Condomínios podem vetar aluguel por meio de plataformas?

Polêmica sobre o limite das convenções e o direito de uso da propriedade está sob análise do STJ

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A questão é complexa e ainda permanece indefinida: os condomínios têm o direito de vetar o aluguel de imóveis por meio de plataformas como o Airbnb, o Booking.com e o Vrbo (novo nome do AlugueTemporada)? Ao proibirem os aluguéis, não estariam interferindo no direito de uso de propriedade? Intricadas, essas perguntas são alvo de discussão na 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em abril, a 4ª turma havia decidido que os condomínios poderiam proibir o aluguel de unidades intermediado por plataformas, mas agora o assunto voltou à pauta. O julgamento na 3ª Turma foi iniciado em setembro, mas acabou sendo paralisado por conta de pedido de vista. 

Um dos argumentos utilizados pelos condomínios para defender a proibição é que o aluguel de unidades via plataformas se assemelharia à hotelaria. No entanto, especialistas discordam dessa visão. Segundo Lúcia Aragão, sócia do Vieira Rezende Advogados, e Ewerton Oliveira, associado do mesmo escritório, a simples locação de um imóvel por breves períodos (ainda que sem contrato escrito) não caracteriza a realização de atividade de hotelaria. São necessários outros elementos para o enquadramento, como oferta em unidades de frequência individual e de uso exclusivo, prestação de serviços acessórios e cobrança em regime de diárias.

Por isso, para que não haja ofensa ao direito de propriedade do locador, Paula Chaves, sócia do Coimbra & Chaves Advogados, ressalta que qualquer decisão sobre o tema e que limite o direito de uso da propriedade deve passar por uma análise individualizada. “É importante analisar elementos fáticos que demonstrem, por exemplo, se haveria uma fragilidade à segurança dos condôminos frente ao número de novos ‘locatários por temporada’. Caso só existam argumentos vagos nesse sentido, o interesse coletivo que se estaria protegendo não passaria de mera inconformidade de terceiros frente ao direito de propriedade do locador”, observa.

Na entrevista a seguir, Chaves, Aragão e Oliveira esclarecem as principais polêmicas envolvendo o aluguel de unidades de condomínios por meio de plataformas.


A locação de imóveis por curtos períodos sem contratos de locação pode ser considerada como atividade de hotelaria?

Paula Chaves: Não. Apesar da semelhança do breve período em que o cliente ou usuário utiliza-se do local para seu alojamento, a locação por breves períodos (também conhecida como locação por temporada, quando inferior a 90 dias) não se enquadra como atividade de hotelaria. A atividade hoteleira pressupõe, conforme requisitos da Lei 11.771/2008, que o estabelecimento oferte mais de uma unidade de alojamento para clientes e usuários, bem como preste os serviços necessários para que os clientes utilizem o seu estabelecimento (usualmente podemos pensar em serviços de alimentação e limpeza, mas pode haver outros). Justamente pelo elevado volume de unidades (quarto/apart-hotel etc.) e de pessoas que frequentam o estabelecimento, bem como pela existência de serviços complementares à hospedagem, a atividade de hotelaria exige que os estabelecimentos hoteleiros mantenham vigentes licenças para funcionamento de suas atividades empresárias e estejam registrados perante entidades reguladoras, como o Ministério do Turismo.

Assim, as recentes decisões do STJ, apesar de abordarem um tema sensível e que comporta interpretação diversa, não podem ser entendidas como uma caracterização das locações por curtos períodos como atividade de hotelaria, ainda que não haja contrato por escrito para a locação (apesar dos riscos envolvidos e da elevada insegurança jurídica, não há vedação para que os contratos de locação por temporada sejam verbais).

Lúcia Aragão e Ewerton Oliveira: É necessário haver a correta distinção entre a atividade de hotelaria/hospedagem e a locação de imóvel por temporada. A atividade de hotelaria encontra definição legal no artigo 23 da Lei Federal 11.771/2008. É caracterizada pela presença dos seguintes elementos: (i) alojamento temporário; (ii) oferta em unidades de frequência individual e de uso exclusivo; (iii) prestação de serviços acessórios; (iv) cobrança em regime de diárias. 

Já a locação por temporada, por sua vez, é definida pelo artigo 48 da Lei 8.245/1991 nos seguintes termos: “Considera-se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.”

Respeitando entendimento em sentido contrário, não nos parece que o simples fato de o imóvel ser locado por períodos curtos, ainda que sem contrato escrito, caracterize a relação contratual como sendo atividade de hotelaria. É indispensável que, para tal caracterização, estejam presentes os elementos previstos em lei e que caracterizam a espécie contratual em comento. 

Nesse sentido, vale fazer referência ao voto do ministro Luis Felipe Salomão no âmbito do julgamento do Recurso Especial 1819075 pela 4ª Turma do STJ, verdadeira aula a respeito das definições de cada um dos tipos contratuais aqui analisados. Por seu turno, é importante ter em mente que no caso concreto analisado nos autos a própria parte confessou o emprego do imóvel para o desenvolvimento de atividade similar a um hostel. Fica claro, diante disso, a necessidade de análise acurada dos detalhes do caso concreto para a correta caracterização do tipo contratual em exercício.


Qual é a função e o alcance das convenções de condomínio? Que tipos de atividades as convenções podem restringir?

Paula Chaves: Em linhas gerais, a convenção de condomínio é um documento elaborado pelos proprietários e promitentes compradores das unidades de um condomínio edilício (usualmente, um condomínio vertical, também conhecido como edifício) na qual são estabelecidas as principais regras para a convivência entre os condôminos. A convenção de condomínio é registrada no cartório de registro de imóveis, vinculando todas as unidades de um condomínio, como os apartamentos de um edifício com fins residenciais. Nesse documento, estipulam-se regras para o uso das áreas comuns, sobre a forma de administração, as penalidades àqueles que desobedecerem às normas prescritas, a maneira que será feita o rateio das despesas, os direitos, deveres e as obrigações de cada morador, os deveres do síndico e dos integrantes do conselho, os quóruns para deliberação entres os condôminos, dentre outros assuntos de importância ao funcionamento e preservação do condomínio.

Lúcia Aragão e Ewerton Oliveira: A convenção de condomínio, de maneira muito objetiva, deve ser considerada como a lei geral interna que rege a administração do condomínio edilício e as relações de convivência entre os condôminos. Encontra amparo legal nos artigos 1.332 e seguintes do Código Civil. Os artigos 1.335 e 1.336, em especial, elencam de forma não exaustiva os direitos e deveres que as convenções de condomínio devem estipular. Embora funcione como lei geral interna do condomínio, a convenção encontra limites ao estabelecimento de direitos e deveres, não podendo exceder os parâmetros que a lei estipula. 

Nesse sentido, importante pontuar que a Lei 4.591/1964, que dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias, estabelece em seu artigo 19 que o condômino tem o direito de “usar e fruir, com exclusividade, de sua unidade autônoma, segundo suas conveniências e interesses, condicionados às normas de boa vizinhança, e poderá usar as partes e coisas comuns de maneira a não causar dano ou incômodo aos demais moradores, nem obstáculo ou embaraço ao bom uso das mesmas partes por todos”. 


As convenções de condomínio se sobrepõem, em todas as situações, aos interesses particulares dos proprietários?

Paula Chaves: Essa é uma discussão antiga em nosso ordenamento jurídico. A convenção de condomínio é um documento elaborado por particulares para regular as suas regras de convívio dentro do condomínio. Não é raro que o interesse de um condômino (ou de uma minoria) esbarre em regras previamente estipuladas na convenção de condomínio (que funciona como um microssistema de normas aplicáveis aos indivíduos que habitam o condomínio). Há uma visão mais pragmática que entende pela impossibilidade da convenção de condomínio regular qualquer matéria que conflite ou impeça o direito de propriedade do condômino sobre a sua unidade. Todavia, em que pese haver casos de nítido abuso de regras condominiais que não guardam propósito com o objetivo da proteção do interesse comum dos condôminos, pode haver casos em que as disposições convencionais devam se sobrepor aos interesses particulares e ao próprio direito de uso da propriedade pelo proprietário (por exemplo, o uso da unidade pelo proprietário e que coloque em risco a integridade do edifício). Definir, de imediato, quais seriam essas hipóteses seria simplificar um debate de alta complexidade no universo jurídico. Portanto, quando surgem esses conflitos, o melhor caminho permanece sendo o de se avaliar, caso a caso, qual o interesse comum que a regra da convenção de condomínio busca proteger, frente ao direito do proprietário que foi cerceado por tal regra.

Lúcia Aragão e Ewerton Oliveira: As convenções podem e devem restringir atividades prejudiciais ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes. Contudo, tais restrições devem ser estabelecidas dentro de critérios razoáveis, de modo que não impliquem em limitação desproporcional e descabida ao uso e fruição, com exclusividade, da unidade autônoma. 

Como exemplo em relação ao exposto acima, e usando a própria referência aos contratos de locação por temporada, é possível que a convenção de condomínio e o regimento interno estabeleçam normas de conduta a serem seguidas pelos proprietários ao locarem seus imóveis por temporada, tais como a realização do cadastro dos ocupantes do imóvel perante a administração do condomínio e a obrigatoriedade de dar aos ocupantes amplo conhecimento das normas internas condominiais e da obrigatoriedade de serem cumpridas durante toda a permanência no imóvel. Por outro lado, a convenção não deve impedir que o imóvel seja locado por temporada, tendo em vista que se trata de espécie contratual prevista e permitida em lei e sua proibição causa limitação injustificável ao direito de propriedade. 


A proibição do aluguel de imóveis em condomínios via Airbnb pode ser considerada uma ofensa ao princípio de propriedade?

Paula Chaves: Qualquer decisão sobre o tema e que limite o direito de uso da propriedade deveria passar por uma análise individualizada, considerando os direitos da coletividade de condôminos, frente ao direito do proprietário que deseja realizar a locação da sua unidade pelo Airbnb ou por outra plataforma. É importante analisar elementos fáticos que demonstrem, por exemplo, se haveria uma fragilidade à segurança dos condôminos frente ao número de novos “locatários por temporada”, ou se o condomínio disporia de condições para realizar a vigilância adequada de todos os frequentadores do edifício. A utilização não fundamentada de argumentos vagos, como o comprometimento da segurança do condomínio, pode sim vir a ofender o princípio da propriedade, uma vez que o interesse coletivo que se estaria protegendo não passaria de mera inconformidade de terceiros frente ao direito de propriedade do locador.

Não é demais destacar o relevante efeito econômico que aplicativos como o Airbnb geram para o mercado imobiliário, movimentando quantias bilionárias e trazendo uma maior liquidez a ativos que poderiam ser pouco atrativos para locações prolongadas (ou mesmo gerando um novo mercado no qual o proprietário passa a ausentar-se da sua residência para lucrar com locações pontuais). Por mais que essa relevância econômica não possa servir de “válvula de escape” para a indiscriminada utilização da unidade pelo proprietário, ela não pode ser desconsiderada em uma análise do tema, especialmente nos casos em que o condomínio não seja capaz de provar qualquer afronta direta ao interesse da sua coletividade.

Lúcia Aragão e Ewerton Oliveira: Primeiramente, é importante pontuar que o uso de ferramentas tais como os sites Airbnb, Vrbo, Booking.com, dentre outros similares, não é por si só elemento que caracteriza o tipo de relação contratual em curso. Conforme manifestado anteriormente, é indispensável a análise do caso concreto para o adequado enquadramento da relação contratual existente. Nesse sentido, o proprietário do imóvel poderá empreender esforços para de maneira direta estabelecer contratos relativos ao imóvel, fazer uso de corretores de imóveis ou fazer uso de plataformas eletrônicas, tais como as citadas acima, sem que isso seja o elemento definidor do tipo contratual. 

Logo, a proibição do aluguel de imóveis em condomínios edilícios via Airbnb, por si só, violaria frontalmente o direito de propriedade, cabendo ressalvar que se trata aqui de condomínios residenciais edilícios “puros”, não cabendo o mesmo tipo de consideração para os casos, por exemplo, de condomínios “mistos”, que contemplam residências e unidades voltadas à atividade de hotelaria, casos em que por sua própria natureza a vedação ao uso de plataformas eletrônicas para a locação de imóveis faz parte da essência do negócio.

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