Caso Linx-Stone suscita debate sobre cláusula de não competição

Inclusão de indenização a executivos envolve questionamentos que vão de segurança jurídica a governança corporativa

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O imbróglio causado pela inserção de uma cláusula de não competição dos principais executivos da Linx na operação de fusão com a Stone abriu espaço para uma série de questionamentos importantes para o mercado de capitais brasileiro. O caso suscitou, por exemplo, discussões sobre a possibilidade de a indenização a ser paga aos executivos pelo fato de ficarem impedidos de atuar em empresas concorrentes configurar um prêmio de controle disfarçado. “No Brasil, não há precedentes claros a respeito de cláusulas de não competição adequadas ou não, nem sobre os parâmetros que devem ser utilizados para que seu valor possa ser considerado razoável”, afirma a advogada Gabriela Ponte Machado.

Nesse caso concreto, destaca a advogada, a CVM iniciou dois processos administrativos. O primeiro para apurar eventual ocorrência de insider trading — uso indevido de informação privilegiada para obtenção de vantagem na negociação de ações — e o segundo relacionado aos termos e condições da operação como um todo. Ela ressalta que, para além dos aspectos regulatórios e de proteção aos investidores, a operação coloca o mercado de capitais diante de importantes reflexões a respeito de governança corporativa.

Eugênia Siqueira, sócia do Coimbra & Chaves Advogados, destaca a questão do valor da indenização. “Quando esse preço é separado do valor da operação e fixado em condições fora de padrões de mercado ou privilegiando sobremaneira o pacto restritivo à concorrência, ele pode representar um ‘prêmio de controle’ disfarçado”, observa.

A seguir, Machado e Siqueira detalham a “novela” Linx-Stone e tratam das mais relevantes implicações do caso.


Tem causado controvérsia a inclusão de uma cláusula de não competição dos fundadores da empresa de tecnologia Linx na negociação da fusão com a Stone. Como funciona esse tipo de cláusula? Qual é seu objetivo?

A cláusula de não competição surgiu nas operações de M&A (fusões e aquisições) inicialmente com o objetivo de cobrir os custos e despesas da pessoa afastada das suas atividades durante o período restrito, uma vez que não poderia exercer plenamente suas atividades. Em alguns casos, a cláusula passou a incluir também um incentivo (prêmio ou bônus) para evitar que os executivos usem sua expertise em favor de concorrentes após deixarem seu cargo, já que não estariam — a partir de então — mais sujeitos a essa obrigação de lealdade imposta por lei. Essa segunda função da cláusula de não competição é considerada mais controversa. Alguns argumentam que, sob o ponto de vista ético, o administrador retirante já deveria fazê-lo sem que fosse necessário nenhum prêmio para isso.

De qualquer modo, a não competição tem o objetivo de remunerar o “não fazer”, pois a remuneração acertada depende que o(a) beneficiário(a) se comprometa a não divulgar informações ou, ainda, a não trabalhar em empresas concorrentes.

Importante lembrar, ainda, que esse tipo de cláusula é ainda mais utilizada em empresas que lidam com tecnologia, tendo em vista seus projetos de inovação, planos estratégicos e segredos industriais conduzidos pelas pessoas que são beneficiadas pela cláusula. Portanto, o cérebro e as ideias dessas pessoas costumam ter um valor ainda maior no setor.

Essa cláusula é muito comum em operações de M&A. Por meio dela, aquele que aliena — sejam os ativos que integram a atividade empresarial, seja a participação societária naquela empresa — fica proibido de oferecer concorrência ao comprador, sempre por determinado período e/ou em um certo mercado. A jurisprudência entende que, por essa cláusula, os agentes econômicos visam diminuir o grau de competição entre eles e por isso a delimitação temporal, geográfica e de escopo é importante.


Uma cláusula non compete pode representar um prêmio de controle disfarçado?

No Brasil, não há precedentes claros a respeito de cláusulas de não competição adequadas ou não, nem sobre os parâmetros que devem ser utilizados para que seu valor possa ser considerado razoável. Em outros países, com mercados de capitais mais consolidados, líquidos e pulverizados, existem alguns exemplos dos critérios que são comumente utilizados para análise da cláusula de não competição.

Por exemplo, se analisarmos as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, verificaremos que uma remuneração adequada de não competição considerará os seguintes fatores: a duração e o escopo da proibição de não competição, o escopo da atividade abrangida pela não competição e a qualificação do empregado sujeito à restrição, sua experiência e conhecimento, além de outros pontos relevantes. Com relação ao valor, dependerá muito das circunstâncias do negócio, mas, de forma geral, deverá ser equivalente a 50% do salário-base antes de deixar a posição. Já na Índia, eventual prêmio de não competição pago aos administradores deverá ser igualmente pago aos acionistas da empresa para evitar qualquer favorecimento.

Em outras palavras, a razoabilidade do valor a ser pago pela obrigação de não fazer representa um aspecto relevante para avaliar se houve (ou não) favorecimento impróprio aos seus beneficiários.

Além disso, para que a cláusula possa ser caracterizada como uma simulação de prêmio de controle, os beneficiários da compensação de não competição precisam ser também titulares do controle na operação de alienação.

No caso da Linx, especificamente, os valores de não competição chamam, de fato, a atenção. Tanto é verdade que, na revisão do acordo com a Stone, apresentado no dia 1º de setembro, o valor da não competição foi reduzido em 40%, para 185 milhões de reais, ao passo que o valor do prêmio por ação foi aumentado de 33,76 reais para 35,10 reais.

No entanto, dois aspectos devem ser considerados nesse cenário da oferta da Stone para aquisição da Linx. Primeiro: os beneficiários da cláusula de não competição, embora tenham influência significativa na administração da companhia e tenham conduzido toda a negociação com a Stone, dificilmente serão considerados acionistas controladores da Linx, porque são titulares de apenas 14% do seu capital social. Então, seria um desafio alegar que a compensação por não competição foi uma simulação de prêmio de controle, já que eles não têm o controle efetivo da companhia. Em segundo lugar, para verificar se os valores estão fora dos parâmetros de razoabilidade, seria necessário fazer uma análise com consultor independente, comparativamente a outras empresas de porte similar e do mesmo setor que pagaram compensação de não competição. Os conselheiros independentes podem fazer a contratação de consultores independentes capazes de confirmar a adequação do valor.

Ainda que esteja restrita a determinado mercado, a cláusula de non compete é uma restrição forte ao direito de o empreendedor exercer determinada atividade. Assim, não é incomum se ver o pagamento de um preço pela não concorrência, muitas vezes incluído no valor da operação, deixando claro que a operação não seria feita nos moldes firmados caso a não competição não fosse pactuada. Quando esse preço é separado do valor da operação e fixado em condições fora de padrões de mercado ou privilegiando sobremaneira o pacto restritivo à concorrência, ele pode representar um “prêmio de controle” disfarçado. Nesse caso, ela pode ser interpretada como um subterfúgio para valorizar a participação de determinadas pessoas ou para bonificar determinados acionistas em detrimento de outros.


Qual é papel da CVM num caso como o da fusão Linx-Stone, em que há possibilidade de prejuízo para acionistas minoritários?

No presente caso da Linx, a CVM iniciou dois processos administrativos. O primeiro para apurar eventual ocorrência de insider trading (ou seja, uso indevido de informação privilegiada para obtenção de vantagem na negociação de ações). O segundo processo é para apuração dos termos e condições da operação como um todo.

Na análise da transação de forma geral, a CVM tem competência para analisar se houve quebra do dever fiduciário dos administradores na aprovação da transação. Portanto, a CVM deverá analisar se os administradores da Linx, ao aprovarem a operação com a Stone, infringiram o seu dever fiduciário de lealdade com a companhia e seus acionistas.

Nesse caso, a CVM não tem competência para responsabilizar civilmente os administradores ou intervir na aprovação da operação. Poderia, apenas, se verificados os elementos que comprovem a violação do dever de lealdade dos administradores, impor advertência, multa e até, em casos mais graves, inabilitar os administradores para exercer tal função por determinado período.

Claro que uma decisão administrativa desfavorável da CVM em relação aos administradores e à lisura de seu comportamento na operação seria um forte embasamento para uma ação de responsabilidade civil pelos acionistas contra os administradores e para intervenção na aprovação da venda para a Stone. Mas ainda é cedo para prever o desfecho dessa controvérsia.

A autarquia já abriu um processo administrativo envolvendo a operação devido às reclamações por parte dos investidores. Nesse primeiro momento, o objetivo é verificar se há inadequação à legislação e, caso verificada alguma possível infração, cabe à CVM dar continuidade aos trabalhos e investigar se o acordo entre a Stone e os fundadores da Linx teria sido um subterfúgio para que os fundadores recebam um “prêmio disfarçado”. Caso fique comprovado que os fundadores agiram em benefício próprio e, portanto, em desacordo com seus deveres de diligência e lealdade para com a companhia, eles devem ficar impedidos de aprovar a operação.


As cláusulas de não competição são saudáveis ou prejudiciais ao mercado de capitais, na sua opinião?

As cláusulas de não competição representam um importante papel nas operações de fusões e aquisições de forma geral. Tanto é verdade que é possível contestar a validade de uma cláusula de não competição se não houver uma compensação àquele que assumir a obrigação restritiva de suas atividades. Ou seja, pode ser considerado abusivo exigir que um administrador ou empregado não possa exercer plenamente suas atividades sem que seja remunerado por isso.

A questão aqui é traçar parâmetros de razoabilidade para dar mais segurança jurídica às transações, tanto sob o ponto de vista dos controladores e administradores das companhias, quanto sob o prisma dos acionistas minoritários.

Na verdade, portanto, o que prejudica o mercado de capitais não é a cláusula de não competição em si, mas a insegurança jurídica que a envolve por falta de precedentes e regulação do tema.

Todo esse processo de questionamento pelos minoritários, análise pelos tribunais e pelo regulador e criação de precedentes também faz parte do amadurecimento do mercado de capitais brasileiro.

Vale ter em vista que uma estrutura de governança corporativa adequada também pode contribuir para que a verificação da transação seja realizada de forma mais profunda e detalhada, questionando pontos relevantes.

Com base na ata da reunião do conselho de administração disponibilizada pela Linx, é possível ver que os conselheiros independentes questionaram o CEO da companhia, o assessor financeiro e os assessores jurídicos sobre a adequação da remuneração pela não competição e sobre a penalidade prevista no acordo caso a transação com a Stone não fosse concluída. Tendo em vista as manifestações no sentido de que tais dispositivos estariam de acordo com os parâmetros de mercado, os conselheiros independentes decidiram não opinar sobre a cláusula de não competição, já que não afetaria diretamente a companhia, e aprovaram a imposição de penalidade pela não conclusão da transação. No entanto, em diversos momentos da ata, é possível identificar a pressão exercida para que tudo fosse aprovado às pressas. A reunião foi convocada as 10 horas para ser realizada às 17 horas, a minuta do acordo foi submetida aos conselheiros as 17h01 e tudo precisava ser aprovado naquela noite.

Ora, sob o ponto de vista de boas práticas de governança, uma transação dessa magnitude deveria envolver a análise de outros órgãos e comitês, uma opinião de consultores independentes contratados pelos membros independentes do conselho de administração para evitar distorções, tudo com o propósito de dar mais segurança e proteger a decisão da companhia como um todo.

Além disso, três dos cinco membros do conselho de administração da Linx celebraram um acordo de voto assumindo a obrigação de aprovar a transação com a Stone, bem como a obrigação de exclusividade e a previsão de uma multa astronômica em comparação com o tamanho da Linx se a operação não fosse aprovada. Isso demonstra os incentivos pessoais dos administradores em relação à Stone, os quais comprometiam sua imparcialidade no julgamento dos termos da operação.

Analisando a sequência dos fatos, estando de fora da operação, o que podemos garantir é que os conselheiros independentes da Linx poderiam ter solicitado mais tempo para análise da operação com extensão do período de exclusividade, bem como ter solicitado a opinião e intervenção de comitês, como os comitês de estratégia e de auditoria. Uma transação dessa proporção para a companhia e seus acionistas requer serenidade e segurança de que todos os aspectos foram considerados para evitar desvios.

O presente caso acaba por mostrar, mais uma vez, como a falta de observância a boas práticas de governança pode expor fraquezas da companhia e trazer resultados prejudiciais para todos os envolvidos.

Elas são saudáveis quando se prestam a incentivar os investimentos e gerar maior segurança ao comprador ou investidor. Ou seja, o non compete é um meio de garantir que o adquirente ou investidor aplicará seus recursos num negócio que não será destruído ou prejudicado pela competição daqueles que o criaram. Contudo, caso estipuladas de forma muito ampla, essas cláusulas podem se tornar prejudiciais porque acabam impedindo o desenvolvimento de novos negócios e produtos por empreendedores.


Quais cuidados as empresas devem ter ao costurar cláusulas de não competição para evitar problemas futuros?

Como mencionado acima, é difícil determinar os parâmetros para uma cláusula de não competição adequada para evitar questionamentos.

No caso da Linx, um dos argumentos levantados pelo Instituto Brasileiro de Ativismo Societário e Governança para demonstrar que o valor inicial (antes do reajuste na nova proposta) poderia ser caracterizado como prêmio de excessivo é justamente que os adicionais de não competição combinados para os três fundadores equivalem a um prêmio de 35% no caso dos três sócios conjuntamente e de 63% no caso específico do CEO, Alberto Menache, em relação ao que os demais acionistas de mercado da Linx receberão.

Em adição a isso, no caso de Menache, o prêmio de competição causa ainda mais dúvida, porque ele firmou um acordo para continuar trabalhando para a Stone, com uma remuneração prevista de quase 90 milhões de reais por três anos de serviço. Na nova proposta da Stone, de 1º de setembro, esse valor foi também foi reduzido.

Com relação a Menache, estranheza particular decorre do fato de o administrador receber para não competir, mas estará, na verdade, trabalhando para a empresa, o que eliminaria por si só o risco de competição. Na ata da reunião do conselho de administração, o atual CEO da Linx esclareceu que o contrato de trabalho poderá ser rescindido por qualquer tempo pelas partes e que, portanto, restaria justificado o pagamento pela cláusula de não competição.

Questiona-se ainda o valor do break-up fee que foi negociado no caso de a operação não ser aprovada. A imposição de multa para operações de fusões e aquisições é comum em negociações similares. No entanto, aliada ao seu valor exagerado frente ao tamanho da Linx, à contestação do valor de não competição e à remuneração do CEO em caso de aprovação da operação, as multas geram desconforto extremo sobre a imparcialidade da avaliação da aquisição. O valor do brak-up fee também estava tão elevado que igualmente foi reduzido na revisão da proposta da Stone apresentada no dia 1º de setembro.

O caso é quase uma novela e parece longe de terminar, mas será de extrema relevância para traçar orientações do que seria uma cláusula de não concorrência apropriada e parâmetros de governança que assegurem os melhores interesses da companhia. Sem dúvida, alguns parâmetros para a cláusula de não competição seriam avaliar a razoabilidade do valor de remuneração pela não competição e evitar pagar pela não competição se a pessoa já estiver sujeita à obrigação de não competir por ter sido contratada para exercer trabalho ou função para o adquirente.

A cláusula deve refletir com exatidão os termos em que o adquirente pretende obter a restrição da atividade do vendedor, pois ela não pode ser interpretada extensivamente, ao passo que o vendedor somente será obrigado a não competir se a cláusula for expressamente estabelecida nesse sentido. Além disso, é essencial que sejam definidos um prazo razoável e a limitação geográfica que ela alcança. Caso seja fixada por um período excessivamente longo, por exemplo, há chances reais de seus efeitos serem invalidados por implicar restrições desproporcionais à liberdade de iniciativa do empreendedor. É preciso, portanto, contar com uma assessoria jurídica preparada para lidar com essas nuances.

 

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