No mês de janeiro, as notícias sobre a proliferação do novo coronavírus em uma província chinesa parecia — e efetivamente era — algo distante da realidade brasileira. Dois meses depois, contudo, o cenário é totalmente diferente. Após se alastrar por diversos países da Europa, causando especial dificuldade para a população do norte da Itália, o covid-19 foi oficialmente declarado como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e fez com que autoridades mundo afora adotem medidas com o objetivo de reduzir o ritmo de disseminação do vírus.
Na Europa, alguns países determinaram o fechamento temporário de fronteiras e impuseram medidas restritivas de direitos fundamentais, como a circulação de pessoas internamente. No continente americano, os Estados Unidos proibiram voos originários do continente de pousarem em solo americano pelo prazo de 30 dias, tudo na tentativa de reduzir o ritmo de disseminação. É um cenário somente visto em situações de exceção.
Por aqui, além das orientações já transmitidas pelo Ministério da Saúde, estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina já adotaram medidas oficiais de prevenção de contágio do novo coronavírus, incluindo-se a suspensão de aulas, a proibição de realização de eventos públicos que reúnam uma quantidade de pessoas acima determinado número, dentre outras.
Os efeitos dessa pandemia, claro, não ficam restritos ao cotidiano da população: as relações da administração pública com os particulares não ficam imunes. Além da eventual existência de disposições contratuais que versem sobre assunção de riscos advindos de casos de força maior – o que hoje é bastante comum em instrumentos que lançam mão de uma “matriz de risco” – a Lei nº 8.666/93 prevê em seu artigo 65, inciso II, alínea ‘d’, que os contratos administrativos podem ser revistos quando ocorrerem fatos imprevisíveis ou eventos previsíveis, mas de consequências incalculáveis, configurando álea extraordinária.
A maior abrangência da legislação administrativa em relação ao que consta do Código Civil afasta um pouco da discussão sobre o conceito de imprevisibilidade, uma vez que, na seara administrativa, também os fatos previsíveis podem servir de causa para a recomposição do reequilíbrio econômico-financeiro, desde que as consequências dele decorrentes sejam imprevisíveis.
Assim, mesmo que uma pandemia causada por um vírus pudesse ser prevista pela ciência, não me parece verossímil afirmar agora — quiçá com antecedência — as consequências de um evento dessa magnitude, pelo que, em linha de princípio, o gatilho para eventual reequilíbrio pode, em tese, vir a ser disparado.
Contudo, isso depende, é claro, da análise factual. Essa análise pode, de um lado, tornar inequívoca a incidência do mecanismo caso, por exemplo, a pandemia impeça a produção ou entrega de determinado bem adquirido pelo poder público. Já de outro, pode afastar a necessidade de reequilíbrio caso, por hipótese, o contratante tenha praticado ato que tenha colocado em risco uma relação contratual que, a princípio, estava a salvo das mazelas da pandemia.
Não há, portanto, resposta definitiva e a priori sobre a possibilidade de se invocar a possibilidade de reequilíbrio em razão da pandemia, apesar de haver razoável consenso de que o fato em si é imprevisível, ou ao menos de consequências imprevisíveis.