Julgamento sobre planejamento tributário abusivo continua sem definição

Discussão no STF sobre a ADI 2446 foi suspensa mais uma vez

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Continua em aberto o julgamento sobre a constitucionalidade ou não da norma que autoriza o fisco a desconsiderar atos ou negócios que avalie terem sido feitos com base em planejamento tributário abusivo. Em outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) se reuniu em plenário virtual para julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2446 que trata do assunto, mas a sessão foi interrompida pelo pedido de vista do ministro Dias Toffoli. Essa é a segunda vez em que a discussão é pausada. Em junho do ano passado, o assunto entrou em pauta, e o placar da corte estava em cinco votos a favor da constitucionalidade da norma e dois contra, mas o julgamento foi paralisado por conta de um pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski. 

A controvérsia sobre o assunto é antiga. Começou em 2001, com a Lei Complementar 104/01, que acrescentou parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN). Ele possibilita que a autoridade administrativa desconsidere atos ou negócios “praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”. Ou seja, o dispositivo trata da evasão fiscal (que usa de meios ilícitos para não pagar imposto) e não da elisão fiscal (economia lícita de tributos). A norma, no entanto, ficou conhecida como “norma geral antielisão”. 

A ADI 2446 é de autoria da Confederação Nacional do Comércio (CNC) e questiona a validade desse artigo. Ela foi proposta sob o argumento de que o dispositivo cria insegurança jurídica, uma vez que dá ao fisco o poder de desconsiderar negócios que acredite terem sido feitos para não pagar impostos — prerrogativa que, para muitos, cabe exclusivamente ao Judiciário. “É gigantesco o contencioso tributário instaurado em torno de tais autuações fiscais. Mesmo quando há dúvidas razoáveis sobre as operações, os contribuintes costumam receber multas qualificadas, mais onerosas e que deflagram processos penais”, afirma Paulo Coimbra, sócio do Coimbra & Chaves Advogados. 

Se o artigo for tido como constitucional, Coimbra teme que “o entendimento do STF será utilizado para lastrear autuações que continuem partindo de premissas da existência de falsidade, sonegação, fraude ou dissimulação, não raro, sem provas”. 

A seguir, o advogado explica a diferença entre elisão e evasão fiscal e aborda a importância do julgamento da ADI 2446. 


O artigo 116 do CTN, que ficou conhecido como “norma geral antielisão”, trata de uma regra antielisão ou antievasão de tributos? 

Paulo Coimbra: Primeiramente, é preciso definir os conceitos de elisão e evasão fiscal que, embora contenham grafias similares, possuem significados bastante distintos. Elisão consiste na economia lícita de tributos, enquanto evasão fiscal consiste no uso de meios ilícitos para furtar-se ao pagamento de tributo devido.

Não são raras as vezes em que nos defrontamos com o uso equivocado dessas expressões, tal como ocorreu na exposição de motivos da Lei Complementar 104/01, que acrescentou parágrafo único ao artigo 116 do CTN. A exposição de motivos da lei enuncia que tal dispositivo visa possibilitar às autoridades administrativas desconsiderar atos ou negócios praticados com a finalidade de elisão. Contudo, uma vez que o artigo citado possibilita a desconsideração de atos e negócios jurídicos “praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”, trata-se de norma antievasão de tributos (e não antielisão). Há de se superar, dessa forma, a atecnia trazida na exposição de motivos acima citada.


Quais aspectos são levados em conta para caracterizar uma operação como de simulação tributária ou de planejamento tributário?

Paulo Coimbra: Os aspectos subjetivos não são seguros para qualquer distinção, porque tanto na elisão, quanto na evasão fiscal, os objetivos seriam evitar, reduzir ou postergar o pagamento de tributo. No primeiro caso, licitamente (elisão fiscal) e, no segundo, ilicitamente (evasão fiscal). Imperativo, pois, buscarmos critérios objetivos de diferenciação.

Há dois critérios objetivos que são usualmente apontados pela melhor doutrina para se fazer a distinção entre elisão fiscal (sempre lícita) e evasão fiscal (sempre ilícita): momento e licitude dos meios. São dois critérios que se complementam.

Na elisão (planejamento tributário legítimo e lícito), as medidas elisivas são sempre empregadas antes da ocorrência do fato gerador e são sempre marcadas por sua licitude (meios lícitos). Assim ocorre, por exemplo, quando um contribuinte decide adquirir seu imóvel em munícipio que tenha um IPTU menos oneroso (alíquota mais baixa), adquirir um veículo que tenha um IPVA mais barato (veículo menos oneroso), ou mesmo deixar de adquiri-lo. Assim ocorre, de forma lícita, quando o contribuinte deixa de realizar o fato gerador de um tributo, ou realiza o fato gerador (de outro ou mesmo tributo) que enseja uma obrigação tributária menos onerosa.

Na evasão fiscal, as medidas evasivas (como sonegação, falsidade, fraude, simulação) são utilizadas após ou concomitantemente à ocorrência do fato gerador, mediante emprego de meios ilícitos. Cite-se como exemplo de condutas evasivas, a lavratura de escritura por valor inferior ao negociado, emissão de notas fiscais com dados falsos (quantitativa ou qualitativamente inferiores aos reais), utilização de documentos sabidamente falsos (notas frias, despesas médicas inexistentes) para a redução do pagamento de tributo devido.


Quão comuns têm sido as autuações baseadas na alegação de que o contribuinte ocultou o fato gerador de tributos e quais são as consequências para os contribuintes?

Paulo Coimbra: Com notável frequência o fisco desconsidera os negócios promovidos pelos contribuintes, baseando-se no argumento de que ocultam a ocorrência do fato gerador de outras obrigações tributárias, sem avaliar, contudo, a validade dos negócios jurídicos sob a ótica do direito civil, baseando-se em critérios alienígenas (como a necessidade de “business purpose”) ou de fundamentos a nosso ver incompatíveis com nosso ordenamento (necessidade de se adotar a opção negocial tributariamente mais onerosa). É gigantesco o contencioso tributário instaurado em torno de tais autuações fiscais.

Há de se recordar que o direito tributário é um direito de sobreposição, o qual opera seus efeitos quanto às relações humanas, ocorridas sob a regência de outros ramos do direito, especialmente de direito privado. Além disso, não obstante todos os cidadãos tenham o dever de pagar seus tributos, não é imperativo que o façam do modo mais oneroso possível.  

Infelizmente, mesmo diante de razoáveis dúvidas quanto à ocorrência ou não de abuso de formas do direito privado e consequente dissimulação da ocorrência de fato gerador de obrigação tributária, é bastante comum a propositura de multas qualificadas que, além de excessivamente onerosas, tendem a gerar a deflagração de procedimentos ou processos penais.

A postura adotada pelo fisco ocasiona imprevisibilidade e incerteza aos contribuintes, prejudicando e inibindo o desenvolvimento de negócios e aumentando o custo Brasil.


Qual é a importância de o STF decidir sobre a ADI 2446? 

Paulo Coimbra: É premente a necessidade de se proporcionar maior segurança jurídica
aos cidadãos e às empresas quanto aos limites de atuação do fisco nas relações privadas, a fim de evitar ingerências e contingências não raro indevidas e injustificáveis. Apesar de relegar a aplicação do parágrafo único do artigo 116 do CTN às hipóteses de evasão fiscal, ao mantê-lo como válido em nosso ordenamento, há receios de que o entendimento do STF será ainda utilizado para lastrear autuações que continuem partindo de premissas da existência de falsidade, sonegação, fraude ou dissimulação, não raro, sem provas.

Ao autorizar a desconsideração, por autoridade administrativa, de atos ou negócios jurídicos dissimulados, o dispositivo, em síntese, confere ao fisco poderes que entendemos antes restritos ao Poder Judiciário. Como bem analisado pelo ministro Ricardo Lewandowski em seu voto, a desconsideração de atos e negócios maculados por algum vício deveria realizar-se na esfera do Judiciário, por aplicação do princípio da reserva de jurisdição, com todas as garantias que lhe são inerentes.

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