Municípios se articulam contra a unificação de ICMS e ISS

Prefeitos de 26 capitais receiam os prejuízos desse ponto da reforma tributária para a arrecadação e para o pacto federativo

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Como já se poderia imaginar, as propostas discutidas no âmbito da reforma tributária que está no Congresso Nacional — conforme as propostas de emenda à Constituição (PECs) 45 e 110 — têm causado resistências. Articulados em torno da ideia de defender a fatia que cabe aos municípios na arrecadação de tributos, recentemente os prefeitos de 26 capitais divulgaram uma carta na qual se posicionam contra a unificação do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) e do imposto sobre serviços (ISS).

Em síntese, essa união criaria um imposto sobre bens e serviços (IBS). Os prefeitos temem perder parte de uma receita que é essencial para custear as atividades das prefeituras.

Como explica Thiago Braichi, sócio do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, os municípios signatários defendem a simplificação desses impostos com a uniformização de obrigações acessórias e de cadastros de contribuintes, além da criação de um único ISS nacional, com alíquotas de 2% a 5%, a serem aplicadas a critério de cada município. “Em ambos os casos a ideia é que seja preservada a competência tributária do ICMS e do ISS, de modo a garantir a manutenção da arrecadação aos estados e municípios”, destaca.

Alamy Candido, sócio-fundador do Candido Martins Advogados, discorda do pleito. “Os projetos discutidos em ambas as PECs têm regras mais claras e simplificadas para o sistema tributário como um todo. O País ganha no longo prazo”, avalia. O sócio do Coimbra & Chaves Advogados Paulo Coimbra, por sua vez, concorda com o posicionamento dos grandes municípios, mas observa que se a União e os estados patrocinarem a reforma, será muito difícil uma resistência isolada dos municípios conseguir impedir sua aprovação. “Para evitar a aprovação, seria necessário também que se articulassem os setores que serão gravemente atingidos pelas reformas, em especial, o próprio setor de serviços”, ressalta.

A seguir, Braichi, Candido e Coimbra tratam de detalhes do pacto federativo brasileiro no que se refere a tributos e comentam o atual estágio da reforma tributária.


Recentemente, as secretarias de Fazenda de 26 capitais de estados divulgaram uma carta em que se posicionaram contra a unificação de ICMS e ISS — proposta que faz parte da reforma tributária —, que criaria um imposto único sobre bens e serviços. Quais são os principais pontos levantados pelas secretarias municipais?

O documento apresentado pelas secretarias municipais contra a unificação do ISS e ICMS diz, em síntese, que a criação de um imposto unificado sobre bens e serviços (IBS), conforme previsto nas PECs nº 45 e nº 110, teria como consequência a invasão da competência tributária dos municípios.

Em razão disso, a carta defende a simplificação desses impostos por meio da uniformização de obrigações acessórias e dos cadastros dos contribuintes em níveis federal, estadual e municipal. Segundo a proposta, haveria uma unificação das legislações estaduais do ICMS, bem como a criação de um único ISS nacional, com alíquotas de 2% a 5%, a serem aplicadas a critério de cada município. Em ambos os casos a ideia é que seja preservada a competência tributária do ICMS e do ISS, de modo a garantir a manutenção da arrecadação aos estados e municípios.

O projeto de unificação está tanto na PEC 45 quanto na PEC 110, que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado, respectivamente. O governo “abandonou” essa discussão e se concentrou nos tributos federais (que fazem parte das quatro fases da reforma) para evitar essa discussão de repasse.

Ambas as PECs têm a regra clara de repasse já estabelecida de valores para cada ente: federal, estadual e municipal.

Há alguns grandes e justificados receios dos municípios em relação à proposta de criação um imposto único sobre bens e serviços. O primeiro consiste na perda da autonomia legislativa para disciplinar o único imposto sobre o consumo que é de sua competência. Segundo: existe o receio de uma invasão, pela União (seja com CBS ou com IBS) e pelos estados sobre a base serviços, que é a base tributável que mais cresce no Brasil.

Os municípios, já fragilizados em nosso pacto federativo, sobrecarregados pela demanda de serviços públicos — afinal, são os entes federados mais próximos dos cidadãos e de suas necessidades — e desprestigiados em termos de arrecadação e competência tributária (em conjunto, cerca de 5.500 municípios arrecadam pouco mais de 6% dos tributos no Brasil), podem sair bem piores dessas mudanças.


Você concorda com o pleito das Fazendas das capitais em relação à não unificação dos tributos? Por quê?

A meu ver, a principal problemática envolvendo a unificação de ICMS e ISS proposta pelas PECs 45 e 100 diz respeito à redução da autonomia dos entes federados na arrecadação de tributos, o que poderia gerar grandes prejuízos aos municípios. Assim, mesmo que a proposta inicial do IBS tenha como escopo a criação de fundos para a compensação de eventuais disparidades na distribuição de receitas entre os entes, bem como determine a instituição conjunta do imposto de modo a evitar a supressão de competência tributária, ainda é cedo para averiguar os reais impactos de sua criação à autonomia federativa.

De qualquer maneira, certo é que a proposta de simplificação tributária apresentada pelos municípios não seria capaz de solucionar por si só as complexidades do atual sistema tributário e tampouco de reduzir o desequilíbrio fiscal entre os entes federados. Pelo contrário: a tendência é que a unificação das legislações do ISS acabe ocasionando uma guerra fiscal entre os municípios, de modo semelhante ao que vem ocorrendo com o ICMS.

Não. Os projetos discutidos em ambas as PECs têm regras mais claras e simplificadas para o sistema tributário como um todo. Trata-se de uma reforma ampla, em todas as esferas. A população e o País ganham no longo prazo.

Concordo. A unificação pretendida, embora possa ter boas justificativas que sinalizam para uma maior uniformidade e coerência de nosso sistema, propõe mudanças muito disruptivas em um momento extremamente delicado para as contas públicas e para os contribuintes em geral, todos sacrificados pelas decorrências da pandemia. O risco de “errar a mão” nesse contexto é enorme. É como fazer supermercado com fome crônica e aguda: provavelmente se comprará mais do que se precisa.

Há projeções levianas, pouco ou nada transparentes e argumentos intimidatórios usados pelos defensores da reforma, que alçam sua voz como profetas do apocalipse.

Temos um sistema complexo, mas maduro. Há deficiências que, após décadas de experiência, já foram mapeadas e são conhecidas. Se aventurar em meio ao desconhecido, em tempos de contas públicas estranguladas, não é uma atitude prudente ou responsável. O melhor e mais razoável seria corrigir essas falhas pontualmente, de forma precisa e cirúrgica, o que geraria melhoria efetiva.


Os estados são, de maneira geral, favoráveis à unificação de ICMS e ISS? Por quê?

Apesar da recepção às propostas de unificação de tributos ainda não ser consenso entre os estados, o que tem se percebido é que a criação de um novo imposto sobre bens e serviços tende a compensar as perdas desses entes com a tributação concentrada no consumo final. Além disso, a unificação de tributos apresenta-se como opção vantajosa, na medida em que seria possível se apropriar do ISS devido aos municípios de modo a compensar a queda na arrecadação dos estados sobre o ICMS.

Também impõem resistência. Tudo por conta das regras novas de repasse.

Os estados perceberam que o ICMS, seu único imposto sobre o consumo e o que corresponde à maior parte de sua arrecadação, se esgotou e querem abocanhar os serviços — atualmente, na competência dos municípios. O ICMS depende do comércio e da indústria. A indústria nacional vem encolhendo progressivamente ao longo de décadas. O Brasil sofre um lamentável e perigoso processo de desindustrialização por perda de competitividade no cenário internacional. Uma das principais causas da perda dessa competitividade corresponde aos tributos: exagerados, mal distribuídos, pouco transparentes, com uma legislação complexa e ininteligível ao cidadão médio, associado a uma fiscalização pouco afeta ao diálogo e muito agressiva na aplicação de penalidades.

Isso tudo integra o chamado custo Brasil. O comércio, por sua vez, cresce lentamente, tendendo a acompanhar o desempenho pífio de nossa economia. O que mais cresce no Brasil são os serviços. Com a reforma, União e estados estão, indisfarçavelmente, querendo abocanhar essa atividade, até então reservada aos municípios.


Na sua opinião, a resistência de municípios importantes pode enfraquecer uma reforma tributária combalida já no início?

Não há dúvidas de que a aprovação da reforma tributária demandará a elaboração conjunta de uma proposta que envolva de forma efetiva todos os setores da sociedade, com ampla participação popular e democrática.

Assim, é fundamental que as PECs em tramitação no Congresso, assim como as futuras propostas a serem apresentadas pelo governo federal, tenham maior adesão dos municípios, em especial, das grandes capitais. Isso porque não será possível falar em reforma sem que haja um diálogo efetivo entre todos os entes, sob pena de violação ao princípio federativo.

A discussão de reforma ampla está amparada nas PECs. O governo federal saiu dessa discussão ao propor uma reforma fatiada, focada nos tributos federais. Entendo que o Congresso vai decidir se pretende “abraçar” a reforma ampla (PECs) e terá que discutir e aprovar a unificação ou a reforma fatiada (focada nos tributos federais somente) e deixar de lado a discussão com estados e municípios.

Se a União e os estados patrocinarem a reforma, penso que seria muito difícil uma resistência isolada dos municípios conseguir impedir sua aprovação. Para evitar sua aprovação, seria necessário também que se articulassem os setores que serão gravemente atingidos pelas reformas, em especial, o próprio setor de serviços, que pode ter sua carga tributária aumentada em pelo menos 300% caso as propostas apresentadas sejam aprovadas.


Qual a sua avaliação sobre o atual ponto das discussões sobre a reforma tributária?

A aprovação de uma reforma tributária capaz de efetivamente reduzir as complexidades do atual sistema tributário carece de uma ampla discussão, que acabou sendo deixada em segundo plano em face do atual contexto de enfrentamento da crise sanitária decorrente da covid-19.

Assim, passado mais de um ano da apresentação das primeiras propostas de reforma tributária, é possível perceber que a discussão acabou não tendo grande evolução. Nem mesmo a primeira parte da proposta apresentada pelo governo federal, em julho deste ano, teve grandes inovações no que diz respeito às PECs 45 e 110.

Nesse sentido, entendo que ainda há um longo caminho a ser percorrido para se chegar a uma proposta completa de reforma tributária. Mas é importante reconhecer que a apresentação da primeira parte da proposta de reforma pelo governo federal contribuiu para fomentar a discussão, representando um importante passo para sua concretização.

Paradas.

Debate-se reforma tributária no Brasil há décadas. A última reforma genuína que tivemos ocorreu nos idos de 1965. O melhor e mais prudente seria não descartar décadas de evolução, jogando no lixo o árduo e lento processo de construção de conceitos e (algumas) certezas, e sim melhorar as deficiências, que já são bastante conhecidas e estudadas, de forma pontual e precisa.

 

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