Jurisprudência do Carf começa a mudar, mas incertezas permanecem

Portaria 260/20 e ações de inconstitucionalidade enfraquecem fim do voto de qualidade instituído pela Lei 13.988/20

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Passado um ano e meio do início da entrada em vigor da lei que extinguiu o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), os contribuintes começam a se favorecer com a alteração e a saírem vitoriosos em processos no órgão. A manutenção desse cenário, contudo, ainda é incerta, uma vez que o Ministério da Economia baixou uma portaria restringindo as situações nas quais o contribuinte pode se beneficiar do fim do voto de qualidade. Além disso, a constitucionalidade da lei vem sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF). 

Antes da promulgação da Lei 13.988/20, quando havia empate nos julgamentos, o desempate cabia a um representante da Fazenda Nacional. Esse critério desfavorecia os contribuintes, que na maioria das vezes acabavam perdendo as disputas no Carf. Por isso, a mudança promovida pelo diploma foi bastante comemorada pelo mercado. Meses depois, entretanto, veio o balde de água fria. O Ministério da Economia publicou a portaria 260/20, que limita as situações nas quais o voto pró-contribuinte pode ser exercido. “As restrições estabelecidas pela portaria acabam incorrendo em violações ao princípio da legalidade, na medida em que, ao reduzirem a aplicação do voto em favor do contribuinte no âmbito do Carf, invadem a competência de matéria já regulamentada por meio de lei ordinária”, destaca Ligia Merlo, associada do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados. Diante disso, empresas passaram recorrer ao judiciário para garantir que a lei seja aplicada. 

Outro problema está relacionado ao questionamento sobre a constitucionalidade do fim do voto de qualidade: há três ações direta de inconstitucionalidade (ADINs) no STF sobre o assunto. Por isso, até que ocorra o julgamento em definitivo pelo STF, as decisões tomadas pelo Carf em favor dos contribuintes em decorrência de empate no julgamento não poderão ser consideradas definitivas. “Essa situação certamente gera um ambiente de insegurança aos contribuintes”, afirma Bruna Barbosa Luppi, associada do Vieira Rezende Advogados.

Na entrevista a seguir, Merlo e Luppi contam como a nova lei vem mudando a jurisprudência em favor do contribuinte, mas ainda em meio a muitas incertezas. 


O que diz a Lei 13.988/20 sobre o voto de qualidade? Ela especifica matérias ou situações nas quais ele ainda pode ser usado?

Lígia Merlo: Os julgamentos ocorridos no Carf ocorrem atualmente com uma estrutura colegiada paritária, ou seja, com a participação de conselheiros representantes da Fazenda Nacional e conselheiros representantes dos contribuintes.

Assim, o voto de qualidade no âmbito do Carf surgiu para solucionar situações nas quais, por questões relacionadas ao julgamento, acabe ocorrendo um empate nos votos dos conselheiros.

Desse modo, antes da Lei 13.988/20, nos casos de empate nos julgamentos, um dos membros do colegiado, representante da Fazenda Nacional, poderia votar novamente. Ou seja, na prática, o conselheiro representante da Fazenda Nacional teria um “voto duplo”. Ocorre que, em regra, esse desempate nas votações sempre levava a um resultado desfavorável aos contribuintes, ocasionando na perda de importantes teses no âmbito do Carf.

No entanto, a partir da edição da Lei 13.988/20, que, ao incluir o artigo 19-E na Lei 10.522/02, colocou fim ao “voto duplo” do representante da Fazenda Nacional, passou a valer a regra de que, em caso de empate no julgamento de processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, a questão deveria ser decidida de forma favorável aos contribuintes.

Contudo, como a lei não especificou em quais situações ou matérias o voto de qualidade ainda poderia ser utilizado, restringindo-se apenas às questões envolvendo a determinação e exigência do crédito tributário, o Ministério da Economia, por meio da Portaria 260/20, passou a apontar hipóteses especificas em que há aplicação desse voto “pró-contribuinte”.

Bruna Barbosa Luppi: A Lei 13.988/20 inseriu o artigo 19-E na Lei 10.522/02 para dispor que, nos casos em que houver empate no julgamento de processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não mais será aplicado o voto de qualidade, até então adotado pelo Carf com base no artigo 25, §9º do Decreto 70.235/72, como critério de desempate, resolvendo-se o julgamento a favor do contribuinte.

Ou seja, esse novo dispositivo inserido pela Lei 13.988/20 extingue o voto de qualidade no Carf, sendo certo que a partir de tal mudança restou invertido o critério até então prevalecente no tribunal administrativo para solucionar os casos de empate: não mais ocorrerá o voto em duplicidade do presidente, representante da Fazenda Nacional, mas sim a extinção do crédito tributário.

Referido artigo 19-E da Lei 10.522/02 não prevê ou mesmo especifica matérias ou situações nas quais o voto de qualidade poderia ainda ser utilizado, limitando-se a extingui-lo, de modo a aplicar o desempate favorável ao contribuinte de forma abrangente nos casos em que ocorra o empate no julgamento do processo administrativo pelo Carf. 


Em quais casos o voto de qualidade ainda pode ser usado, considerando que o Ministério da Economia editou uma portaria a respeito?

Lígia Merlo: Como mencionado, embora a Lei 13.988/20 não faça qualquer restrição quanto às hipóteses em que há aplicação do voto a favor do contribuinte, a Portaria 260/20 do Ministério da Economia veio regulamentar o artigo 19-E da Lei 10.522/02, de modo a determinar situações em que ele poderá ocorrer.

Segundo a portaria, a utilização do voto “pró-contribuinte” só deve ocorrer nos casos de empate no julgamento de processo administrativo em que há exigência de crédito tributário por meio de auto de infração ou notificação de lançamento. Além disso, também são estabelecidas hipóteses em que não há aplicação desse voto. São elas: (i) discussões sobre matérias de natureza processual e a conversão do julgamento em diligência, (ii) julgamento de embargos de declaração, bem como (iii) julgamento de qualquer outro processo de competência do Carf. 

Contudo, as restrições estabelecidas pela Portaria 260/20 acabam incorrendo em violações ao princípio da legalidade, na medida em que, ao reduzirem a aplicação do voto em favor no contribuinte no âmbito do Carf, invadem a competência de matéria já regulamentada por meio de lei ordinária — no caso, a Lei 13.988/20. Esse cenário tem levado os contribuintes a recorrer ao judiciário para afastar a aplicação dessa norma restritiva, tendo em vista que a Lei 13.988/2020 não traz qualquer ressalva quanto à questão.

Bruna Barbosa Luppi: Por fazer referência a “empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”, a Fazenda Nacional pretende dar uma interpretação restrita à aplicação da extinção do voto de qualidade introduzida pela Lei 13.988/20 (por meio do artigo 19-E da Lei 10.522/02). 

Tanto é assim que o Ministério da Economia editou a Portaria 260, de 1 de julho de 2020, para manter a aplicação do voto de qualidade nas hipóteses de empate na votação em algumas situações julgadas no âmbito do Carf, tais como: responsabilidade tributária, questões processuais, conversão de julgamento em diligência, embargos de declaração e demais espécies de processos de competência do Carf que não decorrem de auto de infração ou de notificação de lançamento, como compensação tributária.

Na verdade, a portaria 260/20 trouxe uma limitação não prevista no artigo 19-E da Lei 10.522/02 em relação ao desempate favorável ao contribuinte, pretendendo, de forma totalmente ilegítima, restringir seu alcance às hipóteses nas quais o empate ocorrer em julgamento de processo administrativo em que há exigência de crédito tributário por meio de auto de infração ou de notificação de lançamento. Essa situação já vem sendo questionada no âmbito do Poder Judiciário, com registro de recentes decisões favoráveis aos contribuintes.


Discussões referentes a quais temas os contribuintes costumavam perder quando havia o voto de qualidade? Já é possível avaliar se houve mudança nessa situação?

Lígia Merlo: Antes da entrada em vigor da Lei 13.988/20, era comum que os contribuintes acabassem perdendo no Carf disputas bilionárias envolvendo diversas teses tributárias. Dentre elas, destacam-se as discussões acerca da permuta imobiliária em empresas optantes pelo lucro presumido, autuações fiscais relativas à amortização de ágio, bem como disputas envolvendo o entendimento sobre a incidência concomitante de multa isolada e multa de ofício.

Contudo, em decisões recentes, é possível perceber uma mudança de entendimento na jurisprudência até então consolidada no conselho. No caso da discussão acerca da aplicação concomitante da multa isolada e da multa de ofício, no final do ano passado (julgamento do processo 10665.001731/2010-92), a Câmara Superior do Carf revisou seu entendimento, decidindo pela impossibilidade de aplicação concomitante de ambas as multas. De modo semelhante, a Unilever, no processo 16561.72008/2014-55, obteve decisão favorável quanto à amortização do ágio gerado em operações realizadas pela empresa nos anos de 2007 e 2008.

Desse modo, apenas agora, quase dois anos após a entrada em vigor da Lei  13.988/20, é possível observar impactos concretos da mudança de critério de desempate nos julgamentos do Carf. A principal razão para isso, a meu ver, se dá em razão da retomada dos julgamentos durante o ano de 2021, tendo em vista que muitas questões deixaram de ser analisadas no ano passado em razão da pandemia da covid-19.

Bruna Barbosa Luppi: Em relação aos temas polêmicos no âmbito do Carf, que geralmente eram decididos por voto de qualidade e, portanto, em desfavor dos contribuintes em última instância administrativa, podemos citar como exemplos: (i) a dedutibilidade fiscal da amortização do ágio; (ii) a limitação da trava de 30% na compensação de prejuízos fiscais e base negativa da contribuição sobre lucro líquido (CSLL) nos casos de extinção da pessoa jurídica; (iii) exclusão na determinação do lucro real das despesas de depreciação acelerada incentivada da atividade rural em relação à lavoura de cana-de-açúcar; e, também, (iv) o preenchimento dos requisitos da Lei  10.101/00 para pagamento de participação nos lucros e resultado (PLR) sem a incidência de contribuições previdenciárias, entre outros.

Mais recentemente, é possível identificar que a partir da ampliação dos valores de teto (até 36 milhões de reais) para julgamentos virtuais pelo Carf, que têm ocorrido desde o início da pandemia do covid-19, e atual exigência de motivo justificado para retirada de pauta (portaria Carf/ME 7.755/21), outros temas relevantes e polêmicos voltaram a ser julgados pelo tribunal administrativo, e já é possível sim ver alteração na jurisprudência em razão da extinção do voto de qualidade.

Como exemplo, podemos citar recente precedente da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais   Acórdão 9101-005.728, publicado em 4 de outubro de 2021 que, após desempate, afastou a trava de 30% na compensação de prejuízos fiscais e base negativa da CSLL em caso que envolvia a extinção da pessoa jurídica por incorporação, revelando que a matéria permanece sendo objeto de empate no julgamento, mas agora, com o fim do voto de qualidade, é decidida a favor do contribuinte. 

Também há recente precedente Acórdão 2402-009.827, publicado em 15.06.2021 em câmara baixa que, após adotar o novo critério de desempate do julgamento estabelecido pela Lei 13.988/20, afastou autuação fiscal que buscava a cobrança de contribuição previdenciária sobre os valores pagos no plano de PLR por não preenchimento dos requisitos da Lei 10.101/00, em razão de questionamento quanto à data assinatura de acordo coletivo. 


Até que ocorra o julgamento do STF a respeito da lei que extinguiu o voto de qualidade, permanecerá uma situação de insegurança para o contribuinte?

Lígia Merlo: Desde a entrada em vigor da Lei 13.988/2020, a extinção do voto de qualidade do Carf tem gerado grande controvérsia e levado tanto a Fazenda Nacional quanto os próprios contribuintes a discutirem a questão no judiciário, especialmente ao se considerar as limitações quanto à sua aplicação trazidas pela portaria 260/2020.

Atualmente, existem três ações diretas de inconstitucionalidade (ADINs) pendentes de análise pelo STF (ADINs 6.399, 6.403 e 6.415), que discutem as supostas inconstitucionalidades envolvidas na nova sistemática de desempate de julgamentos do Carf, já tendo sido proferido, inclusive, votos divergentes pelo ministro relator Marco Aurélio e pelo ministro Luís Roberto Barroso. Enquanto o primeiro entendeu pela inconstitucionalidade do diploma legal, o ministro Barroso proferiu seu voto defendendo a constitucionalidade da extinção do voto de qualidade, na medida em que a Fazenda Pública ainda poderá ajuizar ações para restabelecer os lançamentos tributários.

Contudo, uma série de questões ainda sem solução tende a gerar insegurança tanto para os contribuintes quanto para o próprio Fisco. Isso porque, se o dispositivo for julgado inconstitucional, permanecerão os contribuintes sendo prejudicados pelo desempate realizado até então pelo representante da Fazenda Nacional. Por outro lado, a constitucionalidade da Lei 13.988/2020 e a consequente extinção do voto de qualidade levaria a um aumento de demandas ajuizadas pela Fazenda Pública no judiciário. Por fim, ainda resta necessário determinar uma modulação dos efeitos desse julgamento às decisões proferidas anteriormente pelo Carf.

Nesse sentido, até que haja a resolução definitiva do tema pelo STF, contribuintes e Fazenda Nacional continuarão discutindo no judiciário a aplicação da Lei 13.988/2020 e da Portaria 260/2020, atualmente vigentes.

Bruna Barbosa Luppi: Até que se tenha o julgamento em definitivo pelo STF acerca das três ações direta de inconstitucionalidade (ADINs 6.399, 6.403 e 6.415) que questionam o fim do voto de qualidade trazido pela Lei 13.988/20 e, por conseguinte, a declaração da validade ou invalidade dessa alteração legislativa pela Suprema Corte, as decisões tomadas pelo Carf em favor dos contribuintes em decorrência de empate no julgamento não poderão ser consideradas definitivas. 

Essa situação certamente gera um ambiente de incerteza e de insegurança aos contribuintes, pois todas as decisões do Carf proferidas desde abril de 2020 (quando entrou em vigor a Lei 13.988/20), que tenham aplicado o artigo 19-E da Lei 10.522/02 para decidir e desempatar julgamentos em favor dos contribuintes, poderão ser contestadas pelo fisco caso tal alteração legislativa venha a ser considerada inconstitucional pelo STF. É possível ainda que, mesmo que a lei seja considerada constitucional, o tribunal fixe tese assegurando à Fazenda Nacional o ajuizamento de ação judicial, com o objetivo restabelecer o lançamento tributário, tal como sugerido em voto já proferido no julgamento das ADINs.

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