Curto-circuito na regulamentação de postes
Aneel interrompe elaboração de norma sobre compartilhamento de infraestrutura entre distribuidoras de energia e operadoras de telecomunicações
O compartilhamento de postes entre operadoras de telecomunicações e distribuidoras de energia é, há muito tempo, uma questão mal resolvida – e, recentemente, os atritos envolvendo a utilização dessa infraestrutura voltaram à tona por conta da interrupção, por parte da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) do processo de regulamentação sobre o assunto.
Em julho, a agência interrompeu o processo que estava em curso e decidiu recomeçá-lo. A norma que trataria do assunto seria elaborada também com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que já havia aprovado a minuta de nova resolução conjunta para compartilhamento de postes no fim de 2023. Agora, ambas buscam uma solução para o impasse.
A justificativa da Aneel para a interrupção é a publicação do Decreto nº 12.068/24, de junho, que trata da renovação de concessões a distribuidoras de energia e prevê que estas devem ceder a outras pessoas jurídicas espaços na infraestrutura de distribuição (os postes, no caso), mas não necessariamente a atividade de exploração.
O decreto criou a figura do “posteiro”, como vem sendo popularmente chamada a empresa sem vínculo com nenhuma das partes (empresas de telecomunicações ou distribuidoras de energia) que irá administrar o compartilhamento de postes entre as duas, fiscalizando a utilização da infraestrutura e também cobrando pela sua utilização.
“A proposta da regulamentação conjunta de compartilhamento tinha como principal elemento a criação de um intermediário responsável pela administração dos postes e o estabelecimento de uma metodologia para definição de preços cobrados pelo uso da infraestrutura a ser aplicada pelas distribuidoras”, explicam Marina Muniz Washington e Rodrigo Peres Fernandes, sócia e associado do Fleichman Advogados.
A Aneel encerrou o processo de regulamentação sem decisão de mérito devido ao Decreto nº 12.068/24, mas notícias publicadas anteriormente ao cancelamento do processo ressaltavam que havia resistências na agência à figura do “posteiro”. A Associação Brasileira de Distribuidoras de Energia (Abradee) é contrária à medida trazida pelo decreto e considera que a cessão dos postes não deveria ser obrigatória.
“Essa decisão gerou críticas da Anatel e do Ministério das Comunicações, que consideraram a medida um retrocesso para a expansão da conectividade no país. Em tese, vários passos regulatórios obrigatórios para edição de uma resolução conjunta precisam agora ser refeitos, incluindo consultas públicas e estudos de áreas técnicas de ambas as agências envolvidas”, afirmam Fernandes e Washington.
Os advogados do Fleichman informam que, na última semana do mês de agosto, a Aneel voltou atrás e decidiu reabrir o processo de análise da resolução conjunta com o diretor Ricardo Lavorato Tili como relator.
A complexidade envolvendo o compartilhamento de postes
“O tema acerca do compartilhamento de infraestrutura é muito importante e sensível, envolve diversos pontos e vieses”, afirma Paula Padilha Cabral Falbo, sócia do Vieira Rezende Advogados. O compartilhamento dos postes é essencial para os serviços de telecomunicações, ainda mais porque existe a necessidade de expansão e acesso à internet e conectividade da população, considera a advogada.
Ela informa que o compartilhamento de postes gera receita aproximada de R$ 2 bilhões para as distribuidoras de energia e que a maior parte dos recursos é destinada à modicidade tarifária. Falbo lembra ainda que falta organização e rastreamento dos cabeamentos feitos nos postes, o que leva à sobrecarga – por vezes, nem a própria distribuidora consegue identificar a quem os cabos pertencem e se estão em funcionamento.
“Portanto, podemos dizer que o tema relacionado a compartilhamento de infraestrutura, embora possa parecer ser simples, não o é, pois envolve diversas questões as quais devem ser regulamentadas de forma unificada entre as agências (Aneel e Anatel) e onde cada uma consiga atingir seus propósitos sem que haja interferência nas atuações umas das outras, pois no final o impacto maior é para a população.”
Falbo lembra que a Lei de Telecomunicações garante (no artigo 73) às prestadoras de serviços de telecomunicações o direito à utilização de postes, dutos, condutos e servidões pertencentes ou controlados por prestadora de outros serviços de interesse público. Mas, para que esse direito seja efetivado, Anatel, Aneel e Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) precisam editar resolução conjunta sobre o tema.
Na entrevista abaixo, Fernandes e Washington também abordam a complexidade envolvendo o compartilhamento de postes e comentam os impactos da decisão da Aneel.
Atualmente, como funciona o compartilhamento dos postes entre as distribuidoras de energia elétrica e as empresas de telecomunicações?
Marina Muniz Washington e Rodrigo Peres Fernandes: Postes são essenciais para distribuição de energia elétrica e prestação de serviços de telecomunicações e pertencem às distribuidoras de energia elétrica durante o contrato de concessão do serviço, com o ônus de que seja garantida a segurança e manutenção dessa infraestrutura. As empresas de telecomunicações que prestam serviços de interesse coletivo, aqueles ofertados ao público em geral sem qualquer distinção, têm direito de uso dos postes garantido por lei. As distribuidoras são proibidas de tratar empresas interessadas em utilizar os postes de forma discriminatória e a previsão legal determina que os preços e condições do direito de uso devem ser justos e razoáveis.
Já existem resoluções conjuntas da Aneel e Anatel que estabelecem regras para compartilhamento dos postes, dentre elas, a fixação de um preço de referência para a cobrança do direito de uso do poste, procedimentos de mediação de conflitos entre distribuidoras e empresas de telecomunicações pelas agências, alguns parâmetros sobre a organização do uso dos postes e a obrigação de planos de fiscalização de ocupação das distribuidoras para prevenir situações irregulares.
Quais são os problemas existentes no modelo atual?
Marina Muniz Washington e Rodrigo Peres Fernandes: A prática atual não tem conseguido acomodar os interesses da sociedade, distribuidoras e empresas de telecomunicações. Muitas vezes os cabos e equipamentos são instalados irregularmente, sem aprovação prévia, prejudicando a manutenção, aumentando o custo de fiscalização das distribuidoras e agravando o risco de segurança em geral e de falhas nas redes elétrica e de telecomunicações. Também é comum distribuidoras tratarem empresas de telecomunicações de forma desigual e abusarem do poder econômico para impor termos contratuais desfavoráveis às empresas de telecomunicações, em especial às de pequeno porte.
Algumas empresas de telecomunicações alegam que a análise para aprovação de projetos de ocupação dos postes é morosa, o que prejudica a expansão de redes para atender à crescente demanda de prestação de serviços. Por outro lado, a ocupação desordenada é um risco para toda a rede e a fiscalização por parte das distribuidoras é uma atividade custosa. Com a ocupação sem autorização, ou até mesmo sem contrato prévio com as distribuidoras, algumas empresas de telecomunicações se arriscam a ocupar de forma temerária os postes, a ter seus equipamentos retirados pelas distribuidoras e ao pagamento de multas. Em alguns casos esse risco é assumido de forma oportunista em razão da ineficiência da fiscalização de certas distribuidoras, outras vezes é assumido como uma forma de ganhar tempo para responder à demanda, sem depender de aprovação de novos projetos de engenharia, buscando-se uma aprovação posterior à ocupação, o que é contrário ao disposto na regulamentação
É importante considerar ainda que as distribuidoras de energia elétrica não podem destinar a totalidade da receita oriunda do compartilhamento para apuração do lucro do exercício, sendo obrigadas a destinar parte considerável do resultado financeiro dessa atividade para a diminuição da tarifa cobrada do cliente de energia elétrica. Essa limitação, chamada de modicidade tarifária, acaba sendo um desincentivo econômico para a administração das redes, embora não se possa afirmar que é um fator que inviabilize de forma completa a boa gestão do compartilhamento de postes pelas distribuidoras.
Recentemente, a Aneel cancelou o processo de regulamentação do compartilhamento de postes, que seria feito em conjunto com a Anatel. Quais pontos essa regulamentação disciplinaria e por que ela foi cancelada?
Marina Muniz Washington e Rodrigo Peres Fernandes: A proposta da regulamentação conjunta de compartilhamento tinha como principal elemento a criação de um intermediário responsável pela administração dos postes e o estabelecimento de uma metodologia para definição de preços cobrados pelo uso da infraestrutura a ser aplicada pelas distribuidoras.
Essa proposta buscava alcançar o cumprimento das obrigações legais relacionadas ao compartilhamento. A introdução de um agente não relacionado aos setores elétrico e de telecomunicações tem como objetivo atribuir a administração dos postes a um terceiro neutro, que não tenha interesses alinhados com nenhum dos dois setores. O desenvolvimento e definição de uma metodologia de precificação para o uso dos postes, baseada em custos, busca evitar abusos e promover um ambiente competitivo justo, solucionando a controvérsia existente hoje em todo o mercado.
O cancelamento se deu em razão da publicação do Decreto nº 12.068/2024. A Aneel encarou o referido decreto como uma alteração significativa do contexto regulatório do tema, o que exigiria revisão da proposta normativa. Com isso, a agência decidiu extinguir o processo de regulamentação que estava em curso.
Quais são os impactos desse cancelamento? Como a situação será encaminhada a partir de agora?
Marina Muniz Washington e Rodrigo Peres Fernandes: Essa decisão gerou críticas da Anatel e do Ministério das Comunicações, que consideraram a medida um retrocesso para a expansão da conectividade no país. Em tese, vários passos regulatórios obrigatórios para edição de uma resolução conjunta precisam agora ser refeitos, incluindo consultas públicas e estudos de áreas técnicas de ambas as agências envolvidas.
A grande divergência sobre a obrigatoriedade ou não de cessão da gestão dos postes a um terceiro neutro, o “posteiro”, foi superada no Decreto nº 12.068/2024, que impõe a cessão do direito de uso pelas distribuidoras a terceiros.
Na última semana do mês de agosto de 2024, a Aneel voltou atrás e decidiu reabrir o processo de análise da resolução conjunta com o diretor Ricardo Lavorato Tili como relator, que também é responsável pela relatoria de recursos contra a decisão da Aneel de arquivar esse mesmo processo. A Anatel já tinha aprovado a minuta de nova resolução conjunta para compartilhamento de postes no fim de 2023 e foi pega de surpresa pelos sucessivos pedidos de vista da diretoria da Aneel e pela extinção do processo em julho deste ano, mas tem conversado com a Aneel para alcançarem uma solução para o impasse.