O despautério na tributação das doações para combate à covid-19
Em sua obra “Por que a Guerra?”, dizia Freud serem os instintos humanos de dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir (instintos eróticos) e aqueles que tendem a destruir (instintos agressivos). Na sua teoria mitológica, Freud identifica a fórmula para combater a guerra, explicando que “se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros” — ou seja, os instintos eróticos, os quais contemplam tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens.
Em catástrofes, afloram anjos e monstros. É por isso que Sandel, em “Justiça”, recomenda lei contra preços abusivos, como a praticada no estado da Flórida, nos Estados Unidos, após a passagem do furacão Charley. Em situações de emergência, as instituições devem promover a união (Eros) para favorecer os laços emocionais entre os homens e proteger os necessitados dos infortúnios e da exploração. As instituições modeladas pelo Estado devem incentivar, em momentos de crise, a solidariedade, a integração, os gestos de altruísmo.
Como determina o artigo 1º da Constituição de 1988, a dignidade da pessoa humana é fundamento da República, que tem como objetivo fundamental (artigo 3º) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Em homenagem a esses pilares, deve o Estado edificar instituições que favoreçam a integração e a solidariedade, sobretudo em momentos mais conturbados. Essa é uma determinação constitucional e um imperativo moral.
Em meio à recente pandemia, muitas empresas tentaram doar bens e serviços para a coletividade. Seja por questões de marketing, seja por instintos eróticos, é certo que o Estado, em crise e sem recursos, não pode abrir mão dessas iniciativas.
Um dos casos mais interessantes é o de uma grande empresa que estudava a possibilidade de doar respiradores para minimizar os efeitos da covid-19, mas que foi obrigada a abandonar o projeto porque teria de pagar tributos sobre os bens doados.
Trata-se de uma ofensa cabal à ideia mais elementar de solidariedade social. Ao custo do bem, deveriam ser adicionado os “custos tributários” — ocasionados, por exemplo, pela impossibilidade de se deduzir as despesas com a compra dos equipamentos da base de cálculo do imposto de renda (IRPJ) e da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL), mesmo diante de uma situação de calamidade pública declarada. Nesse caso, ou se está diante de uma despesa de marketing, ou se está inconstitucionalmente tributando a caridade. Seja pelo lado que se olhar a questão, a tributação, nessas situações, é teratológica.
Os intérpretes mais formalistas foram obrigados a adverti-la que o artigo 534 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR) estabelece que, para a caracterização de patrocínio, deve haver uma relação necessária entre o dispêndio financeiro realizado pelo patrocinador e sua efetiva utilização na realização de projetos culturais. Como a companhia pretendia auxiliar no tratamento de infectados, a hipótese não estaria atendida.
A opção seria o enquadramento da transferência como despesa relacionada à publicidade (faceta agressiva) — que, nos termos do artigo 54 da Lei 7450/85, são dedutíveis da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, optantes pelo lucro real. Acontece que o artigo 380 do RIR de 2018 determina que são admitidas como despesas de propaganda tão somente aquelas que estejam diretamente relacionadas com a atividade explorada pela empresa, bem como que respeitem o respectivo regime de competência. Nada feito: por esse caminho, incidiriam tributos, pois o repasse dos valores não se vincularia diretamente à atividade explorada.
Tanto o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) — através do Acórdão 1301003.676 — quanto a Receita Federal — pela Solução de Consulta DISIT/SRRF08 8.030/2016 — corroboram esse entendimento e são pela necessidade do cumprimento dos requisitos legais estabelecidos pelo regulamento. A exceção é se a recebedora fosse uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP); nesse caso, seria possível a dedução limitada a 2% da receita bruta anual. Existem alguns programas de incentivo a captação de recursos com doações dedutíveis, mas não há essa possibilidade para a área de saúde.
Na verdade, uma interpretação mais ortodoxa e literal parece mesmo conduzir ao absurdo. A tributação de doações para compra de respiradouros se presta para inibir o doador de assim proceder e, portanto, afronta a humanista e solidária face da Constituição. Desfavorecer a doação é o mesmo que atacar o princípio da solidariedade e da dignidade da pessoa humana, pilares fundamentais do edifício constitucional.
É teratológico interpretar a Constituição fazendo os mais carentes sofrerem, mesmo sem atentar contra a segurança jurídica. É absurdo o entendimento que privilegia a inibição do doador no favorecimento dos necessitados. Isso seria o mesmo que prejudicar o povo sofrido e doente em um momento de penúria e necessidade. Como interpretar uma norma em contradição com a ideia de solidariedade? Como privilegiar um entendimento que ofende o princípio fulcral da dignidade da pessoa humana?
Tributar doações é retirar a migalha de quem mais precisa porque é evidente que, ao doar algo (X) que sofre a incidência de tributação (T), o (pseudo) contribuinte despende um valor maior (X+T). Poderia doar X+T, se essa é sua disponibilidade de recursos, mas apenas X pode ficar com quem precisa. A tributação repercute, assim, no necessitado, o qual recebe apenas X e deixa de receber T, que fica nos cofres do Estado. Em última análise, quem mais precisa paga tributos com migalhas doadas — ou seja, o necessitado paga, afinal, T (ou deixa de receber o montante T, o que dá no mesmo).
Tributa-se a migalha que se doa e o tributo repercute no mais carente, em um momento de necessidade. Essa é a tributação da tragédia, a tributação do sofrimento. Trata-se de uma contradição causada por uma interpretação mais formalista e estéril.
Tributar a doações é tributar o miserável e o sofrimento, em momentos de aflição. Traduz a tributação, de fato, de quem não tem capacidade contributiva: é confiscar a migalha de quem nada tem. Trata-se de um confisco de recursos que fere, antes de tudo, o espírito solidário preconizado pela Constituição de 1988. Ao se tributar uma empresa que está doando respiradores, o resultado final redunda na redução do número disponível de equipamentos fundamentais para salvar vidas. Nesse caso, paga-se tributo com vida e se cobra a alíquota da morte.
O cenário é excepcional — exige-se mais do que uma leitura formalista da norma. Os princípios fundamentais da Constituição de 1988 pedem mais do intérprete. Se a calamidade pública foi declarada e é notório que existe uma grave carência de equipamentos, é indubitável que as empresas que fazem essas doações estão fornecendo recursos necessários e vitais para o momento, atuando verdadeiramente como instituições de assistência social.
Nos termos do artigo 150, VI, da Constituição 1988, é vedado instituir impostos sobre patrimônio, renda ou serviços de instituições de assistência social sem fins lucrativos, desde que atendidos os requisitos da lei. A empresa que doa respiradores que salvam vidas atuam sem o intuito de lucro e praticam indubitável ação de assistência social. Disso ninguém duvida. Quanto aos requisitos legais, o país está em estado de calamidade pública, legalmente reconhecida. Requisitos legais devem ser atendidos em seu espírito; a Constituição não reclama a obediência a formalismos estéreis, sobretudo em momentos de crise.
A quase esquizofrênica voracidade por receitas atropela as formas e se apega dogmaticamente à máxima “substância acima da forma” no combate ao planejamento tributário. Não pode a administração pública, em um momento de calamidade, agarrar-se a premissas e paradigmas diametralmente opostos e antagônicos, lastreando-se em fundamentos, no mais das vezes, estritamente formais, com total desprezo à essência material da norma, criando um inusitado, conveniente e paradoxal apotegma: não importa a substância, mas sim a forma.
A finalidade da norma constitucional é cumprida com doações e a empresa que doa pratica assistência social. Por outro giro, o bem comum apenas é atendido se não incidirem tributos. Quanto aos requisitos legais, a decretação de calamidade deve substituir todos os estéreis formalismos em respeito à gravidade da situação. E nem se diga que se trata de isenção que mereça interpretação “literal”, porque se está diante de uma imunidade — que, no caso concreto, favorece a garantia do direito fundamental à vida. A propósito, a interpretação da norma constitucional deve favorecer a observância dos direitos fundamentais.
Além de desarrazoada, a tributação das doações, nessa situação, ofende ao bom senso e é, antes de tudo, ilógica. O direito deve prestigiar a solidariedade humana e as instituições devem favorecer a união e a integração social. O imposto sobre doações que salvam vidas, em situação de calamidade, antes de tudo, é um tributo cruel. É uma taxação que gera morte. É um imposto ordenado por Tanatos, não por Eros.
*O artigo é de co-autoria de Onofre Batista, sócio do Coimbra & Chaves Advogados e afiliado ao Legislação & Mercados.