ICMS-Importação deve ser cobrado por estado do contribuinte adquirente, decide STF
Julgamento pretende encerrar disputas entre entes federativos e autuações de operações realizadas por importadoras
Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que cabe ao estado onde está estabelecido o contribuinte que adquiriu uma mercadoria no exterior cobrar o ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços) referente à importação — o chamado ICMS-Importação. A decisão pode diminuir as autuações de operações feitas por importadoras, que muitas vezes acabam recolhendo o tributo em duplicidade ou para a jurisdição errada.
No Brasil, são duas as principais modalidades de importação: a compra de produtos com recursos próprios e posterior revenda a clientes que contrataram o serviço e a contratação de importadoras para despacho aduaneiro. Segundo Thiago Braichi, sócio do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, a discussão sobre o ICMS-Importação de mercadorias envolve a determinação do seu sujeito ativo — ou seja, qual é o estado competente para cobrar o tributo quando o contribuinte adquire uma mercadoria do exterior, considerando que o bem importado nem sempre vai diretamente para o estado de destino.
A jurisprudência sobre as importações indiretas foi se modificando ao longo do tempo. “Inicialmente, prevalecia uma aplicação literal da legislação, no sentido de que competia ao estado onde era realizado o desembaraço aduaneiro a exigência do ICMS”, explica Tiago Severini, sócio do Vieira Rezende Advogados. “Entretanto, havia um estímulo para que as empresas especializadas na importação de bens para terceiros abrissem filiais em estados onde a tributação do ICMS referente à importação fosse reduzida por meio de algum benefício fiscal.” A estratégia resultou em diversos questionamentos por parte dos estados nos quais estavam localizados os destinatários das importações indiretas, a fim de defender o seu direito de exigir a tributação.
Braichi lembra que não havia um posicionamento consolidado sobre o assunto em situações que envolviam uma importadora intermediária nas operações. “Apesar de o STF já vir julgando de forma favorável ao estado onde se encontra o consumidor que ensejou a importação, muitas autoridades fiscais e tribunais interpretam cada um a seu modo o que significa destinatário final — ora como destinatário econômico, ora sob a concepção de destinatário jurídico.” De acordo com o advogado, esse conceito é essencial para determinar quem é o contribuinte do ICMS-Importação e, consequentemente, qual é o estado a que ele está vinculado.
O julgamento do STF, feito em plenária virtual, foi encerrado no dia 27 de abril. O acórdão, porém, ainda não foi publicado. Em entrevista ao Legislação & Mercados, Braichi e Severini abordam os principais pontos da decisão do STF sobre a cobrança do tributo e suas possíveis repercussões.
Por que as modalidades de importação são motivo de disputas entre os estados de origem das importadoras e os de destino das mercadorias?
Braichi: As disputas envolvem a definição de destinatário para fins de reconhecimento de quem é o ente competente para receber o ICMS. Isso porque muitos contribuintes contratam prestadores de serviços para realizar a importação de seus produtos. Assim, tanto o estado de origem das importadoras quanto o de destino das mercadorias reivindicavam o direito à cobrança do imposto. As importadoras alegavam que quem faz a importação é o destinatário dos bens importados e, portanto, contribuinte do ICMS. Já no caso dos consumidores, o destinatário final dos produtos seria o contribuinte do ICMS-Importação, pelo entendimento do estado em que esse consumidor se encontra.
Severini: A partir dessas discussões, a jurisprudência passou a adotar o critério do estabelecimento importador — o estado onde está localizado o estabelecimento que dava efetiva entrada no bem importado — para definir a competência para cobrança do ICMS-Importação. Dessa forma, desde que a importadora desse entrada física do bem importado em seu estabelecimento, poderia recolher o ICMS ao estado de sua localização, ainda que o bem de forma subsequente fosse destinado a terceiro, responsável pela efetiva compra do bem no exterior. Diante desse novo entendimento, outros questionamentos foram feitos pelos estados, já que a circulação física pelo estabelecimento da importadora muitas vezes não tinha qualquer razão negocial ou logística, nem relação com a operação comercial acordada entre as partes, servindo apenas para assegurar a fruição do tratamento tributário mais favorável aplicado à importadora.
O STF decidiu que é da competência do estado onde está estabelecido o contribuinte que adquiriu a mercadoria no exterior cobrar ICMS-Importação. Quais as bases jurídicas para essa decisão?
Braichi: A decisão foi tomada com base na relatoria do ministro Edson Fachin. Em seu voto, é possível identificar que a base normativa foi a interpretação do artigo 11, I, “d” e “e” da Lei Kandir (Lei 87/96, que dispõe sobre o ICMS exigido pelos estados) — até então utilizado como base para diversas decisões sobre o assunto — e do artigo 155, parágrafo 2º, IX, “a” da Constituição Federal. O ministro entendeu que a entrada física da mercadoria no estabelecimento do adquirente-importador não pode ser utilizada como critério para definição da competência do ICMS, sendo necessário identificar o “destinatário legal [jurídico] da operação da qual resulta a transferência de propriedade da mercadoria”. Essa análise combina a base normativa com o aspecto pessoal da obrigação tributária. Ou seja, não é o aspecto territorial — onde a mercadoria entrou e seu desembaraço aduaneiro foi feito — que define a incidência do tributo como um todo. Nesse caso, a controvérsia é definida pela parte que ensejou a relação que deu causa à obrigação em si e quem seria essa parte em cada uma das operações: importação a conta e ordem e importação para revenda.
Severini: O entendimento do STF, nesse caso, está alinhado com o precedente do próprio tribunal, já de anos atrás, em que se decidiu pela necessidade de circulação jurídica (transferência da propriedade) para que o ICMS possa ser cobrado sobre a importação. A discussão envolvia o leasing de aeronaves e teve reflexo importante sobre diversas outras indústrias, como as de petróleo e gás, por exemplo. Como o ICMS-Importação só pode ser exigido com a transferência da propriedade do bem importado, é coerente que o contribuinte do imposto seja aquele que adquiriu a propriedade do bem, ainda que um terceiro realize a importação. O fundamento para a decisão é, portanto, de natureza constitucional, guardando relação com o conceito de circulação jurídica definido no precedente anterior mencionado.
A decisão do STF pode encerrar as disputas referentes ao ICMS-Importação?
Braichi: Inicialmente, é necessário lembrar que o acórdão do julgamento do STF ainda não foi publicado. Isso é importante para entendermos todos os pontos levantados no julgado, que podem encerrar ou nutrir eventuais discussões. Mas a decisão do STF pode, sim, gerar segurança jurídica às operações de importação por meio de empresas prestadoras de serviço.
É importante mencionar também que a decisão foi julgada em sede de repercussão geral, de forma a uniformizar a interpretação constitucional e evitar que o STF decida múltiplos casos idênticos sobre a mesma questão constitucional, bem como vincula os tribunais a esse entendimento. Além disso, em âmbito administrativo, espera-se que a decisão coloque fim às arbitrariedades das autoridades estaduais na interpretação do termo “destinatário final”, já que a interpretação jurídica sobre o assunto tende a ser unificada sobre o julgado. Porém, ainda cabe continuar monitorando a evolução da aplicação do precedente pelos tribunais e especialmente pela administração pública, para que essa segurança concedida pelo STF seja validada por todas as instâncias tributárias.
Severini: Infelizmente, entendo que não. Os estados, na prática, apresentam bastante relutância quanto ao cumprimento das decisões do STF, mesmo em repercussão geral. Ainda existem numerosas situações práticas de exigência do ICMS sobre importações temporárias — nas quais não ocorre a transferência de propriedade do bem — mesmo já passados anos da consolidação do entendimento do STF. No caso das importações sob encomenda, por exemplo, o adquirente da propriedade do bem importado já sabe que efetuará a revenda imediatamente após a importação. Vejo, nesse caso, potencial insistência dos estados de destino (onde está localizado o “encomendante”) em pretender cobrar o ICMS. Além disso, permanece o problema das importações diretas (em que a compra no exterior e a importação são feitas pelo próprio destinatário da mercadoria, sem o envolvimento de terceiros), em que certa filial pode realizar o desembaraço aduaneiro até dar entrada física no bem importado, mas logo em seguida remeter o bem a outra filial em estado distinto.