O cenário econômico da pandemia e a ineficiência do sistema tributário

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O cenário econômico decorrente da pandemia do novo coronavírus tem gerado uma verdadeira corrida para impulsionar a aprovação de projetos de leis no Congresso Nacional e nas assembleias estaduais. De um lado, há uma piora generalizada na situação econômica; do outro, como decorrência da crise, uma devastadora redução na arrecadação das finanças públicas e, simultaneamente, um brutal aumento dos gastos públicos. “Tempestade perfeita”, como dizem os economistas.

Apesar de ser extremamente indigesto e politicamente negativo, um iminente aumento da carga tributária é algo que parece inevitável. Provavelmente teremos que enfrentar essa discussão nos próximos meses como forma de amenizar o desequilíbrio fiscal desencadeado pela crise decorrente da covid-19.

O debate nas últimas semanas trata dos tributos que podem ser os primeiros da fila para aumento de carga ou criação de novas incidências. Daremos destaque aqui ao imposto sobre grandes fortunas (IGF) e ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD).

O IGF já está previsto na Constituição Federal desde sua promulgação, em 1988, mas nunca teve sua regulamentação efetivada, pois necessita de uma lei complementar federal para ser implementado. Atualmente, tramitam quatro projetos de lei (PLs) no Senado: PLS 315/2015, PLP 183/2019, PLP 38/2020 e PLP 50/2020, cada qual com suas peculiaridades e parametrizações técnicas. É uma tributação de difícil definição de critérios e as experiências em outras partes do mundo mostram que a arrecadação dificilmente atinge valores relevantes, além de a gestão causar enormes discussões — e até a fuga de contribuintes. De qualquer maneira, politicamente, esse é um tema de muita atratividade, especialmente nos cenários de agravamento da desigualdade social. A base de contribuintes seria equivalente a 0,09% do total de pessoas físicas, mas a arrecadação poderia atingir 40 bilhões de reais anuais, segundo projeções da  Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (FenaFisco).

Apesar do apelo e das circunstâncias, parece ser bastante difícil viabilizar sua aprovação, embora tenha ganhado corpo uma proposta de criação de modo temporário — acredite quem quiser — somente para colaborar no reequilíbrio momentâneo das finanças federais. Essa proposição está no PLP 183/2019, em tramitação mais adiantada no Senado, e prevê alíquotas de 0,5% a 1,0% sobre patrimônios superiores a 22,8 milhões de reais, valor  equivalente a 12 mil vezes o limite de isenção do imposto de renda da pessoa física (IRPF).

Os demais projetos trazem propostas de incidência anual e permanente, com alíquota de 1% sobre patrimônios acima de 50 milhões de reais (PLS 315/2015); incidência apenas durante o período de calamidade, com alíquota de 0,5% sobre patrimônios superiores a 50 mil salários mínimos (PLP 38/2020); e incidência enquanto perdurar o teto de gastos do Governo Federal — previsto na Emenda Constitucional 95/2016 —, com alíquotas de 0,5% a 1,0% sobre patrimônios superiores a 12 mil vezes o limite de isenção de IRPF (PLP 50/2020). 

No PLP 50/2020, há também a proposição de criação de um empréstimo compulsório a ser destinado ao combate do novo coronavírus, de incidente imediata já em 2020 sobre as chamadas “grandes fortunas”: ele seria devolvido posteriormente, corrigido pela taxa referencial (TR), enquanto o Imposto sobre IGF passaria a incidir apenas em 2021. Vale lembrar que a criação do tributo sobre grandes fortunas deverá respeitar os limites constitucionais, os quais exigem que sua cobrança se dê somente no ano seguinte ao da criação e com um prazo mínimo de 90 dias entre a promulgação da lei e o início da cobrança.

Já com relação ao ITCMD — tributo devido aos estados sobre as transmissões de patrimônio por morte ou doação —, hoje tramitam pelo menos dois projetos de lei buscando a majoração da alíquota do imposto no estado de São Paulo. O PL 250/2020, projeto de lei mais recente, pretende instituir alíquotas progressivas, com alíquota máxima de 8%, aplicadas sobre uma base cálculo superior a 90.000 UFESPs (correspondentes a R$ 2.484.900,00 em 2020) e extinguir a redução de base de cálculo para instituição de usufruto. Isso representaria um incremento de 100% sobre a alíquota máxima atual, que é de 4%. Outros estados, como Rio de Janeiro, Mato Grosso, Goiás e Tocantins, já aumentaram a suas alíquotas de ITCMD, passando a aplicar a máxima permitida pelo Senado, de 8%. Nas tramitações anteriores de projetos semelhantes na Assembleia Paulista, a decisão foi sempre no sentido de arquivar o projeto de lei, com o entendimento de que tal proposição de mudança legislativa é prerrogativa exclusiva do Executivo e não poderia ter seguimento por iniciativa de deputados, como é o caso desse PL 250.

Cabe lembrar que os estados podem estabelecer suas alíquotas, conforme limite definido pela Resolução 9/1992 do Senado, a qual atualmente prevê o máximo de 8%. Há proposições de aumento desse limite — como a do PRS 57/2019, que propõe uma taxa de 16%. Mesmo que o Senado aumente o limite, cada assembleia legislativa estadual deverá promover a tramitação de projeto de lei específico que estabeleça essa majoração dentro de cada estado, respeitando os limites de anterioridade destacados. 

A discussão sobre aumento da alíquota de ITCMD no estado de São Paulo já vem ocorrendo há alguns anos. Apesar da notória dificuldade fiscal que o estado vem passando diante das perdas de arrecadação do ICMS e das sucessivas crises econômicas, nenhum governador teve — até agora — coragem política para assumir essa decisão. Ao não exercer toda a sua potencial carga tributária (com alíquota máxima permitida de 8%), em tese, o governo paulista estaria infringindo a Lei de Responsabilidade Fiscal — o fica mais exposto agora, com a piora drástica de arrecadação — e esse seria outro motivo para a movimentação. Apesar de afetar uma pequena parcela da população, a arrecadação não é vultosa e o custo político pode ser grande. O interessante aqui é o efeito de antecipação em relação aos planejamentos sucessórios e patrimoniais, pois uma reorganização feita com a alíquota atual poderá gerar grandes economias, caso efetivamente seja promulgado o aumento.

Tais medidas não foram impulsionadas apenas pela crise atual: elas vêm sendo discutidas e têm ganhado destaque desde o início da crise econômica no Brasil, em 2015, quando foi retomada a infindável e sempre ineficaz discussão sobre Reforma Tributária. Pode parecer piada, mas se discute a necessidade de reforma desde que a Constituição de 1988 foi promulgada. Nunca se chegou a um consenso ou solução realmente eficaz, ficando o assunto sempre pelo caminho, com os habituais remendos e precariedades que nos mantêm na liderança mundial de contencioso tributário. 

Infelizmente, não se pode esperar algo muito diferente disso hoje, pois o cenário de necessidade de recursos públicos — até mesmo para amparar as barganhas de sustentação política — tende a onerar os contribuintes e o setor privado, que são os mais afetados pela crise e vivem um dos piores momentos de incerteza econômica. Fica novamente postergada a discussão de uma reforma administrativa, que poderia trazer menor custo estatal; ou de uma efetiva e substancial reforma tributária, com foco na simplificação e na extinção das centenas de exceções às regras e benesses setoriais — o verdadeiro problema da nossa tributação. Diminuir a carga como um todo, em relação ao PIB, é uma verdadeira miragem no atual contexto.

É mais provável termos um remendo na unificação de PIS/Cofins, aumento de alíquotas do sistema financeiro, fim das isenções sobre dividendos e algum ajuste estético no sistema S e na tabela de IRFonte, além de algum Refis, claro; afinal, continuamos precisando de uma cracolândia para disfarçar as distopias de nosso mundo tributário. Mudar tudo (no discurso) para deixar exatamente como está — essa é a sina quando faltam competência e coragem.


*Alexandre Tadeu Navarro é responsável pela área de gestão patrimonial e pela estruturação de operações imobiliárias da Navarro Advogados.


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