CVM multa acionistas por voto conflitado em AGO

Caso envolveu a transferência de direito de voto a usufrutuários com os quais os acusados têm parentesco

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Recentemente, no âmbito de processo administrativo sancionador, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) condenou dois acionistas administradores da GPC Participações por prática que configuraria voto conflitado. O caso envolveu a transferência de direito de voto a usufrutuários com os quais eles têm parentesco e a deliberação sobre as contas dos acionistas enquanto administradores. Embora os acusados tenham sido condenados e punidos com multas, houve divergência entre diretores da CVM em torno de detalhes do voto conflitado. As multas individuais foram de 500 mil reais.

O PAS foi instaurado para apurar a responsabilidade de três membros do conselho de administração da companhia, que opera nos setores químico e industrial, quanto à convocação e à realização intempestiva da assembleia geral ordinária (AGO) relativa ao exercício encerrado em 31 de dezembro de 2015 e à utilização irregular, por dois membros do conselho de administração que também eram acionistas, de suas ações para aprovação de suas próprias contas, do relatório de administração e das demonstrações financeiras.

A decisão pela condenação seguiu o voto do diretor relator, Henrique Machado, mas houve discordâncias pontuais mencionadas nas manifestações da diretora Flavia Perlingueiro e do presidente, Marcelo Barbosa. 

A seguir, Pedro Mourão, sócio do Nankran & Mourão Sociedade de Advogados, e Bernardo Freitas, sócio do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, abordam os detalhes da decisão dos diretores da CVM e as implicações do caso para a proteção de acionistas de empresas reguladas.


No âmbito de processo administrativo sancionador, a CVM condenou dois acionistas administradores de companhia aberta por prática que configurou voto conflitado. O caso envolveu a transferência de direito de voto a usufrutuários com os quais têm parentesco e a deliberação sobre as contas dos acionistas enquanto administradores. Qual é o cerne da questão, à luz do que estabelece a Lei das S.As.?

Trata-se de processo administrativo sancionador instaurado com o objetivo de apurar a responsabilidade de três membros do conselho de administração de companhia aberta, considerando convocação e realização intempestiva da AGO relativa ao exercício findo em 31 de dezembro de 2015. O PAS tratou, ainda, da utilização irregular, por dois membros do conselho de administração, na qualidade também de acionistas, de suas ações para aprovação de suas próprias contas, do relatório de administração e das demonstrações financeiras.

Nos termos do art. 132 c/c art. 142, inc. IV, da Lei das S.As., a AGO deve ser convocada pelo conselho de administração e realizada, anualmente, nos quatro meses seguintes ao término do exercício social. A AGO, inclusive, é medida de extrema importância e possibilita uma interação dos acionistas e do mercado com os administradores da companhia, oportunidade em que são tomadas as contas da administração e analisadas e votadas as demonstrações financeiras. Além disso, a AGO, conforme previsão do art. 132, ocorre para deliberação sobre a destinação do lucro líquido do exercício e distribuição de dividendos, eleição dos administradores e membros do conselho fiscal, quando for o caso, bem como aprovação da correção da expressão monetária do capital social.

Sobre o outro ponto analisado pela CVM, notadamente a utilização irregular das ações de dois membros do conselho de administração, a alegação é de violação aos arts. 115, § 1º, c/c 134, § 1º, da Lei 6.404/76. Os artigos mencionados tratam, justamente, do conflito de interesses — ou seja, fica impossibilitado ao acionista que exercer determinado cargo na administração da companhia o voto na deliberação sobre suas próprias contas, o relatório da administração e as demonstrações financeiras.

Todavia, o caso é ainda mais complexo, já que a defesa reconhece a impossibilidade de votar as suas próprias contas, mas aduz que os acionistas estavam desprovidos de qualquer direito de voto na medida em que constituíram usufruto sobre a totalidade das ações de sua propriedade a terceiros. A análise da CVM, portanto, se baseou no conceito de usufruto e em toda a legislação societária, principalmente sobre o direito de voto pelo usufrutuário à luz do art. 114 da Lei 6.404/76.

A CVM condenou os acionistas e administradores Paulo Cesar Palhares e Emílio Salgado Filho por votarem, indiretamente, pela aprovação das suas contas como administradores da GPC Participações S.A. Assim como em outras situações de conflitos de interesse, os acionistas e administradores são impedidos de participar de deliberações sobre suas próprias contas, com base especialmente dos arts. 115, § 1º, e 134, § 1º, da Lei das S.As.

Como um mecanismo para fraudar, burlar esse impedimento de voto, os autuados instituíram usufruto sobre suas ações em favor de terceiros, os quais exerceram o direito de voto na deliberação que tinha como objeto as contas da administração. É interessante notar que o art. 114 da Lei das S.As. permite o exercício do direito de voto pelo usufrutuário, desde que mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário.

Contudo, em uma análise conjunta do contexto em que o usufrutuário pode votar e do impedimento de voto ex ante dos acionistas-administradores, o processo sancionador da CVM discutiu se a constituição de usufruto sobre as ações dos acionistas-administradores seria capaz de afastar a aplicação das regras atinentes ao conflito de interesses ou se caracterizava um mecanismo que, na realidade, burlava o impedimento do direito de voto.


Do ponto de vista da proteção aos demais acionistas, na sua opinião foi correta a decisão da CVM pela condenação?

Não seria certo afirmar que a decisão da CVM foi ou não correta ao condenar os administradores nas penalidades de advertência e multas aplicadas, considerando ser necessário conhecer todo o cenário, documentos e provas apresentadas. Entretanto, analisando-se a situação de plano e diante das informações levantadas, há de se concordar com a decisão no sentido de que a AGO deve ser convocada e realizada tempestivamente, nos termos previstos na Lei das S.As. A previsão de data limite para a realização do conclave ocorre justamente para permitir aos acionistas participação nas deliberações sociais, não sendo justo e correto permitir a realização da assembleia conforme a conveniência dos administradores. De toda forma, ao aplicar a penalidade, cabe ao órgão regulador analisar a gravidade do fato e a existência de danos concretos aos acionistas, sendo a penalidade mínima (advertência) aplicada justa para o caso concreto.

No mesmo sentido, pelas informações levantadas, também há de se concordar com a aplicação da penalidade de multa aos administradores que votaram, indiretamente, pela aprovação de suas contas. A despeito de discordar do relator, assim como a diretora Flavia Perlingeiro no seu voto, na avaliação de que independentemente das circunstâncias do caso há impedimento do usufrutuário de ações de votar a aprovação de contas, o caso concreto levou ao entendimento de que uma série de circunstâncias demonstrou que, na verdade, os administradores constituíram o usufruto com o intuito de obter êxito na aprovação de suas próprias contas.

Como destacado nos votos: os gravames foram formalizados próximo ao término do prazo legal para a realização da AGO e à data da realização da assembleia; à época da celebração dos negócios estariam ocorrendo diversas divergências entre os acionistas, sendo que já era provável o embate na AGO e, consequentemente, o risco de reprovação das contas da administração; havia vínculo familiar entre os administradores e os outorgados, podendo-se levar em conta certa influência sobre os usufrutuários.

A partir das informações e dados do processo disponíveis nos votos e no relatório do processo sancionador da CVM, a decisão aplicou corretamente os preceitos da Lei das S.As., de modo a proteger os demais acionistas e evitar que mecanismos jurídicos sejam usados para violar uma norma societária de forma fraudulenta, disfarçada. O objetivo dos arts.115, § 1º, e 134, § 1º, da Lei das S.As. é justamente coibir a influência de acionistas-administradores em deliberações nas quais estiverem conflitados, seja diretamente ou indiretamente, por meio de interposta pessoa ou mesmo por intermédio de artifícios jurídicos.

As características dos instrumentos de instituição de usufruto e o contexto fático relatado na decisão da CVM parecem evidenciar que esse objetivo da lei estava sendo violado: os instrumentos foram celebrados entre membros da mesma família, o usufruto foi constituído a título gratuito, por prazo indeterminado e numa época em que estavam ocorrendo diversas desavenças entre os demais acionistas da companhia. Além disso, os acionistas-administradores autuados, que eram nu-proprietários das ações, continuaram a exercer o direito de voto nas assembleias da companhia com relação às demais matérias em que não estavam impedidos. Ou seja, os usufrutuários convenientemente votaram apenas naquela matéria em que os nu-proprietários estavam impedidos.


A decisão pela condenação seguiu o voto do diretor relator, Henrique Machado, mas houve discordâncias pontuais mencionadas nas manifestações da diretora Flavia Perlingueiro e do presidente, Marcelo Barbosa. Quais são esses pontos divergentes? 

A diretora Flavia Perlingeiro discordou do relator em relação à afirmação de que, independentemente das circunstâncias do caso, o impedimento de voto do acionista que também seja administrador na deliberação de aprovação de suas próprias contas se estende ao voto exercido por usufrutuário de ações de titularidade desse acionista (nu-proprietário), em razão da natureza do direito de voto e de regras cogentes que regem o seu exercício, às quais as convenções de voto devem se alinhar.

Segundo a diretora, “se, mediante convenção de voto em usufruto, o direito de voto em relação à aprovação de contas da administração for atribuído exclusivamente ao usufrutuário das ações e este não for administrador da companhia, ele não estará impedido de votar na assembleia geral de acionistas convocada para deliberar sobre as contas da administração que participe o nu-proprietário”. Isso porque, nesse caso, segundo ela, o nu-proprietário sequer terá direito de voto sobre a matéria, tendo havido a transferência integral ao usufrutuário.

Barbosa divergiu unicamente sobre a afirmação do relator no sentido de que o regime de usufruto não seria capaz de criar uma “blindagem em relação à formação da vontade política do usufrutuário”. Dessa forma, o presidente da CVM destacou que embora “no presente caso, haja elementos de prova suficientes para se chegar a essa conclusão, entendo que, a depender de suas características, arranjos contratuais (incluindo o usufruto) ou mecanismos organizacionais podem ser capazes de dissociar a vontade de determinado acionista da influência do acionista-administrador, impedido de deliberar sobre as próprias contas”. Assim, segundo ele, o instrumento de usufruto poderia sim conter dispositivos aptos a dissociar os interesses das partes no momento do exercício do direito de voto pelo usufrutuário.

Ao condenar os acionistas-administradores, o relator Machado registrou o entendimento de que a instituição de usufruto sobre as ações de acionistas em nenhuma hipótese seria capaz de afastar a aplicação do impedimento de voto dirigida à pessoa natural do acionista-administrador. No entendimento do relator, aquele que é acionista e também administrador está sujeito a normas imperativas da lei que não podem ser afastadas por ajustes contratuais. A vontade das partes no contrato, portanto, deve observar os preceitos de ordem pública e ser instruída pelas vedações legais que lhe são próprias. 

Todavia, no entendimento do presidente da CVM e da diretora Perlingeiro, não é possível afirmar a priori que os impedimentos de voto previstos na Lei das S.As. devem ser estendidos ao usufrutuário automaticamente, sendo possível que, por meio de arranjos contratuais, a vontade do usufrutuário seja dissociada da vontade do nu proprietário, o que tornaria o voto do usufrutuário lícito. Em outras palavras: se demonstrado que o usufrutuário votava de forma totalmente independente, desvinculada, desinteressada e sem conflito, seria lícito seu voto com relação às contas do nu-proprietário atuando como administrador. 

O importante é que, de uma forma ou de outra, a CVM demonstrou mais uma vez sua perspicácia e precisão em coibir a utilização de artifícios jurídicos que, em sua substância, buscavam violar uma norma societária que impedia o exercício do direito de voto em razão de conflito de interesses.


Há alguma semelhança dessa configuração de voto conflitado por meio de transferência de direito a usufrutuários com o que ocorreu no caso envolvendo Eike Batista na situação em que pessoas jurídicas por ele controladas votaram em assembleia para aprovação das contas sob a gestão do próprio empresário?

Há uma discussão na doutrina e jurisprudência: uma pessoa jurídica (uma holding, por exemplo), acionista de determinada companhia, pode votar matéria sobre aprovação das contas quando o administrador da companhia for controlador da referida pessoa jurídica? Há entendimento no sentido de que a pessoa jurídica se distingue da pessoa física, não havendo qualquer impedimento e, por outro lado, há entendimento no sentido de que haveria sim conflito de interesses.

No entanto, o entendimento pacificado é no sentido de que se deve analisar o caso concreto para averiguar se o voto da pessoa jurídica teve o intuito de realmente burlar a lei e aprovar as contas do administrador. A semelhança, na minha visão, caracteriza-se pela necessidade de se analisar o caso concreto para verificar se o usufruto, além de obedecer aos requisitos legais, foi (ou não) utilizado para burlar a legislação e obter uma indevida aprovação de contas.

Esse caso envolvendo Eike Batista e que ficou muito famoso à época tem uma característica muito similar com o atual caso do voto pelos usufrutuários de ações: em ambos a CVM teve a nitidez e o aprofundamento necessários para identificar que artifícios jurídicos estavam sendo utilizados para fraudar a Lei das S.As., cujas normas visam impedir que a vontade do acionista-administrador participe da formação da deliberação social quando esse tem interesse na deliberação. 

Em ambos os casos há uma fraude em sua própria acepção: sob o aspecto formal, havia uma aparência de legalidade — afinal, não era o próprio acionista-administrador quem votava —, porém, em sua substância, na essência do ato, era a vontade última do acionista-administrador a refletida no voto proferido pela interposta pessoa: no caso de Eike Batista, as pessoas jurídicas que controlava; no caso do usufruto sobre ações, os usufrutuários que se mostraram como meros testas de ferro dos acionistas-administradores.

Por esse motivo, em ambos os casos restou configurada pela CVM a participação indireta do administrador na aprovação das próprias contas, por intermédio de outra pessoa e mediante utilização de mecanismos jurídicos que instrumentalizaram a fraude à lei. 


O caso pode suscitar debates sobre a separação entre direitos patrimoniais e direitos de voto, no modelo do voting trust americano?

O voting trust trata de um mecanismo pelo qual determinada pessoa, proprietária de ações votantes de uma companhia, transfere a agentes fiduciários o direito de voto, mantendo, por outro lado, os direitos patrimoniais das ações. Em suma, há uma dissociação entre propriedade e voto.

Não entendo que esse debate possa surgir, já que o voting trust não é admitido no ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, como se sabe, em regra a Lei das S.As. não permite a transferência a terceiros de direitos inerentes à propriedade da ação, incluindo o direito de voto. Trata-se apenas de uma exceção prevista na própria legislação (art. 114 da Lei 6.404/76).

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