Os efeitos da reforma tributária sobre o pacto federativo

Entes estaduais e municipais temem perder receitas com atual texto em tramitação

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Assim como aconteceu há cerca de um ano, quando o Executivo apresentou ao Congresso a primeira fase da proposta de reforma tributária — envolvendo a criação de uma contribuição sobre bens e serviços (CBS) em substituição a PIS e Cofins —, a segunda etapa de alterações tem causado controvérsias. Uma delas está relacionada à eventual nova configuração da distribuição dos recursos arrecadados entre os entes federativos (a saber, União, estados e municípios). Convencidos de que a reforma retirará receitas importantes dos poderes públicos regionais, um comitê de secretários estaduais de Fazenda chegou a classificar o processo de “atentado”.

Como explica o advogado Tiago Severini, sócio do Vieira Rezende Advogados, no Brasil existe um pacto federativo, caracterizado na perspectiva tributária pela “divisão constitucional das materialidades tributáveis, bem como da repartição da arrecadação relativa a algumas dessas materialidades”. O pacto, nesse sentido, é uma forma de se assegurar a autonomia dos entes federativos entre si quando se trata de tributação, além de preservar um certo equilíbrio de arrecadações.

“Por meio do pacto federativo há uma definição quanto às obrigações financeiras, a arrecadação de recursos e a competência de cada um dos entes federados, de modo a garantir a autonomia política e o equilíbrio econômico-financeiro entre União, estados e municípios”, destaca Thiago Braichi, sócio do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.

“No entanto, considerando o alto grau de competitividade do federalismo brasileiro, com os constantes conflitos das diferentes esferas ou entre estados ou municípios entre si, me parece bastante impreciso se falar em um equilíbrio federativo ainda existente que pudesse ser severamente ameaçado pela reforma tributária”, afirma Severini, destacando que as origens desses conflitos remontam à formação da República.

“A unificação dos tributos sobre o consumo, com prevê parte das atuais propostas de reforma tributária, por si só não é capaz de corrigir as atuais distorções do sistema tributário quanto à arrecadação tributária, tornando necessária uma reforma que implemente um mecanismo de correção das fragilidades e dos desequilíbrios fiscais, de modo a permitir um maior equilíbrio fiscal entre União, estados e municípios”, afirma Braichi.

A seguir, Severini e Braichi tratam de outros aspectos do federalismo brasileiro e de suas ligações com a reforma tributária ora em tramitação.


 

Como funciona o pacto federativo em termos de tributação como foi estabelecido no País?

Tiago Severini: O pacto federativo, sob a perspectiva tributária, se baseia em uma divisão constitucional das materialidades tributáveis, bem como da repartição da arrecadação relativa a algumas dessas materialidades, como forma de assegurar a autonomia de cada ente federativo. Ou seja, a competência para a cobrança de tributos foi distribuída entre a União, os estados e os municípios, de modo a tentar, de um lado, fazer com que cada ente tenha recursos suficientes para exercer as suas competências constitucionais e, ao mesmo tempo, preservar certo equilíbrio entre o montante passível de ser arrecadado pelos entes com a amplitude das competências a cada um deles atribuídas pela Constituição.

Como se percebe, trata-se de um arranjo complexo, pretendido quando da celebração da Constituição de 1988, mas já muito afetado tanto por sucessivas alterações na Carta e no restante da legislação tributária quanto pelas variações substanciais nos volumes arrecadados de cada um dos tributos, o que se deve a fatores e circunstâncias extralegais.

Tanto em razão desses fatores quanto do ambiente competitivo do federalismo brasileiro (havendo constantes conflitos das diferentes esferas, ou mesmo entre diferentes estados ou municípios), cujas origens se assentam ainda na formação da República, me parece bastante impreciso se falar em um equilíbrio federativo ainda existente que pudesse ser severamente ameaçado pela reforma tributária.

Thiago Braichi: O federalismo, cláusula pétrea da Constituição Federal, corresponde a uma das principais bases do Estado democrático de direito e tem como premissa o ideal de repartição do poder estatal entre todos os entes, permitindo uma maior autonomia e participação entre eles. Por meio do pacto federativo, portanto, há uma definição quanto às obrigações financeiras, a arrecadação de recursos e a competência de cada um dos entes federados, de modo a garantir a autonomia política e o equilíbrio econômico-financeiro entre União, estados e municípios.

A Constituição Federal, portanto, prevê formas específicas para financiamento de cada um desses entes. A primeira se dá por meio do poder a eles concedido para a instituição de tributos. É a denominada competência tributária. Por outro lado, tendo em vista as desigualdades econômicas, bem como a desproporcionalidade na arrecadação tributária, a Constituição também prevê uma repartição das receitas tributárias, de modo a determinar a “fatia” que cada um dos entes federados deverá receber na arrecadação de tributos.

Embora as disposições constitucionais tenham o objetivo de garantir a independência e a igualdade financeira entre eles, no âmbito fiscal os desequilíbrios federativos são frequentes, ocasionando um cenário de grande instabilidade entre União, estados e municípios. É o que ocorre, por exemplo, com a guerra fiscal decorrente de dispositivo da Lei Kandir. No caso, a lei federal, responsável pela regulamentação de normas gerais de ICMS, previu a não tributação das exportações de produtos semielaborados, ocasionando um grave déficit arrecadatório para os estados, cuja significativa parcela da receita advinha dessas operações.


De que forma o pacto federativo poderia ser revisto?

Tiago Severini: A Constituição define como cláusula pétrea a forma federativa de Estado, indicando que nenhuma emenda constitucional tendente a abolir a natureza federativa do Estado brasileiro pode ser considerada compatível com a Constituição.

Não se trata, portanto, da impossibilidade de modificar as competências de cada ente, mas apenas de assegurar que as alterações que venham a ser feitas não acabem por retirar a autonomia de algum ente federativo, o que equivaleria a ameaçar a forma federativa de Estado.

Muitas vezes se alega que essa restrição impediria alguma modificação mais robusta nas competências tributárias de cada esfera federativa. No entanto, esse raciocínio não se sustenta ao se verificar os números da arrecadação dos entes. Isso porque tanto estados quanto municípios não conseguem fazer jus às suas despesas com base apenas na arrecadação dos seus tributos próprios, dependendo, portanto, dos repasses recebidos da União — que correspondem a certa parcela dos tributos cobrados pela União, mas que, por exigência da própria Constituição, devem ser repassados aos demais entes. Os estados também repassam parte de sua arrecadação aos municípios, dentro dos mesmos mecanismos.

Thiago Braichi: Como mencionado, uma das principais distorções no pacto federativo diz respeito ao desequilíbrio arrecadatório entre União, estados e municípios. Ao centralizar as receitas de forma atentatória às regras constitucionais, a União contribui para o agravamento da situação financeira deficitária de estados e municípios. Isso ocorre, por exemplo, quando o governo federal renuncia a uma parte das receitas de tributos de sua competência, que são repartidos com os demais entes, como a concessão de benefícios fiscais de IPI e IR.

As atuais propostas de reforma tributária (PEC 45/2019, 110/2018 e PL 3.887/20, de autoria do governo federal) focam muito mais na unificação de ICMS, ISS e nos demais tributos sobre o consumo por meio da criação do imposto de valor agregado (IVA), como ocorre com os demais países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), do que no reequilíbrio de poderes entre os entes federados.

Desse modo, a unificação dos tributos sobre o consumo, por si só, não é capaz de corrigir as atuais distorções do sistema tributário quanto à arrecadação tributária, tornando necessária uma reforma que implemente um mecanismo de correção das fragilidades e dos desequilíbrios fiscais, de modo a permitir um maior equilíbrio fiscal entre União, estados e municípios.


Por que os estados reprovam a proposta de corte do imposto de renda da pessoa jurídica?

Tiago Severini: Uma das receitas mais relevantes dos estados se refere à parcela da arrecadação do imposto de renda, que é repassada obrigatoriamente pela União. Dessa forma, uma mudança na cobrança do imposto de renda que reduza a sua arrecadação afetará diretamente a destinação de recursos pela União aos estados. O receio dos estados é de que a União preveja, por exemplo, a compensação da sua perda com alguma outra fonte de arrecadação que não envolva repasse obrigatório (como as contribuições, por exemplo). Nesse caso, o impacto recairia integralmente sobre os estados.

Thiago Braichi: Em razão da repartição constitucional de receitas tributárias, os estados têm participação na arrecadação de tributos de competência da União Federal. O art. 159, I da Constituição Federal prevê que, da arrecadação correspondente ao imposto de renda e ao IPI, o montante correspondente a 21,5% deve ser repartido com os estados e o Distrito Federal.

Nesse sentido, uma redução na cobrança no imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ) irá impactar de forma direta os cofres dos estados, especialmente ao se considerar que a atual redação do Projeto de Lei não prevê qualquer espécie de compensação decorrente dessa queda arrecadatória aos demais entes federados impactados.


Haveria formas de harmonizar interesses de estados e da União no âmbito de uma reforma tributária? Quais seriam?

Tiago Severini: Quaisquer mudanças fatiadas na legislação tributária em vez de uma real reforma, que pense a tributação como um todo, apenas contribuirão para agravar os problemas do nosso sistema, a competitividade no nosso federalismo e a fragilidade financeira dos estados e municípios.

Para uma efetiva reforma tributária, deve-se pensar na simplificação, mas também na preservação das fontes arrecadatórias de todas as esferas federativas, ainda que ajustando o equilíbrio entre os tributos cobrados por cada ente e os repasses obrigatórios recebidos.

Para a criação de um imposto sobre valor agregado, por exemplo, capaz de reunir não apenas diferentes tributos federais, mas também o ICMS (e, assim, eliminar uma série de problemas que decorrem da competência estadual relativa a esse imposto), seria imprescindível a compensação dos estados com uma fatia expressiva de repasse obrigatório da arrecadação desse próprio imposto de valor agregado.

Ou seja, apenas um projeto amplo e muito bem debatido com todos os agentes relevantes — o que definitivamente não é o caso de quaisquer das alterações avulsas e descoordenadas propostas pelo governo — se revelaria capaz de promover uma efetiva simplificação das bases, com redução da ineficiência, mas sem afetar o equilíbrio sutil da repartição de receitas entre as diferentes esferas federativas, especialmente no atual cenário de absoluta fragilidade financeira da maior parte dos estados e municípios.

Thiago Braichi: Entendo que o atual contexto de guerra fiscal e de crise econômica nos estados e municípios demanda uma proposta de reforma tributária estrutural, que permita aos entes federados um efetivo equilíbrio econômico-financeiro no que diz respeito à arrecadação tributária. Assim, para além da simplificação do atual sistema tributário brasileiro, faz-se necessário rever os atuais repasses de arrecadação, atrelado a uma forma eficiente de obtenção de receitas e uma distribuição fiscal mais eficiente e igualitária.

Isso ocorre porque não há como harmonizar os interesses entre União e Estados sem que haja um equilíbrio da receita tributária e correção das atuais distorções arrecadatórias do sistema federativo. Contudo, é preciso ter em mente que não há reforma sem o ideal federalista de manter a federação, fazendo-se necessário trazer os municípios também à discussão.

No caso da proposta de redução do IRPJ, por exemplo, é fundamental uma coordenação da União com os demais entes federados, de modo que a redução do imposto esteja ligada a uma compensação arrecadatória correspondente. Nesse contexto, a reforma tributária deve servir como um mecanismo de correção (ao menos que parcial) das atuais distorções no federalismo fiscal e não como mais um agravante para o desequilíbrio entre os entes.

 


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