Mesmo com marco regulatório, projetos de saneamento emperram

Levantamento registra retração da quantidade de PPPs e concessões em 2020

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Levantamento recente da consultoria Radar PPP mostra que, no ano passado, diminuíram as parcerias público-privadas (PPPs) e as concessões na área de saneamento básico. A retração foi registrada a despeito do recente marco regulatório do setor, que data de junho de 2020.

Dizem os especialistas que não é possível cravar uma relação direta de causa e consequência entre a edição do marco regulatório e o desaquecimento das operações, fenômeno que tem múltiplas razões — uma delas a crise desencadeada pela pandemia, que deixou o cenário mais nebuloso, prejudicando especialmente projetos de longo prazo, como são os de saneamento.

“As incertezas da economia acarretadas pela pandemia certamente dificultaram a modelagem financeira dos projetos de saneamento, que já não seriam simples em um cenário de normalidade”, destaca o sócio do Vieira Rezende Advogados Claudio Pieruccetti.

Na opinião de Thomas Magalhães, sócio do Magalhães & Zettel Advogados, há também o fato de o mercado aguardar a análise dos vetos do presidente Jair Bolsonaro que será feita pelo Congresso. “Isso pode mudar questões importantes, como o artigo vetado da lei que permitiria a prorrogação dos contratos de programa por mais um exercício — o que, na prática, abre a possibilidade para municípios já atendidos por empresas de saneamento estatais migrarem para empresas privadas”, acrescenta.

A seguir, Pieruccetti e Magalhães abordam outros aspectos da atual situação do setor de saneamento básico no País.


Apesar da criação de um marco regulatório para o setor, no ano passado diminuíram as PPPs e as concessões, como mostra pesquisa da consultoria radar PPP. A que você atribuiria esse cenário?

Difícil precisar uma razão específica para a redução do número de projetos de concessões e PPPs na área de saneamento. Mas, considerando que o ano de 2020 foi totalmente atípico em razão da pandemia de covid-19, por certo que não se pode destacar que isso interferiu de alguma maneira na elaboração desses projetos, complexos por natureza.

As incertezas da economia acarretadas pela pandemia certamente dificultaram a modelagem financeira dos projetos de saneamento, que já não seriam simples em um cenário de normalidade em virtude da equação que precisa ser idealizada para garantir a universalização do serviço, o retorno do investimento e, ao menos em algum grau, a cobrança de tarifas acessíveis para a população.

Além disso, não se pode esquecer das dificuldades naturais de se estruturarem consórcios municipais com o objetivo de transferir para a iniciativa privada a exploração do serviço público de abastecimento de água e esgotamento sanitário, fato agravado no ano de 2020 pela realização dos pleitos eleitorais para a escolha dos chefes de Poder Executivo dos municípios.

A uma falta de capacidade técnica de análise dos projetos pelos pequenos municípios e à própria pandemia, bem como a uma mudança cultural.


Na sua opinião, ainda falta algum aprimoramento regulatório para que as concessões no setor avancem?

O mercado aguarda a análise dos vetos do presidente Jair Bolsonaro que será feita pelo Congresso, que pode mudar questões importantes para o mercado como o artigo vetado da lei que permitiria a prorrogação dos contratos de programa por mais um exercício — o que, na prática, abre a possibilidade para municípios já atendidos por empresas de saneamento estatais migrarem para empresas privadas.


Do ponto de vista dos investidores, seria necessário algum incentivo adicional para efetivamente financiarem projetos de saneamento? Quais seriam?

Na minha opinião, a mensuração de riscos de um determinado projeto é muito particular e depende do perfil de cada tipo de investidor. Isso, claro, faz com que a necessidade de incentivos varie de acordo com cada interessado.

De todo modo, penso que um incentivo que pode ser considerado comum a todo e qualquer investidor (independentemente do setor ao qual ele esteja relacionado) é a segurança jurídica. No caso do setor de saneamento, esse incentivo desapareceu pouco tempo após a edição do novo marco regulatório do setor, tendo em vista que foram ajuizadas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI nº 6492 e ADI nº 6536), e que ainda estão pendentes de julgamento.

E, no caso do setor de saneamento, essa insegurança jurídica ainda tem um agravante (financeiro), na medida em que em uma das ADIs há a alegação de que o princípio da modicidade tarifária estaria sendo violado pelo fato de que, segundo o artigo 22, inciso IV, do marco regulatório do saneamento, uma das finalidades da atividade regulatória é a de “definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos quanto a modicidade tarifária, por mecanismos que gerem eficiência e eficácia dos serviços e que permitam o compartilhamento dos ganhos de produtividade com os usuários”.

Acredito que o mercado já tenha esses mecanismos, que precisam apenas ser explorados. Mas o fator preponderante é a segurança jurídica, que com a análise dos vetos e o amadurecimento da legislação virá e atrairá mais investimentos.


Haveria, na sua opinião, um problema cultural que impede as administrações municipais de desenvolver projetos de saneamento que interessem ao setor privado?

Tenho dúvidas em afirmar que a questão cultural seria um óbice ao desenvolvimento de projetos de saneamento, muito embora a história do setor seja de participação eminentemente pública (ainda que por meio de empresas estatais) na prestação do serviço.

Penso que a barreira está mais associada à questão estrutural. A elaboração de modelagens de concessões e PPPs em qualquer setor de infraestrutura não é algo simples, e no setor de saneamento torna-se ainda mais complexa já que, como dito, temos um marco regulatório muito recente e as experiências privadas no setor não são em um grande número do qual possa ser extraída uma massa crítica.

Dessa forma, seria necessário que os municípios tivessem uma estrutura desenvolvida e com expertise avançada em concessões e PPPs para que tivessem reais condições de elaborar projetos dessa magnitude, o que, infelizmente, não é a realidade no Brasil. Talvez apenas municípios de maior desenvolvimento, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, por exemplo, tenham capacidade para elaborar um projeto de tal complexidade.

Por isso, foi muito importante a edição do Decreto nº 10.588/20, que regulamentou o marco regulatório do setor e previu o apoio técnico e financeiro da União (artigo 3º e seguintes) para o desenvolvimento de projetos, e que, a meu ver, está direcionada justamente para os municípios.

Sem dúvida, há sempre a visão de que apenas o Estado pode prover. Mas o tempo e as experiências positivas de municípios que já fizeram as suas PPPs ou concessões derrubarão essas barreiras.

 

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