Governança no setor do agronegócio deixa a desejar

Pesquisa mostra que empresas consideram tema importante, mas ainda patinam em questões básicas

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Embora a maioria das empresas do agronegócio considere que a governança corporativa é importante, a adoção de boas práticas por esse segmento ainda não reflete essa percepção. É o que mostra uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e pela consultoria KPMG

De acordo com o estudo, cerca de 85% das empresas participantes consideram a governança importante ou muito importante, mas apenas 45% delas dizem que já estão priorizando o tema. Outras 13% veem benefícios na implementação de práticas relativas ao assunto, mas não consideram essa iniciativa uma prioridade, enquanto 2% afirmam não enxergar vantagens na adoção.

A principal necessidade de governança — citada por 54% dos participantes — é o desenvolvimento de um plano de sucessão. A questão é relevante para o setor, uma vez que 80% das empresas pesquisadas são familiares. Apesar disso, apenas 31% delas oferecem programas de treinamento para os sucessores. 

Com relação aos aspectos ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês), apesar de serem cruciais para o agronegócio, menos da metade (42% dos participantes) entende os riscos e as oportunidades trazidas por esses critérios e trata o tema periodicamente na esfera da diretoria ou do conselho. “O que falta efetivamente para o setor é tornar tais ações tangíveis e trabalhar a pauta ESG de maneira estratégica e com visão de longo prazo”, ressalta Clarice Doyle Maia Abuzaid, advogada do Mírian Gontijo Advogados. 

Na entrevista abaixo, Abuzaid aborda os desafios enfrentados pelo setor agronegócio na adoção de práticas de governança. 


Pesquisa da KPMG e do IBGC revelou que a maioria dos grandes empresários do agronegócio valoriza a governança corporativa, mas que sua implementação ainda continua desafiadora. Como você avalia esse resultado e o que pode explicar a defasagem entre teoria e prática?

Clarice Doyle Maia Abuzaid: Essa defasagem está inicialmente ligada à falta de conscientização, mas também à necessidade efetiva de se profissionalizar a gestão. Na maioria dos casos, isso ainda é um desafio, uma vez que estamos falando de um setor com uma significativa presença de empresas familiares, que encontram dificuldades em estabelecer processos corporativos e oferecem certa resistência à profissionalização da gestão. No setor agrícola, é comum que os negócios sejam conduzidos por uma liderança personalista (em sua grande maioria, pela pessoa física do patriarca), baseada na tradição, com poucos instrumentos de planejamento, controle e gestão, sendo que, em alguns casos, o arranjo societário quase é inexistente.

Essa transição de um modo familiar de gestão para uma gestão profissionalizada, necessária para a governança corporativa, exige quebra de paradigmas, comprometimento, planejamento estratégico e descentralização do poder de decisão, prevendo órgãos que representem a propriedade e a gestão, ou seja, a separação dos três elementos: família, propriedade e gestão. Esse ainda é um desafio a ser superado quando falamos de empresas do agronegócio. Todavia, é essencial para a perpetuação do negócio.

Nas empresas familiares do agronegócio, é comum que a intenção de se estabelecer uma estrutura de governança se contraponha a percepções estigmatizadas do empresário rural no que diz respeito à rápida, intuitiva, improvisada e não planejada tomada de decisões, além do famigerado pressuposto de que a dedicação integral de um gestor da família levará ao sucesso no ramo — o que demonstra a resistência aos processos de profissionalização e ao aumento da transparência do negócio, uma vez que os proprietários desejam liberdade para conduzi-lo.

Assim, para a implementação da governança corporativa ser de fato eficaz, é necessário que ela seja bem compreendida pelos familiares gestores, buscando maior profissionalização, em especial daqueles que detêm a condução do negócio em conjunto com sócios, diretores executivos e membros do conselho de família, sob pena de se tornar um procedimento pro forma.


A sucessão permanece como uma grande preocupação das empresas do setor. O que falta para que elas contem com processos estruturados nessa área?

Clarice Doyle Maia Abuzaid: O maior desafio de empresas familiares (a maioria no agronegócio) é, sem dúvida, o seu processo sucessório.

A profissionalização e o amadurecimento do processo de governança corporativa facilitam o diálogo e a estruturação do processo de sucessão. É por meio da profissionalização que se melhora a percepção sobre a necessidade de se pensar e planejar a continuidade do negócio. E é por meio da governança que os seus critérios vão ser definidos, tendo como objetivo a longevidade dos negócios e a perpetuação do legado conquistado.

Definir a identidade familiar, bem como missão, visão, valores e alinhamento de propósitos e planejamento estratégico, é o primeiro passo para perpetuá-la e para estruturar a sucessão.

Todavia, é necessário que alguns paradigmas sejam quebrados, como a resistência a se tratar da morte — além de o assunto ser naturalmente repugnado pela maior parte das pessoas, há a falsa ideia de que planejar a sucessão significa a saída do negócio ou a perda do poder. 

Mas é preciso superar essa visão. A sucessão é uma questão estratégica e, como tal, deve ser planejada ao longo do tempo. Se o patriarca ou a matriarca querem que haja continuidade de seu legado, é importante iniciar a conversa dentro da família e estabelecer regras e acordos formais que vão nortear os sucessores. É a governança corporativa que vai trazer os mecanismos necessários para que isso aconteça.

A identificação de talentos, sucessores e herdeiros feita durante o processo de sucessão proporciona uma melhor definição de papéis e regras. O mesmo acontece com a consequente implementação de programas de treinamento e capacitação para a próxima geração. Tudo isso torna o processo sucessório mais transparente e estruturado, evitando conflitos que poderiam, sem o direcionamento adequado, levar à extinção de todo um legado.

A partir da estrutura de governança implementada, a empresa contaria com um conselho de família e um conselho de administração, sendo o primeiro fundamental para um processo sucessório estruturado e para preparar os familiares para exercer cargos de liderança na organização.


A pesquisa mostrou que menos da metade das empresas pesquisadas entende os riscos e as oportunidades socioambientais e discute o tema. Dado que os aspectos ESG são cruciais no agronegócio, como você avalia esse resultado? Por que esses aspectos ainda não são plenamente incorporados por empresas do agronegócio?

Clarice Doyle Maia Abuzaid: Um dos motivos está relacionado às dificuldades de profissionalização, que contribuem para a falta de indicadores precisos e robustos que poderiam reverberar positivamente sobre a agenda ESG. Também é preciso considerar que o agronegócio caminha a passos lentos no que tange a comunicação de suas práticas, o que identifico como um dos fatores responsáveis pelo cenário evidenciado na pesquisa. Ou seja, o mercado ainda tem dificuldade de enxergar a verdadeira reputação do agronegócio, que, embora positiva, é pouco disseminada. Os participantes do setor agronegócio, em sua maioria, têm plena consciência da necessidade de preservação ambiental, tanto é que o proprietário de imóvel rural custeia de forma direta a manutenção de suas áreas ambientalmente protegidas. Isso já ocorria mesmo antes da publicação de lei prevendo a recompensa financeira por esse comportamento, o que demonstra a preocupação genuína desses proprietários. Essa realidade, no entanto, ainda é pouco disseminada ou até mesmo divulgada de forma equivocada. Além disso, merece atenção o Código Florestal Brasileiro, um dos instrumentos tidos como mais preservacionistas na legislação mundial. É preciso que essas qualidades sejam adequadamente divulgadas, para que nosso País seja visto como estratégico no atendimento à demanda global de alimentos. 

No que diz respeito ao aspecto social, creio que há bastante similaridade com o tema anterior. As empresas do agronegócio possuem práticas sociais no seu dia a dia, seja com o time interno de colaboradores, seja por meio de ações envolvendo a comunidade. O que falta, efetivamente, é tornar tais ações tangíveis e trabalhar a pauta ESG de maneira estratégica e com visão de longo prazo.

Assim, além da necessidade de implementação da governança corporativa, é preciso que as empresas do setor comuniquem as práticas ESG e adotem um nível de profissionalização para que tais indicadores façam, também, sentido econômico. Isso porque, apesar de o lucro não ser mais um dos únicos fatores a serem observados para avaliação de uma corporação, a sustentabilidade financeira será um fator determinante para que a agenda ESG seja verdadeiramente adotada nas organizações.

É importante, portanto, que sejam quebradas as premissas que relacionam as práticas ESG a custos que não geram retorno. É necessário que as empresas percebam o valor da adoção dos três pilares e, por que não dizer quatro (econômico, ambiental, social e de governança corporativa), podem trazer de oportunidades.

Prova disso são os bons resultados na captação de investimentos e na valorização das ações das empresas do setor que possuem práticas ESG implementadas. Essas organizações migraram de uma agenda de riscos para uma agenda de oportunidades de negócios, o que propiciou ganhos, primeiro, para seu time de colaboradores, sociedade, meio ambiente e sócios e, depois, diretamente para a corporação.


Quais benefícios as empresas do agronegócio podem colher com o aprimoramento de sua governança corporativa?

Clarice Doyle Maia Abuzaid: Os benefícios são vários e se relacionam à: redução de conflitos, fortalecimento do nível de confiança, profissionalização da gestão, aumento da transparência e da eficiência da operação, melhora da reputação e da imagem junto ao mercado, aumento do retorno financeiro, aprimoramento na análise de risco, redução do custo de crédito, fortalecimento da gestão para que a organização possa atingir os resultados pretendidos, existência de um planejamento estratégico estruturado e de processos de tomada de decisões. Em suma, a governança agrega valor e aumenta a sustentabilidade do negócio.


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