Identificação de investidor final é desnecessária, decide Carf

Recentes julgamentos garantiram ao contribuinte não residente o direito de usufruir isenção de IRRF sobre rendimentos de FIPs

0

Para incentivar a entrada de recursos externos no setor produtivo brasileiro, os rendimentos que os investidores estrangeiros ganham com as aplicações em Fundos de Investimento em Participações (FIPs) estão isentos do pagamento de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF). No entanto, esse tratamento tributário favorável faz com que a Receita Federal mantenha essas aplicações sempre no radar e, não raro, aplique multas qualificadas nos investidores, alegando planejamento abusivo ou fraudulento. Por isso, advogados tributaristas consideram que são importantes as recentes vitórias de contribuintes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) em casos que envolviam a tributação de rendimentos pagos a investidor não residente.

Um dos casos recentemente julgados envolveu o Itaú Unibanco – a Receita Federal considerou que era necessário identificar os beneficiários finais (residentes no exterior) de um FIP para que eles fizessem jus à alíquota zero do IRRF ao receber rendimentos das aplicações nesses fundos. Como o Itaú Unibanco não identificou os beneficiários finais, o fisco entendeu que houve planejamento tributário abusivo com utilização de FIP como veículo, lançou IRRF à alíquota de 35% e aplicou multa qualificada de 150%. Já o contribuinte alegou que não houve pagamento a beneficiário não identificado, mas mera transferência de recursos entre contas de custódia e depósito, de titularidade do mesmo investidor estrangeiro que teria sido regularmente identificado.

O Carf anulou o auto de infração ao entender que as transferências não eram pagamentos e não denotavam manifestação de renda – além de argumentar que não há norma tributária que determine a identificação do beneficiário final nas aplicações financeiras efetuadas pelos investidores estrangeiros. Esse entendimento veio em linha com o de outros dois julgamentos, o da administradora do fundo RW Brasil FIP, e o da Dynamo (no início do ano).

Identificação de beneficiários finais: não está nas normas

“[…] os recentes julgamentos do Carf são importantes para afastar teses sustentadas pela fiscalização que não encontram respaldo legal, a exemplo da exigência de identificação dos beneficiários indiretos ou finais dos rendimentos de aplicações em FIPs pagos a investidores estrangeiros”, avaliam Anna Laura Lacerda e Sávio Hubaide, associados do Freitas Ferraz Advogados. Para eles, as conclusões do Carf contribuem para o aumento da segurança jurídica dos investidores e incentivam, em alguma medida, a injeção de capital estrangeiro no país. Mas eles ressaltam que as decisões foram proferidas por câmaras ordinárias do Carf e que ainda podem ser objeto de recursos para a instância superior.

Michel Siqueira Batista e Priscila Generoso, sócio e associada do Vieira Rezende Advogados, consideram que os recentes julgamentos do Carf envolvendo investidores não residentes sinalizam uma visão mais favorável ao contribuinte – apesar da insistência da Receita Federal em questionar as remessas ao exterior com base na alegação de suposta ausência de identificação do beneficiário final para cobrança de IRRF à 35%. “Além disso, os julgamentos são importantes porque, apesar do tema jurídico atacado, em todos os casos a fiscalização alegou, como pano de fundo, suposta fraude ou simulação das estruturas – o que foi afastado já no nível da DRJ [Delegacia de Julgamento] e posteriormente confirmado pelo Carf – de modo que o uso de regime tributário específico expressamente previsto para o beneficiário direto, ainda que no contexto de reorganização societária, foi reconhecido”, avaliam.

Na entrevista abaixo, os advogados do Freitas Ferraz e do Vieira Rezende comentam os casos envolvendo investidores não residentes recentemente julgados pelo Carf.


– Em recente caso julgado pelo Carf, um contribuinte (Itaú Unibanco) obteve vitória em questão envolvendo a isenção do IRRF para investidor não residente. O que foi julgado nesse caso?

Anna Laura Lacerda e Sávio Hubaide: O caso recentemente julgado pelo Carf examinou a necessidade de identificação dos beneficiários finais para a aplicação da alíquota zero do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre os rendimentos de aplicações em Fundos de Investimento em Participações (FIP) pagos a beneficiário residente ou domiciliado no exterior.

De acordo com a fiscalização, caberia ao contribuinte informar com precisão o endereço do investidor não residente e quem são os beneficiários efetivos, isto é, as pessoas físicas ou jurídicas que, em última instância, de forma direta ou indireta, possuem, controlam ou influenciam significativamente determinada entidade.

A autuação alegou que a pessoa jurídica identificada era uma controlada de empresa sediada em local de tributação favorecida, e, diante do não atendimento às intimações, considerou o beneficiário não identificado. Sob alegação de planejamento tributário abusivo com utilização de FIP como veículo, lançou IRRF à alíquota de 35%, acrescido de multa qualificada de 150%, afastando a utilização da alíquota zero do IRRF sobre os rendimentos de aplicações em FIPs remetidos a beneficiários residentes no exterior.

O contribuinte, por sua vez, alegou que não houve pagamento a beneficiário não identificado, mas mera transferência de recursos entre contas de custódia e depósito, de titularidade do mesmo investidor estrangeiro que teria sido regularmente identificado.

Na decisão, o acórdão do Carf reconheceu que os negócios jurídicos firmados entre a investidora estrangeira e o contribuinte brasileiro tinham natureza jurídica de contratos de depósito e custódia. Nesse contexto, a operação seria de transferência de recursos entre contas de titularidade do investidor estrangeiro, e, como o banco de investimentos brasileiro nunca foi titular ou proprietário desses recursos, a operação não poderia ser considerada um “pagamento”, requisito para a cobrança do IRRF.

Como não houve resgate, alienação ou liquidação das aplicações financeiras mantidas na conta de custódia, não há renda tributável, e as transferências bancárias entre contas da mesma titularidade são irrelevantes para fins tributários.

Quanto à identificação do beneficiário, a decisão afirma que a norma que prevê a incidência do IRRF apenas exige a identificação do beneficiário do pagamento, sem estabelecer níveis como direto, indireto ou final. Por fim, afirma que normas regulatórias não poderiam ser utilizadas como fundamento para a exigência de identificação do beneficiário final.

Michel Siqueira Batista e Priscila Generoso: A discussão vencida pelo Itaú Unibanco S.A. reside na verificação se ocorreu (ou não) os alegados pagamentos a beneficiários não identificados, tendo exigido o Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) à alíquota de 35% sobre transferências remetidas a cotistas estrangeiros de Fundo de Investimento em Participações (FIP). A autoridade fiscal teria fundamentado o lançamento em suposta simulação do investidor estrangeiro e na falta de identificação dos beneficiários dos recursos remitidos ao exterior.

Contudo, a própria Delegacia de Julgamento (DRJ) anulou o auto de infração sob o argumento de que as transferências (i) não se qualificavam como pagamentos; e (i) não denotavam qualquer manifestação de renda. Isso porque, no caso analisado, os negócios jurídicos firmados possuíam natureza de Contrato de Depósito e Contrato de Custódia, de modo que, em nenhum momento os valores foram transferidos para a esfera patrimonial dos investidores estrangeiros ou do Itaú – que presta o serviço típico de instituição financeira ao manter os recursos financeiros em contas de depósito e os ativos financeiros sob sua custódia.

Por fim, outro aspecto a der destacado, foi o reconhecimento da inexistência de norma tributária que determinasse a identificação do “beneficiário final” nas aplicações financeiras efetuadas pelos investidores estrangeiros. Tampouco havia qualquer norma tributária que fixasse um tratamento tributário diferenciado para os casos em que não fossem identificados os beneficiários finais. Assim, o Carf, por unanimidade dos votos, confirmou a decisão da DRJ e declarou a nulidade do auto de infração.


– Em outro caso recente, foi a administradora do fundo RW Brasil FIP que ganhou em julgamento no Carf. O que a Receita Federal questionou e qual foi o entendimento do Carf?

Anna Laura Lacerda e Sávio Hubaide: Nesse caso, a controvérsia recaiu sobre o cumprimento ou não dos requisitos para a aplicação da alíquota zero do IRRF sobre os rendimentos de aplicações em FIPs pagos a investidor estrangeiro. De acordo com a redação da Lei nº 11.312/06 vigente à época, a alíquota zero não seria aplicada (i) caso a participação do cotista, isoladamente, ou em conjunto com pessoas físicas ou jurídicas a ele ligadas, superasse 40% das cotas emitidas ou dessem direito ao recebimento de rendimento superior a 40% (“teste dos 40%”), ou (ii) se o investidor estiver situado em paraíso fiscal (“teste do domicílio”).

Ocorre que, apesar de a Lei nº 11.312/06 definir o que se considerava pessoa ligada ao cotista para os fins da norma antielisiva, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) pretendeu afastar o benefício da alíquota zero do IRRF sob o argumento de configuração de grupo econômico formado pelas empresas estrangeiras, diante da adoção de um gestor comum, a administradora do fundo de investimentos.

No acórdão, o Carf também se posicionou favoravelmente ao contribuinte, e esclareceu que o gestor do patrimônio do fundo não pode ser considerado parte ligada, mas atua como prestador de serviços, não havendo que se falar na violação ao teste dos 40%.

Quanto ao teste do domicílio, o Carf entendeu que a regra alcança apenas o cotista de “primeiro nível”. Assim, o beneficiário que não pode estar situado em paraíso fiscal (e que deve ser identificado) é o detentor direto das cotas do FIP, pois a lei não menciona grupos, beneficiário indireto ou final, de modo que não seria possível estender o requisito para outras pessoas da estrutura que sequer são cotistas do fundo.

Michel Siqueira Batista e Priscila Generoso: Até a publicação da Lei nº 14.711/23 (“Marco Legal das Garantias”), os investidores estrangeiros que aplicavam em FIP, para se beneficiar da alíquota zero, não poderia deter 40% ou mais das cotas do FIP (“teste dos 40%”), previsto no art. 3º da Lei nº 11.312/2006. Nesse contexto, a Receita Federal lavrou auto de infração pela cobrança de IRRF sobre remessas destinadas a investidores estrangeiros por meio do RW Brasil FIP.

A autuação baseou-se, principalmente, na alegação de que o regime de alíquota zero não seria aplicável devido à existência de controle comum entre os cotistas. A RFB ainda alegou que os reais investidores do FIP seriam entidades domiciliadas nas Ilhas Cayman (paraíso fiscal), que teriam promovido uma interposição fraudulenta, com o objetivo de obterem economia tributária indevida (“teste do domicílio”).

Contudo, as alegações da fiscalização foram afastadas por unanimidade no Carf no sentido de que (i) o dispositivo de lei pressupõe que exista efetiva participação societária entre empresas, sendo que a gestora atua como prestador de serviços no âmbito da alocação de capital dos sócios investidores que o contrata; e (ii) para fins do art. 3º da Lei nº 11.312/2006, quem faz jus ao benefício é o detentor direto das cotas do FIP, no caso, o cotista de primeiro nível, inclusive, irrelevante conhecer o beneficiário final quando não há fraude ou simulação.

Por fim, neste ponto, concluiu que não havia qualquer interesse em esconder a realidade, pois se os investidores tivessem aplicado seus recursos diretamente nos FIPs, sem a intermediação das limited partnerships e das limited liability companies, eles fariam jus à alíquota zero, uma vez que não havia qualquer ligação entre eles.


– Há semelhanças entre esses dois casos e o julgamento da Dynamo pelo Carf, realizado no início deste ano? 

Anna Laura Lacerda e Sávio Hubaide: Há semelhanças, pois o Caso Dynamo também examinou os requisitos para a aplicação da alíquota zero do IRRF sobre os rendimentos de aplicações em FIPs pagos a investidor estrangeiro. Naquela oportunidade, contudo, discutiu-se a possibilidade de exigência do IRRF sob a alíquota de 35%, diante da não identificação do beneficiário dos pagamentos, ou se seria apenas afastada a alíquota zero, com a incidência do IRRF de 15%.

A decisão do Carf considerou que os 35% previstos no artigo 61, da Lei nº 8.981/95, seria norma geral de alcance amplo, aplicável somente quando inexistente norma especial. No caso dos FIPs, os dispositivos da Lei nº 11.312/06 são normas especiais, e, mesmo diante da não identificação dos beneficiários, poderia incidir o IRRF com a alíquota de 15%.

Michel Siqueira Batista e Priscila Generoso: Sim. Especialmente no caso vencido pelo Itaú, o conselheiro José Eduardo Dornelas Souza citou, no voto, o caso vencido pela Dynamo, mencionando que há semelhança inegável, pois em ambos os casos foi discutida a necessidade de identificação do beneficiário final, tendo concluído a DRJ e o Carf que o artigo 61 da Lei nº 8.981/1995 não exige a identificação do beneficiário final do pagamento efetuado, de modo que descabe a cobrança do IRRF à alíquota de 35%.

Em relação ao julgado que beneficiou o fundo RW Brasil FIP, há também semelhança no sentido de que o relator afastou a necessidade de se identificar o beneficiário final quando não houver fraude ou simulação, como foi verificado no caso concreto.


– Esses julgamentos sinalizam uma visão mais favorável ao contribuinte nas questões envolvendo investidor não residente? Qual é a importância desses julgamentos?

Anna Laura Lacerda e Sávio Hubaide: Diante do tratamento tributário específico conferido às estruturas das quais participam FIPs, essas operações são alvo de constantes questionamentos pela RFB, sob alegações de planejamentos abusivos ou fraudulentos, inclusive com aplicação de multas qualificadas.

Nesse sentido, os recentes julgamentos do Carf são importantes para afastar teses sustentadas pela fiscalização que não encontram respaldo legal, a exemplo da exigência de identificação dos beneficiários indiretos ou finais dos rendimentos de aplicações em FIPs pagos a investidores estrangeiros.

Outras importantes conclusões foram a utilização do conceito de partes ligadas da própria Lei nº 11.312/06 e o reconhecimento de que a alíquota de IRRF de 15% é especial em relação à previsão geral de 35%.

Essas conclusões manifestadas nas decisões do tribunal administrativo contribuem para aumentar a segurança jurídica para investidores e incentivam, em alguma medida, a injeção de capital estrangeiro no país. Vale ressaltar, todavia, que as decisões foram proferidas por câmaras ordinárias do Carf, e podem ser objeto de recursos para a instância superior.

Michel Siqueira Batista e Priscila Generoso: Sim, apesar da insistência da Receita Federal em questionar as remessas ao exterior com base na alegação de suposta ausência de identificação do beneficiário final para cobrança de IRRF à 35%, ficou claro que tanto a DRJ quanto o Carf vêm rechaçando esta motivação.

Além disso, os julgamentos são importantes porque, apesar do tema jurídico atacado, em todos os casos a fiscalização alegou, como pano de fundo, suposta fraude ou simulação das estruturas – o que foi afastado já no nível da DRJ e posteriormente confirmado pelo Carf – de modo que o uso de regime tributário específico expressamente previsto para o beneficiário direto, ainda que no contexto de reorganização societária, foi reconhecido.


Leia também

Série de artigos “Novo Marco Legal das Garantias”

Resolução facilita vida do investidor estrangeiro

Deixe uma resposta

Seu endereço de e-mail não será publicado.