Contribuintes sofrem com cassação de liminares do Difal do ICMS
Embora alguns tribunais venham adotando essa posição, judicialização ainda é recomendada
No mais recente capítulo da novela sobre o diferencial de alíquota do imposto sobre circulação de mercadorias (Difal do ICMS), contribuintes sofreram derrotas. Tribunais de Justiça de pelo menos dez estados cassaram liminares que permitiam o adiamento do pagamento do tributo para 2023. Ainda assim, advogados tributaristas ouvidos pelo Legislação & Mercados recomendam que os contribuintes ingressem na Justiça para questionar o recolhimento do imposto neste ano. “Mesmo com as cassações, os contribuintes devem continuar pleiteando seus direitos perante o Judiciário, pois ainda não há orientação formada em precedente vinculante por parte dos tribunais superiores”, afirma Sávio Hubaide, advogado associado do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.
Na visão de Paulo Coimbra, sócio do Coimbra, Chaves & Batista Advogados, “a questão inexoravelmente irá cair no STJ e no STF, que estariam menos propensos à pressão dos estados — ou do poder executivo dos estados”. Para ele, a cassação das liminares reflete a falta de imparcialidade dos tribunais de justiça estaduais, situação que gera insegurança aos contribuintes.
Cabe observar ainda que as decisões de suspensão não analisaram o mérito em discussão nas ações, mas apenas justificaram que as medidas não podem ser mantidas em razão da perda de arrecadação dos estados. “Dessa forma, o que se verifica é que as decisões não possuem cunho jurídico, mas apenas econômico, o que não é de competência do Poder Judiciário avaliar”, ressalta Bianca Mareque, associada do Vieira Rezende Advogados.
A polêmica envolvendo o Difal do ICMS começou com a publicação, neste ano, da Lei Complementar 190/22. Por causa do princípio da anterioridade, tributaristas e contribuintes defendem que o imposto só pode ser cobrado em 2023. Os estados, entretanto, argumentam que o Difal do ICMS não é um tributo novo, e que a lei apenas disciplina a repartição dos recursos entre os estados. Por isso, querem cobrá-lo ainda neste ano.
Na entrevista abaixo, Hubaide, Mareque e Coimbra explicam por que consideram que os contribuintes devem continuar questionando o pagamento do Difal do ICMS, apesar da recente onda de cassações de liminares.
Vários tribunais de justiça estaduais vêm cassando liminares que suspendiam o pagamento do Difal do ICMS em 2022. Qual a sua avaliação sobre essas decisões?
Sávio Hubaide: O principal argumento levantado pelos fiscos estaduais para defender a cobrança do Difal em 2022 é o de que a Lei Complementar 190, de 4 de janeiro de 2022, seria uma norma apenas de partilha de recursos entre os entes federados, enquanto a instituição do tributo ficaria a cargo das leis ordinárias estaduais.
Ocorre que, no tema 1.093 da Repercussão Geral, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) foi clara no sentido de que a Emenda Constitucional 87/15, ao instituir o Difal nas operações interestaduais, criou nova relação jurídico-tributária, cujas normas gerais devem ser necessariamente veiculadas por meio de lei complementar.
Não se trata, portanto, de mera repartição, mas sim de nova modalidade tributária, com contribuintes, alíquotas e bases de cálculo próprias, e a norma de incidência é formada pela junção das leis ordinárias estaduais com as normas gerais previstas na lei complementar.
Nesse sentido, ainda que os estados discordem da decisão do Supremo, ela deve ser respeitada e cumprida. Assim, publicada a LC 190 em janeiro de 2022, admite-se a cobrança do Difal apenas a partir de 2023, tendo em vista a regra da anterioridade, não havendo razões jurídicas capazes de fundamentar as cassações de liminares que suspenderam as cobranças indevidas.
Bianca Mareque: As liminares concedidas, que tratam do pagamento do Difal do ICMS apenas para o ano de 2023, já foram suspensas em mais de dez estados por presidentes dos tribunais de justiça. No entanto, referidas decisões de suspensão não analisam o mérito em discussão nas ações, mas apenas justificam que as medidas não podem ser mantidas em razão da perda de arrecadação dos estados.
Nesse ponto, cabe o destaque de que algumas dessas decisões não apenas suspendem as liminares já concedidas, como também vedam a possibilidade de concessão de novas medidas pelos juízes de primeiro grau. Dessa forma, o que se verifica é que as decisões não possuem cunho jurídico, mas apenas econômico, o que não é de competência do Poder Judiciário avaliar.
Paulo Coimbra: As avaliações que têm suspendido as decisões favoráveis reconhecendo a inconstitucionalidade da cobrança do Difal já no exercício de 2022 revelam uma falta de imparcialidade dos tribunais de justiças estaduais, ao julgar matérias de tributos estaduais que sejam sensíveis ao orçamento público dos estados.
Isso reflete um contexto que é extremamente preocupante, na medida em que gera maior insegurança para os contribuintes, que se sentem desprotegidos diante de abusos ou de leis inconstitucionais, proferidas ou editadas pelos estados, que prevejam incidência de tributos de forma inconstitucional.
A perda de arrecadação dos estados, num contexto de crise econômica, é um motivo legítimo para justificar as decisões contrárias aos contribuintes?
Sávio Hubaide: Não. Os fiscos estaduais construíram bons argumentos jurídicos no sentido de que o Difal não seria um novo imposto, mas sim uma regra de distribuição da arrecadação, de modo que, ainda que os contribuintes discordem, há fundamentos jurídicos que poderiam sustentar decisões contrárias a seus interesses.
O que não se pode admitir, por outro lado, é a manutenção de cobranças manifestamente inconstitucionais com base unicamente em argumentos econômicos consequencialistas, relacionados ao impacto na arrecadação, pois são razões externas às normas jurídicas.
Bianca Mareque: Apesar de a perda de arrecadação dos estados ser fato notória e crítica nos tempos atuais, entendemos que não se legitima como argumento jurídico suficiente a obstar o efeito das liminares concedidas em ações ajuizadas pelos contribuintes. É importante destacar que o argumento principal levado às ações para tratar do tema é de cunho constitucional, prestando-se exatamente a preservar a segurança fiscal do contribuinte. Dessa forma, as razões de suspensão das decisões proferidas — perda de arrecadação e prejuízo aos estados — não são legítimas para esse fim, uma vez que são argumentos econômicos e não jurídicos.
Paulo Coimbra: Realmente, nós temos observado não apenas no Supremo Tribunal Federal (STF), mas também nos tribunais estaduais, o chamado consequencialismo, que são as decisões judiciais tomadas acatando o argumento ad terrorem das procuradorias da fazenda pública, que dizem e propalam que o estado irá quebrar, que as finanças públicas irão enfrentar uma bancarrota, que o estado não suportará os seus compromissos, sendo que enxergamos, de forma contraditória, um aumento exponencial nos gastos públicos.
Para suprir esses aumentos exponenciais — inclusive folhas de pagamento e dos próprios tribunais — nós nos deparamos com decisões que não acatam o pleito dos contribuintes, respaldados no claro texto da Constituição. Infelizmente, isso gera um cenário de maior insegurança, retração de investimentos e menor credibilidade no próprio Poder Judiciário.
Em face das cassações das liminares, o que se recomenda aos contribuintes que ainda não ingressaram com ações pedindo o adiamento do imposto? Eles devem desistir de ingressar na Justiça ou devem ir em frente?
Sávio Hubaide: Embora se tenha notícia de liminares cassadas, os contribuintes afetados pelas cobranças indevidas devem continuar pleiteando seus direitos perante o Judiciário, uma vez que não há orientação formada em precedente vinculante de tribunais superiores.
Pelo contrário, o tema foi recentemente submetido ao STF por meio das ADIs 7.070 e 7.066, as quais pendem de julgamento. E, seguindo a lógica do citado tema 1.093 da Repercussão Geral, em que a corte definiu o Difal como nova relação jurídico-tributária, espera-se que, por coerência e em respeito à segurança jurídica, a LC 190/2022 seja submetida à anterioridade.
Tanto é que, nas referidas ADIs, a Advocacia-Geral da União (AGU) prestou informações reconhecendo que a LC 190/22 disciplinou regras relativas à obrigação tributária, sujeição passiva, base de cálculo, alíquotas e créditos de ICMS, ou seja, afetou elementos da relação jurídica tributária, devendo se sujeitar à anterioridade. Da mesma forma, a AGU fez menção ao que decidiu o STF no tema 1.093, evidenciando o dever de coerência da corte ao julgar a nova controvérsia.
Por esses motivos, recomenda-se fortemente que os contribuintes ingressem em juízo, preferencialmente enquanto o STF não julga a questão.
Bianca Mareque: Para os contribuintes que ainda não ingressaram com ações, a recomendação é de que não desistam em razão da suspensão das liminares concedidas. Isso porque, apesar das referidas decisões, certamente a matéria será futuramente analisada pelo STF, que irá definir a discussão. Considerando ainda, nesse contexto, a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão quando da análise do tema pelo STF, é necessário aos contribuintes que ingressem com suas ações judiciais de modo que não restem prejudicados, caso o instituto de fato seja aplicado.
Paulo Coimbra: A despeito das decisões cassando as liminares no âmbito dos tribunais estaduais, recomenda-se que os contribuintes prossigam com suas ações, e aqueles que não adentraram, que entrem. Isso porque essa discussão irá desaguar, necessariamente, nos tribunais superiores em Brasília.
Assim, a questão inexoravelmente irá cair no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no STF, que estariam menos propensos à pressão dos estados — ou do poder executivo dos estados. As decisões dos tribunais estaduais poderiam até refletir no orçamento não apenas do estado, mas também dos respectivos tribunais de justiça das unidades federativas.
Assim, o deslinde da controvérsia ocorrerá somente nos tribunais superiores em Brasília, e essa etapa de passar pelas instâncias inaugurais da justiça estadual é um mero cumprimento protocolar do processo, mas cujo objetivo é alcançar os tribunais superiores, onde se espera haver maior sensibilidade dos julgadores ao pleito dos contribuintes.
Como ficam os contribuintes que começarem a pagar o imposto neste ano? Eles conseguirão obter restituição dos valores pagos, caso o STF julgue pela cobrança do Difal do ICMS só em 2023?
Sávio Hubaide: Ainda que o STF venha a julgar de forma favorável aos contribuintes, decisões sobre o direito à restituição de valores indevidamente recolhidos têm sido tomadas nas imprevisíveis modulações de efeito.
Como um dos critérios normalmente utilizados para assegurar o direito à restituição consiste na existência de ações individuais em curso, recomenda-se aos contribuintes o ajuizamento de ações antes do julgamento do Supremo.
Bianca Mareque: Para os contribuintes que já estão recolhendo o Difal do ICMS neste ano de 2022, é muito importante que ingressem com ação judicial que discuta a necessária observância ao princípio da anterioridade e demais teses relacionadas à discussão. Isso porque o ajuizamento da ação é de suma importância para que reste preservado aos sujeitos passivos do tributo o direito à restituição do Difal do ICMS caso o STF defina pela cobrança do tributo apenas no ano de 2023.
Paulo Coimbra: Aqueles contribuintes que pagaram imposto este ano, aquele imposto que já foi pago, dificilmente será restituído. Isso porque o ICMS é um imposto que comporta, por sua própria natureza e característica de ser um imposto sobre o consumo e plurifásico, o repasse do ônus econômico na cadeia econômica de produção e circulação de mercadorias até culminar no consumidor final.
Dessa forma, se o imposto foi pago, (foi incluído na nota fiscal como deve ser regularmente incluído e foi pago o seu valor embutido ICMS no preço), ocorre a trasladação do ônus econômico para o consumidor final.
Assim, se o imposto foi pago, nós vemos uma grande dificuldade de sua restituição a posteriori por força do disposto no artigo 166 do Código Tributário Nacional, que busca evitar o pedido de restituição em duplicidade, para que não cobre de volta do estado o ICMS pago indevidamente, tanto o agente econômico (que seria a empresa), como também o consumidor final que adquire a mercadoria e acabou suportando o ônus econômico do imposto.
Portanto, é melhor que os contribuintes questionem logo e entrem com suas ações, e, se for o caso, até depositem em juízo esses valores, porque uma vez pago, e por se tratar de ICMS – que é um imposto indireto e sobre o consumo – o artigo 166 pode ser um óbice de difícil transposição para que seja realizado esse direito de restituição, caso a ação, no futuro, seja julgada favoravelmente.