Governo dá mais um passo para a abertura do mercado de energia

Consumidores atendidos em alta tensão poderão escolher fornecedor livremente

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Consumidores de energia atendidos em alta tensão (igual ou superior a 2,3kV) poderão, dentro de dois anos, optar pela compra de energia de qualquer supridor que faça parte do Sistema Interligado Nacional. É isso o que pretende o Ministério das Minas e Energia (MME), que abriu uma consulta pública para receber contribuições da sociedade sobre a proposta de reduzir os limites para a contratação de energia dos consumidores do mercado livre. 

A minuta de portaria submetida à Consulta Pública 131/22 do MME dispõe que, a partir de 01/01/24, todo o segmento da alta tensão, independentemente da demanda, poderá migrar para o mercado livre. Hoje, esses consumidores (mesmo aqueles com demanda inferior a 500kW) conseguem acessar o mercado livre, mas para isso precisam se reunir com outros consumidores e escolher um fornecedor de energia que use fontes incentivadas (PCHs, eólicas, térmicas a biomassa ou solares fotovoltaicas). A proposta é que eles possam individualmente, sem necessidade de reunião, escolher seus fornecedores de energia elétrica, mesmo que estes não utilizem fontes incentivadas. Eles terão que ser representados perante a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) por um comercializador varejista. 

Associada do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, Marcela Assis explica que os efeitos da nova medida vão variar de acordo com a situação do consumidor atendido em alta tensão: “Caso o consumidor não tenha migrado para o mercado livre, espera-se que processo de migração se torne mais simples, na medida em que ele não mais será demandado a se reunir com outros consumidores por comunhão de interesses de fato ou de direito. Caso o consumidor já atue no mercado livre, espera-se que sua atuação se torne ainda mais livre, uma vez que ele poderá contratar com qualquer fornecedor de energia, e não apenas com fornecedores que utilizem fontes incentivadas. Seja como for, as mudanças na regra constituirão mais um importante passo para a abertura total do mercado”.

O mercado livre tem algumas vantagens em relação ao cativo, explica Assis: a blindagem contra as altas tarifas, a liberdade para negociação, a melhor gestão de preferências e riscos, a previsibilidade dos custos com energia elétrica e, a depender da fonte escolhida, a possibilidade de aquisição de certificados ESG.

Na entrevista abaixo, a advogada explica como funcionam os mercados livre e cativo de energia e aborda os principais aspectos da consulta pública. 


Atualmente, o mercado livre de energia atende a quais consumidores? Quais são os atrativos desse mercado?

Marcela Assis: Depois da reforma do setor em 2004, principalmente por meio da Lei Federal 10.848/04 e do Decreto Federal 5.163/04, criou-se dois ambientes de contratação: o Ambiente de Contratação Regulado (ACR, também chamado de mercado cativo), no qual os consumidores pagam tarifas que são homologadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), inexistindo possibilidade de negociação entre as partes ou multiplicidade de produtos; e o Ambiente de Contratação Livre (ACL, também chamado de mercado livre), no qual o consumidor pode negociar preço, prazo, montante, sazonalização, modulação, dentre outros elementos. 

Hoje, atuam no ACL dois tipos de consumidores:

  • consumidores livres, isto é, consumidores com demanda igual ou superior a 1.000kW, atendidos em qualquer tensão, que podem comprar energia proveniente de qualquer fonte (artigo 15 e artigo 16 da Lei Federal 9.074/95 c/c Portaria MME 514/18); e
  • consumidores especiais, isto é, consumidores ou reunião de consumidores por comunhão de interesses de fato ou de direito, com demanda igual ou superior a 500kW e menor do que 1.000kW, que, obrigatoriamente, compram energia produzida por fontes renováveis de energia, ou seja, PCHs, eólicas, térmicas a biomassa ou solares fotovoltaicas (artigo 26, §5º da Lei Federal 9.427/96).

A atual configuração do mercado livre é, em grande extensão, resultado das mudanças trazidas pela Portaria MME 514/18, complementada pela Portaria MME 465/19. Tais atos promoveram a redução gradual dos requisitos de carga para participação no mercado livre, estimulando dois movimentos: o primeiro, de conversão de consumidores especiais em consumidores livres; e o segundo, de migração de consumidores cativos (atuantes no ACR) para o mercado livre.

Naturalmente, as vantagens da migração do mercado cativo para o mercado livre variam conforme as características de cada consumidor (incluindo, por exemplo, demanda e regime tarifário aplicável). Porém, em linhas gerais, pode-se dizer que ela permite a blindagem contra as altas tarifas praticadas no mercado cativo (especialmente em cenários de crise hídrica), a maior liberdade na negociação e escolha de fornecedores de energia, a melhor gestão de preferências e riscos, a previsibilidade dos custos com energia elétrica e, a depender da fonte escolhida, a possibilidade de aquisição de certificados ESG.


O que mudaria, de acordo com a previsão da minuta da portaria submetida à Consulta Pública 131/22 do MME? 

Marcela Assis: O MME instaurou a Consulta Pública 131/22 com o objetivo de coletar contribuições da sociedade civil à proposta de redução dos limites para contratação de energia elétrica pelos consumidores atuantes no mercado livre. A iniciativa dá seguimento aos estudos apresentados pela CCEE e pela Aneel (CT CCEE05492/2021, Nota Técnica 10/2022-SEM/ANEEL e CT CCEE02898/2022) sobre as medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para os consumidores com carga inferior a 500 kW, em atendimento ao disposto na Portaria MME 514/18, complementada pela Portaria MME 465/19.

Hoje, os consumidores atendidos em tensão igual ou superior a 2,3kV (também chamados de consumidores atendidos em alta tensão) conseguem acessar o mercado livre, mesmo com demanda inferior a 500kW. Porém, tal acesso depende da reunião com outros consumidores por comunhão de interesses de fato ou de direito; e da escolha de um supridor de energia que utilize fontes incentivadas.

A minuta de portaria submetida à Consulta Pública 131/22 do MME dispõe que, a partir de 01/01/24, todo o segmento da alta tensão, independentemente da demanda, poderá migrar para o mercado livre. Na prática, isso significa que os consumidores atendidos em alta tensão poderão – individualmente – escolher seus fornecedores de energia elétrica, incluindo aqueles que não utilizem fontes incentivadas. Logo, a portaria atua mais como uma estratégia de retirada de uma reserva de mercado do que como uma abertura propriamente dita.


A minuta prevê que os consumidores atendidos em tensão igual ou superior a 2,3kV devem ser representados por agente varejista perante a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Qual é o papel desses agentes e por que há essa necessidade? 

Marcela Assis: A figura do agente varejista (também chamado de comercializador varejista) foi regulamentada pela REN Aneel 570/13, recentemente revogada pela REN Aneel 1.011/22. São agentes varejistas os comercializadores e geradores habilitados pela CCEE para representar, perante a câmara, pessoas físicas e jurídicas a quem seja facultado não aderir à CCEE (artigo 4º da Lei Federal 10.848/04). Dentre esses agentes, incluem-se os consumidores aptos a participar do mercado livre e os geradores titulares de usinas com capacidade instalada inferior a 50MW, não comprometidas com Contratos de Compra de Energia no Ambiente Regulado (CCEAR), Contratos de Energia de Reserva (CER) ou cotas (artigo 12 da REN Aneel 1.011/22). 

Ao representarem os consumidores perante a CCEE, assumindo todas as responsabilidades operacionais, os agentes varejistas objetivam simplificar a participação de consumidores no mercado livre. Em especial, a participação dos consumidores de menor porte, não familiarizados com a dinâmica do mercado livre de energia – no qual, inevitavelmente, o consumidor assume um risco maior em comparação com o mercado cativo, incluindo o risco de exposição ao Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), isto é, o preço calculado pela CCEE e aplicável nas hipóteses em que a energia contratada for insuficiente para cobrir toda a demanda do consumidor. Assim, na prática, a figura do comercializador varejista facilita a migração de consumidores atuantes no mercado cativo para o mercado livre, exercendo um papel fundamental para viabilizar a abertura total do mercado.

Contudo, isso não significa que o modelo de representação e comercialização varejista não precise ser aprimorado. Dentre as discussões trazidas pela CCEE e Aneel sobre o tema, incluem-se aprimoramentos relativos à flexibilização da obrigação de registro das relações entre comercializadores varejistas e consumidores perante a CCEE e ao tratamento da inadimplência de consumidores representados.


Quais são os impactos esperados da mudança na regra e da implementação do mercado livre de energia?

Marcela Assis: Os impactos esperados com a aprovação da minuta de portaria submetida à Consulta Pública 131/22 do MME variam conforme situação do consumidor atendido em alta tensão. Caso o consumidor não tenha migrado para o mercado livre, espera-se que processo de migração se torne mais simples – na medida em que ele não mais será demandado a se reunir com outros consumidores por comunhão de interesses de fato ou de direito. Caso o consumidor já atue no mercado livre, espera-se que sua atuação se torne ainda mais livre – na medida em que ele passará a poder contratar com qualquer fornecedor de energia, e não apenas com fornecedores que utilizem fontes incentivadas. Seja como for, as mudanças na regra constituirão mais um importante passo para a abertura total do mercado. 

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