Redução do free float: positiva ou negativa para o mercado?
Bolsa quer reduzir quantidade de ações em circulação nos segmentos diferenciados
O free float (quantidade de ações em circulação) das companhias listadas nos níveis diferenciados de governança corporativa da B3 poderá ser reduzido, a depender do resultado da consulta pública aberta pela Bolsa no último dia 21 de outubro. A proposta da instituição é reduzir, de 25% para 20%, o free float das ações negociadas no Novo Mercado e nos níveis 1 e 2. No entanto, a medida é controversa e poderia gerar tanto efeitos negativos quanto positivos, consideram os especialistas.
A B3 estuda ainda mudar uma regra que, em caráter de exceção, autoriza o não cumprimento do free float mínimo de 25% estabelecido para o Novo Mercado. Atualmente, empresas listadas nesse segmento que realizem ofertas públicas iniciais (IPOs) superiores a 3 bilhões de reais ou cujas ações transacionem volume médio diário superior a 25 milhões de reais (média dos últimos doze meses) podem ter a quantidade de ações em circulação reduzida para 15% do capital social. A Bolsa propõe uma diminuição desses valores para, respectivamente, 2 bilhões de reais e 20 milhões de reais por dia. Além disso, pretende estender essa exceção para os níveis 1 e 2. Os participantes do mercado podem contribuir com sugestões às propostas até o dia 22 de novembro.
Segundo comunicado divulgado pela Bolsa, as mudanças visam a adequação das regras às práticas internacionais. Um estudo feito pela B3 mostra que o percentual mínimo de 25% é superior ao praticado por outras bolsas relevantes e em mercados em estágio de desenvolvimento similar ao brasileiro. As alterações sugeridas também levam em conta a expansão do número de investidores na bolsa, que somavam 3,2 milhões no primeiro semestre de 2021. Esse aumento impulsionou os volumes negociados em pregão, abrindo a possibilidade de redução do percentual de free float sem prejuízo à liquidez dos papéis, justifica a Bolsa.
O crescimento do mercado também motivou a B3 a colocar em audiência pública, em novembro do ano passado, uma proposta de desconto regulatório para empresas em processo de IPO. Como resultado dessa consulta, em abril deste ano, foram flexibilizadas algumas regras, como o prazo de adequação à constituição da área auditoria interna e de elaboração de políticas de remuneração, transações com partes relacionadas e gerenciamento de riscos.
No entanto, os efeitos da redução do free float sobre o mercado de capitais brasileiro ainda não são um consenso: há aspectos positivos e negativos. Para os advogados Felipe Hanszmann e Caio Brandão, respectivamente sócio e associado do Vieira Rezende Advogados, a princípio, a redução do percentual mínimo do free float pode diminuir a percepção de incremento na governança corporativa, aumentando a concentração de ações nas mãos dos acionistas controladores, elevando o risco de liquidez e a volatidade para os acionistas minoritários.
Outro possível efeito, acreditam, é que a medida prejudique o exercício de direitos dos minoritários que dependem da reunião de um percentual mínimo do capital social. A regra do free float mínimo tende a facilitar o exercício desses direitos porque eleva a dispersão das ações, observam os advogados. Do ponto de vista da governança, o free float mais elevado também é positivo porque teoricamente aumenta o número de acionistas interessados em supervisionar a administração e coíbe a existência de benefícios privados de controle gerencial ou majoritário, consideram Hanszmann e Brandão.
Érika Aguiar Carvalho Fleck, sócia do Carneiro de Oliveira Advogados, explica que dentre os direitos dos minoritários relacionados a percentuais mínimos de participação no capital social das companhias, estão o de solicitar voto múltiplo para eleição de conselheiros de administração, instalar o conselho fiscal e promover ação de responsabilidade contra administradores. “Quanto maior o free float, maior a chance de os acionistas minoritários deterem, em conjunto, ações que correspondam ao percentual mínimo para exercício dos direitos”, afirma.
Fleck cita um exemplo que dá mais concretude a essa situação. A Instrução CVM 627/20 prevê que, em companhias abertas com capital superior a 10 bilhões de reais, acionistas representando 1% do capital social total podem requisitar informações ao conselho fiscal sobre matérias de sua competência. Em uma companhia com free float de 50%, esse percentual mínimo corresponderia a 2% das ações em circulação. Mas ele aumentaria significativamente em uma companhia com free float de 5%: corresponderia a 20% das ações em circulação.
No entanto, a flexibilização das normas da B3 pode vir a ser positiva, considera a advogada Bárbara Domene, associada do Carneiro de Oliveira Advogados. Ela afirma que a redução do free float pode incentivar as companhias a ingressar em um dos segmentos diferenciados de listagem, e que deve dar cenário de maior segurança jurídica para as companhias já listadas que ainda não conseguiram atingir os patamares de free float atuais.
Opinião semelhante tem Thomas Magalhães, sócio do Magalhães & Zettel Advogados: “Com a redução do free float, além da adequação aos patamares internacionais, haverá um aumento das empresas ofertando suas ações”, afirma.
A seguir, Hanszmann, Brandão, Fleck, Domene e Magalhães abordam os principais aspectos do free float mínimo e as possíveis implicações de sua redução.
Atualmente, quais são os free floats mínimos para as ações listadas nos níveis 1 e 2 e no Novo Mercado? Há condições em que as regras podem ser flexibilizadas?
Felipe Hanszmann e Caio Brandão: De acordo com as regras em vigor, é exigido um free float mínimo de 25% para os níveis 1 e 2. Esse mesmo percentual é aplicado ao Novo Mercado, podendo ser reduzido para 15% desde que o volume financeiro médio diário de negociação das ações da companhia se mantenha igual ou superior a 25 milhões de reais nos 12 meses anteriores. Além disso, existem alguns cenários em que seria possível a manutenção de um percentual menor, como no caso de realização de oferta pública de ações (OPA) por preço justo ou alienação de controle, sendo tal autorização automática por um período de 18 meses, ou mediante autorização específica da B3.
Bárbara Domene: Os regulamentos de listagem do Nível 1, do Nível 2 e do Novo Mercado estabelecem que as companhias listadas devem manter ações em circulação (free float) em percentual correspondente a, no mínimo, 25% de seu capital social.
Com relação às companhias listadas nos Níveis 1 e 2 de governança corporativa, é permitida a manutenção temporária de ações em circulação em percentual inferior a 25% em caso de aumento de capital e de realização de oferta pública de ações (OPA) em decorrência da alienação de controle. Os regulamentos desses segmentos preveem ainda a possibilidade de autorização específica da B3 para prorrogação dos prazos para enquadramento ou recomposição do free float.
Já no caso das companhias listadas no Novo Mercado, o free float pode ser correspondente a 15% do capital social, desde que o volume financeiro médio diário de negociação das ações (ADTV) de sua emissão se mantenha, nos 12 meses anteriores, igual ou superior a R$ 25 milhões.
Além disso, observadas as demais regras específicas previstas no regulamento, o free float é flexibilizado para as companhias listadas no Novo Mercado nas seguintes situações:
- caso a companhia ingresse no Novo Mercado concomitantemente à realização de OPA, hipótese em que a companhia pode manter free float de pelo menos 15% do capital social, nos primeiros 18 meses, desde que o volume financeiro das ações em circulação da respectiva oferta seja superior a R$ 3 bilhões; e
- nos casos de: (a) desenquadramento em relação ao ADTV, com relação às companhias autorizadas a manter ações em circulação em percentual correspondente a, no mínimo, 15%; (b) subscrição total ou parcial de aumento de capital pelo acionista controlador da companhia, que não tenha sido integralmente subscrito por quem tinha direito de preferência ou de prioridade, ou que não tenha contado com número suficiente de interessados na respectiva oferta pública de distribuição; e (c) realização de OPA a preço justo ou por alienação de controle. Nessas hipóteses, as companhias do Novo Mercado podem manter free float abaixo dos 25% durante o período de 18 meses.
Thomas Magalhães: O free float é um percentual que indica a quantidade de ações que as empresas listadas na bolsa de valores possuem para livre circulação no mercado.
O Novo Mercado é o mais alto nível de governança corporativa estabelecido pela B3. Sendo um segmento restrito a empresas que adotam as melhores práticas, as companhias se comprometem a manter no mínimo 25% das ações em circulação (free float), ou 15%, caso o volume diário de negociação ultrapasse 25 milhões de reais.
Em relação aos Níveis 1 e 2, ambos com um padrão de governança corporativa acima do estabelecido pela Lei das Sociedades Anônimas (Lei das S.As), atualmente o free float mínimo também é de 25%.
A diminuição do free float das ações listadas nos níveis diferenciados dependerá do resultado da consulta pública. O objetivo é equiparar o Brasil a mercados internacionais, como o Canadá e a Austrália.
Com o crescimento do mercado e a expansão do número de investidores na bolsa, foram flexibilizadas algumas regras para as empresas em processo de oferta pública inicial (IPO), como o prazo de adequação à constituição da área auditoria interna e de elaboração de políticas de remuneração, transações com partes relacionadas e gerenciamento de riscos.
Para as companhias entrantes na bolsa, há uma regra alternativa que permite que o free float seja de 15% em caso de IPOs acima de 3 bilhões de reais. Conforme a proposta da B3, a ideia é diminuir o valor captado mínimo para 2 bilhões de reais para que os 15% sejam aplicáveis.
Quais são os objetivos das regras que exigem uma liquidez mínima para as ações listadas em bolsa?
Felipe Hanszmann e Caio Brandão: A regra do free float mínimo tem o objetivo de garantir uma maior liquidez para os investidores, já que o maior número de ações em circulação tende a facilitar a conversão dos papéis em capital por conta da manutenção de um mercado ativo, bem como proteger os investidores da alta volatidade de preços, tendo em vista que uma maior dispersão dos papéis entre os minoritários tende a gerar uma maior estabilidade na cotação.
Bárbara Domene: É possível afirmar que existem dois principais objetivos em se estabelecer um free float mínimo. O primeiro deles é estimular a liquidez das ações negociadas no mercado de valores mobiliários. O segundo é garantir condições para que os acionistas não controladores possam exercer as prerrogativas e direitos previstos na legislação e regulamentação aplicável às companhias abertas, que exijam a titularidade de percentual mínimo de participação societária.
Sob a ótica do direito societário, o exercício dos direitos dos acionistas minoritários está relacionado ao percentual de ações em circulação? Sob a ótica da governança corporativa, existe alguma relação entre o free float das companhias e suas práticas com relação aos acionistas?
Felipe Hanszmann e Caio Brandão: Diversos direitos dos acionistas minoritários previstos na Lei das S.As (Lei 6.404/76) estão sujeitos a percentuais mínimos de participação no capital social, como o acesso aos livros societários, a propositura de ação derivada contra os administradores e a convocação de assembleias. Assim, a princípio, a regra do free float mínimo tende a facilitar o exercício desses direitos, uma vez que eleva a dispersão das ações.
Do ponto de vista de governança, a existência de free float maior teoricamente pode aumentar o número de acionistas interessados em supervisionar a administração. Além disso, a inexistência de acionista independente com número relevante de ações pode permitir o aumento de benefícios privados de controle, seja na hipótese de controle gerencial ou majoritário. Há estruturas de governança corporativa que podem mitigar eventuais riscos, como a emissão de ações preferenciais. A efetividade desses freios e contrapesos está intimamente ligada à capacidade de enforcement das ferramentas existentes.
Érika Aguiar Carvalho Fleck: Conforme definição constante dos regulamentos de listagem dos segmentos especiais da B3, as ações em circulação são todas as ações emitidas pela companhia listada menos as ações detidas pelo acionista controlador, por pessoas a ele vinculadas ou por administradores da companhia, bem como as ações em tesouraria e golden shares.
Grande parte dos direitos dos minoritários previstos em lei e na regulamentação aplicável está vinculada a percentuais mínimos de participação no capital social da companhia. Dentre esses direitos, destacamos o direito de solicitar voto múltiplo para eleição de conselheiros de administração, instalar o conselho fiscal e promover ação de responsabilidade contra administradores. Quanto maior o free float, maior a chance de os acionistas minoritários deterem, em conjunto, ações que correspondam ao percentual mínimo para exercício dos direitos.
Por exemplo, a Instrução CVM 627/20 prevê que, em companhias abertas com capital superior a 10 bilhões de reais, acionistas representando 1% do capital social total podem requisitar informações ao conselho fiscal sobre matérias de sua competência. Em uma companhia com free float de 50%, por exemplo, esse percentual mínimo corresponderia a 2% das ações em circulação, enquanto em uma companhia com free float de 5%, isso corresponderia a 20% das ações em circulação.
Thomas Magalhães: Sob as duas óticas, há ligação direta, já que o free float mínimo protege os acionistas, em especial os minoritários, além de melhorar a transparência da empresa.
Qual seria o efeito da redução do free float para o mercado de capitais brasileiro?
Felipe Hanszmann e Caio Brandão: A princípio, a redução do percentual mínimo do free float pode reduzir a percepção de incremento na governança corporativa, que é o princípio por trás da exigência de sua manutenção nos segmentos especiais de listagem. Isso porque poderá elevar a concentração de ações nas mãos dos acionistas controladores, aumentando o risco de liquidez e volatidade para os acionistas minoritários, ainda mais considerando que o mercado de capitais brasileiro é bastante concentrado, diferentemente dos Estados Unidos, onde o mercado é formado majoritariamente por corporations (companhias com capital pulverizado).
Além disso, tal redução pode impactar o exercício de certos direitos dos minoritários que dependem da reunião de um percentual mínimo do capital social, os quais, inclusive, são reduzidos pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no âmbito da Instrução 627/20 considerando o porte da empresa. Por outro lado, vale lembrar que a adesão aos segmentos especiais de listagem é voluntária pelas companhias. Consequentemente, seria possível que as companhias que não cumprissem tal exigência simplesmente migrassem para o mercado tradicional, observadas as regras específicas.
Bárbara Domene: A proposta da B3 de redução dos patamares de free float nos segmentos de listagem do Novo Mercado, Nível 2 e Nível 1 acompanha as tendências regulatórias em diferentes mercados de valores mobiliários, e as mudanças propostas possuem o objetivo de atualizar o mercado de capitais brasileiro às práticas internacionais que, atualmente, são menos exigentes do que aquelas atualmente em vigor no Brasil.
Em linha com o anúncio dessa audiência pública feito pela B3, o mercado de capitais brasileiro passou por transformações nos últimos anos, em especial com o crescimento do número de investidores na bolsa de valores (um aumento de mais de 350% desde 2018) – o que permite assumir que para se atingir um nível de ADTV adequado não seja necessário um volume de IPO tão elevado.
Como resultado, a intenção inicial da B3 é reduzir o percentual mínimo de free float dos segmentos de listagem do Novo Mercado, Nível 2 e Nível 1, dos atuais 25% para 20%. Além da redução do patamar mínimo de free float, a B3 também propõe ampliar a regra alternativa atualmente aplicável ao Novo Mercado para os demais segmentos, possibilitando a manutenção de patamar de 15% de free float mediante o cumprimento de volumes mínimos de IPO e ADTV, além de reduzir o volume de IPO de 3 bilhões de reais para 2 bilhões de reais, e reduzir o volume de ADTV de 25 milhões de reais para 20 milhões de reais.
Tendo em vista o panorama acima, caso as medidas propostas pela B3 sejam implementadas, as regras que tratam dos patamares de free float dos três segmentos mencionados serão consideravelmente flexibilizadas, e isso pode representar tanto um incentivo para companhias (sejam elas fechadas ou de capital aberto) ingressarem em um dos segmentos de listagem, quanto um cenário de maior segurança jurídica para as companhias atualmente listadas em um dos três segmentos, mas que, pelos mais diversos motivos, possuem dificuldade em atingir os patamares de free float atuais.
Thomas Magalhães: Com a redução do free float, além da adequação aos patamares internacionais, haverá um aumento das empresas ofertando suas ações.
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