vez, parece empregar o conceito do Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos (Cira) para a identificação de devedores contumazes⁶, isto é, aquele que tem débito de ICMS próprio declarado e não pago, inscrito na dívida ativa referente a quatro períodos, consecutivos ou não, no período de 12 meses.
Goiás restringe o conceito ao vetor temporal: é devedor contumaz aquele que deixar de recolher o ICMS por quatro meses seguidos ou oito meses intercalados nos 12 meses anteriores ao último inadimplemento ou tiver crédito tributário inscrito em dívida ativa relativo ao ICMS próprio declarado e não recolhido no prazo legal que abranger mais de quatro períodos de apuração. No estado, é de 100 mil reais o valor mínimo total para submissão ao sistema especial de controle, fiscalização, apuração e arrecadação, conforme previsto na Lei 19.665/17.
A média do número necessário de reiterações consecutivas para fins de contumácia é de 5,5 meses, sendo 6 a moda num universo de 17 estados. Pernambuco, Bahia, Alagoas e Rio Grande do Norte exigem apenas três, ao passo que o maior número encontrado (oito) refere-se aos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, Paraíba, Maranhão e Pará.
A média de reiterações não consecutivas é 6,3, com moda de oito meses (em oito dos 17 Estados). Bahia e Alagoas exigem apenas três, ao passo que Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, Paraíba, Maranhão, Pará, Mato Grosso e Goiás exigem oito.
Quanto ao vetor do montante inadimplido, tem-se média de 529,476 mil reais, mas esse número não diz muito, já que Ceará, Sergipe, Paraná, Pará, Espírito Santo e Distrito Federal não lidam com valores absolutos. A moda dos estados que usam como critério de patrimônio do inadimplente é de 30%, e de faturamento, 25% e 30%. Em verdade, todas as dez Unidades da Federação (UF) que se valem do patrimônio empregam o critério de 30% (São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Maranhão, Bahia, Alagoas e o Distrito Federal). Seis estados empregam o critério de 25 % para o faturamento (São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Maranhão e Bahia) e outras seis UFs fixam o valor em 30% (Sergipe, Rio Grande do Norte, Paraná, Paraíba, Alagoas e o Distrito Federal). Anote-se que Santa Catarina apresenta uma peculiaridade nos critérios de valor, estabelecendo a contumácia quando a empresa “tiver créditos tributários inscritos em dívida ativa, relativamente à totalidade dos seus estabelecimentos neste Estado, em valor superior a R$ 20.000.000,00.”
A confusão levaria a não apenas que o fato típico mudasse de contornos a depender do estado, mas também a uma flutuação sem precedentes do que e do quanto se está a proibir.
Há um projeto de lei em trâmite da Câmara dos Deputados desde 2019 (PL 1.646) que pretende definir devedor contumaz como “o contribuinte cujo comportamento fiscal se caracteriza pela inadimplência substancial e reiterada de tributos”⁷. De pouca serventia, como se vê, para fins de segurança e clareza que se espera de tipos penais.
O dolo de se apropriar
O dolo de se apropriar é um velho conhecido dos penalistas, muitas vezes empregado em latim: animus rem sibi habendi. Nelson Hungria ensinava que “a apropriação pressupõe, conceitualmente, a intenção definitiva de não restituir a coisa ou desviá-la do fim para que foi entregue, ou a ciência de que se torna impraticável uma coisa ou outra”⁸.
Qual seria o problema de exigir esse dolo no caso em estudo?
A intenção de inverter o título a que o bem foi recebido, dele dispondo como se dono fosse, remete a um crime material, ou seja, um crime que só se aperfeiçoa com a superveniência de um resultado. O novo tipo penal, entretanto, é crime de infração de dever — o de não recolher aos cofres públicos o montante descontado ou cobrado, no prazo legal. Um crime formal, portanto.
Os crimes tributário podem, grosso modo, ser reunidos em três grandes grupos: os de fraude, com o sem redução de crédito tributário; os de quebra de dever; e os destinados à administração, na cobrança de tributos.
E há uma razão muito simples para o fato de não haver crime tributário material sem o manejo de fraude: não se pode criminalizar o mero inadimplemento. Eis o segundo erro brutal cometido pelo STF.
O erro em vincular o dolo de se apropriar a um crime formal deve-se, em parte, ao mau uso do termo apropriação, nos crimes de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP) ou de apropriação indébita tributária (art. 2o, II, da Lei 8.137/90). Nem um nem outro é crime de apropriação, já que o centro de gravidade desses tipos não está no locupletamento do valor inadimplido, mas na quebra do dever de repassá-lo aos cofres públicos. O desvalor, como se diz no jargão, está na ação, e não no resultado (como nos crimes materiais).
Apropriar-se de quê?
O ICMS atende ao regime de competência, isto é, considera o fato gerador no período de sua realização, independentemente do momento do pagamento. Assim, a venda efetuada hoje já fará nascer a pretensão arrecadatória do Estado e, com isso, o dever de recolhimento do ICMS.
A venda de hoje, no entanto, será ou não adimplida no futuro.
O destaque de ICMS na nota é, em verdade, uma ficção. Assume-se que o pagamento sobrevirá, mas o dever de recolher o ICMS próprio já existe. Aos olhos de um criminalista, não se está tributando a venda, e sim a oferta à venda. Um fato gerador de Schrödinger.
Empregando o conceito do STF no malfadado caso em análise, de que o inadimplente contumaz de ICMS próprio está se apropriando do tributo pago pelo contribuinte de fato (o consumidor), então há um claro descompasso temporal entre o fato gerador — e, com isso, o dever tributário — e o resultado criminal, a apropriação. Só pode se apropriar o acusado do montante do contribuinte de fato quando houver inversão do bem (ICMS destacado) que o referido contribuinte “transferiu” ao acusado; isso só ocorre quando há o adimplemento pelo bem ou serviço.
Apropriar-se de quem?
São tantas as impropriedades no caso que fica mesmo difícil dissecar o novo tipo penal.
Nesse ponto, a quem teve paciência para chegar até aqui, fica claro que no delito de apropriação o sujeito passivo (comumente chamado de vítima) é o contribuinte de fato, e não o Estado.
A apropriação pelo contribuinte “de verdade” do tributo, a vitimar o Estado, sem o uso de fraude, se chama inadimplemento tributário.
No desenho criado pelo STF, há um descasamento de aferição entre o inadimplemento tributário (aferível regularmente, em bloco, na compensação entre créditos e débitos de ICMS próprio) e o eventual inadimplemento, individualizado, pelo contribuinte de fato. Em outras palavras: não é possível medir se e em que medida o tributo inadimplido pelo realizador do fato gerador corresponde à efetiva apropriação dos tributos pagos, de maneira embutida no preço, pelo contribuinte de fato (consumidor ou tomador de serviço).
Na sua segunda parte, este artigo tratará especificamente do tratamento que deve ser dado ao tipo penal criado pelo STF.
¹ HC 399.109
² RHC 163.334
³ BATISTA, Nilo. “Crime habitual impróprio”: notícia de um fracasso que virou sucesso. In: Estudos críticos sobre o sistema penal. Organização de ZILIO, Jacson Luiz; BOZZA, Fábio da Silva. Curitiba: LedZe, 2012, pp. 919 e 920.
⁴ Foram eles, para quem registro os créditos e os agradecimentos, Ana Carolina de Mello Said de Moraes, Anna Flávia Magalhães Brito, Carolina Fernández Vidal, Enzo Silveira Fernandes, Giulia Dutra Mattioli, Isabela Reiter Santos, Joana Elisa Loureiro Ferreira Guilherme, João Pedro de Souza, Luiza Pontes Corrêa, Marília Augusta Polachini da Silva, Paloma Batt, Rafaella Teixeira Pereira, Roberto Sergio de Pinho Peralta Junior e Stella Ferreira dos Santos.
⁵ A Portaria Conjunta nº 0010/2015 – GSEFAZ/GPGE tem o conceito de devedor contumaz, mas não uma definição. Portaria disponível em: http://online.sefaz.am.gov.br/silt/Normas/Legisla%C3%A7%C3%A3o%20Estadual/Portaria%20GSEFAZ_GPGE/Ano%202015/Portaria%20GSEFAZ-GPGE%20%20010_15.htm>.
⁶ Consta notícia sobre operação do MPCE, falando dos critérios do Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos (CIRA) para a identificação de devedores contumazes. Notícia disponível em:< https://www.fenafisco.org.br/noticias-fenafisco/item/item/5473-estado-quer-reaver-r-90-milhoes-de-23-principais-sonegadores-de-icms-no-ceara>.
⁷ Na exposição de motivos, há maior explicação do que se trata o devedor contumaz, sendo: a inadimplência substancial e reiterada de tributo ficará configurada quando constatada a existência de débitos de valor igual ou superior a 15 milhões de reais, em nome do próprio devedor ou de pessoa integrante do grupo econômico ou familiar. Além disso, as condições para a instauração de procedimento administrativo, incluindo fraude estruturada e utilização de laranjas, estão no art. 2º.
⁸ HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol. VII, Rio de Janeiro, Forense, 1955. p. 131.