CVM adota tese de conflito material para fundo imobiliário
Entendimento destoa da visão do regulador nos últimos anos, de impedimento a priori quando há conflito de interesses
Decisão recente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) abriu discussões a respeito da extensão de regras que já valem no âmbito do Direito societário para fundos de investimento imobiliários no tópico referente a votações em potencial conflito de interesses. O diretor Alexandre Costa Rangel, relator do caso, considerou que a Cyrela Commercial Properties (CCP), principal cotista do fundo Grand Plaza Shopping, não estaria em situação de impedimento para votação em assembleia que deliberaria sobre uma reestruturação. A decisão envolve os conceitos de conflitos formal e material, já amplamente adotados nas análises do regulador de episódios envolvendo empresas.
Como explica a advogada Isabela Ardaya, do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, conforme a tese do conflito formal ficam antecipadamente impedidas de votar partes que estejam em situação de conflito de interesses. “Nesse caso, existe uma presunção de dano, a qual enseja a proibição de voto a priori dos agentes”, destaca.
Já quando há conflito material, completa, só é possível constatar se a deliberação causou prejuízos à companhia no caso concreto — depois do exercício do direito de voto. “Autoriza-se a votação de acionistas e administradores em situações que envolvam conflito e se verifica, a posteriori, se de fato houve dano à companhia, hipótese em que votos são anulados.”
Na situação avaliada por Rangel, o entendimento foi de que a restrição prévia à participação do cotista na deliberação deve ocorrer somente de forma excepcional, uma vez que “o direito de voto por parte daquele que investiu recursos próprios em um fundo de investimento representa um direito legítimo e fundamental”. A leitura chamou a atenção porque Rangel se posicionou contrariamente ao entendimento consolidado nos últimos anos na CVM: impedimento prévio aos acionistas de companhias abertas de votar em deliberações que envolvam potencial conflito de interesses.
A seguir, Ardaya detalha a decisão e suas repercussões.
Qual a diferença entre conflito material e conflito formal e por que o regulador adotou o primeiro?
Isabela Ardaya: O conflito material (ou substancial) e o conflito formal de interesses são duas teses opostas que surgiram em decorrência da divergência de interpretação das disposições da legislação societária aplicáveis à votação em deliberações que envolvam um potencial conflito de interesses com a companhia.
Em linhas gerais, de acordo com a tese do conflito formal, os acionistas e administradores que se encontram em uma situação de conflito de interesses com a companhia estão previamente impedidos de participar da respectiva deliberação. Nesse caso, existe uma presunção de dano à companhia, a qual enseja a proibição de voto a priori dos agentes mencionados.
Para a teoria do conflito material, por outro lado, somente é possível constatar se a deliberação causou prejuízos à companhia no caso concreto, isto é, após o exercício do direito de voto. Nesse sentido, autoriza-se a votação de acionistas e administradores em situações que envolvam conflito de interesses, devendo ser verificado, a posteriori, se de fato houve dano à empresa, hipótese em que os respectivos votos são anulados.
No caso em questão, o regulador estendeu a aplicação das teses mencionadas aos fundos de investimento imobiliários, tendo optado pela teoria do conflito material. Dentre outras justificativas, o regulador entendeu que a restrição prévia à participação do cotista na deliberação deve ocorrer somente de forma excepcional, uma vez que “o direito de voto por parte daquele que investiu recursos próprios em um fundo de investimento representa um direito legítimo e fundamental”. Para o diretor, o impedimento prévio de voto somente pode ocorrer em situações expressamente previstas em lei, por regulamentação própria ou por ato de liberalidade entre particulares.
Por que o regulador determina que gestores de fundos, empresas ligadas a eles, incluindo sócios e funcionários não podem votar em assembleias?
Isabela Ardaya: O art. 24, § 1º da Instrução 472 da CVM, que dispõe sobre as regras aplicáveis aos fundos de investimento imobiliários, veda expressamente o voto dos referidos agentes nas assembleias gerais de cotistas. Nesse caso, como bem ressaltou o regulador, a situação é de natureza objetiva e enseja a aplicação direta do impedimento, independentemente do conteúdo da deliberação. A proibição de votar nessas situações decorre da própria condição pessoal dos sujeitos titulares das cotas.
Por que a decisão gerou controvérsia?
Isabela Ardaya: A decisão proferida pelo diretor Alexandre Costa Rangel gerou controvérsia porque, ao aplicar a tese do conflito material de interesses, ele se posicionou contrariamente ao entendimento consolidado nos últimos anos na CVM no sentido impedir previamente os acionistas de companhias abertas de votar em deliberações que envolvam potencial conflito de interesses.
Além disso, pela primeira vez a discussão sobre a aplicação do conflito formal ou material, tão recorrente e antiga no âmbito da legislação societária, foi suscitada no contexto dos fundos de investimento imobiliários.
Quais são os impactos dessa interpretação, de que há conflito material, para outros fundos?
Isabela Ardaya: Muitos são os possíveis impactos da decisão de Rangel, uma vez que retoma uma discussão que há alguns anos estava consolidada no âmbito da CVM. É possível, portanto, que ocorra uma mudança de postura por parte dos cotistas dos fundos de investimento, que podem se sentir mais confortáveis em votar em deliberações envolvendo potenciais conflitos de interesses.
De toda forma, é importante considerar que a decisão foi proferida não em atenção às disposições da legislação societária, mas sim das próprias regras da autarquia (Instrução 472), o que pode oferecer novos contornos para os debates que, certamente, surgirão.
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